quinta-feira, 18 de janeiro de 2024

Solitude

quantas vezes
sob a lança afiada da madrugada
                      cinza
não adocei demais o café
pra compensar o amargor
                                         desta vida

é gris a madrugada
e a escuridão que transpira
                        através das paredes
toma posse de meu sangue
ganha meus poros
                  e apenas a sua ausência

tenho apenas a sua ausência
neste exíguo sopro de vida
        que transpassa meu coração
e deságua nos meus olhos
                          duros
fixos como esta madrugada vidrada
de um vidro opaco
opaco e inflexível vidro
               mulher cor das manhãs

                      a sua grave ausência
manchando meu silêncio
                         carregado de noite
e solitude

                        Jan- 2024

terça-feira, 16 de janeiro de 2024

Reencontro

dentro do seu abraço
tingindo de noite a sua pele
meus braços
              corpos redescobertos
nosso inesgotável
rebelar-se

                      Jan- 2024

segunda-feira, 15 de janeiro de 2024

A palavra liberta

a navalha na carne do poema
não é lanhar o coração
é exigir a secular dívida que não foi paga
arte é pedra
no sapato do opressor
navalha sempre foi na mão do negro
agora é a palavra

eu que nunca escrevi nada
agora me escrevo
em signos
mas temos que tomar todo cuidado
os donos das coisas
estão nos vigiando de perto
e não há nada que se possa fazer
apenas não abandonar 
a lida

fazer dela questão de vida
como um faminto luta por um prato de comida
e se a palavra liberta
tomar posse dela
ainda que sob toda a opressão
fazer dela o nosso tesouro
há tempos subtraído covardemente
de nossas mãos

                 Jan- 2024

sábado, 13 de janeiro de 2024

Atrás da culatra

atrás da culatra
o assassino assas(sina)-se
antes de matar se mata
aspirações desaguam no lodo
e a bala gasta
alimenta a indústria da morte
eriquece os donos da posse
sequer enxerga 
que a chaga é social
não está no seu desafeto
no seu vasto arsenal
de desengano
perde a vida no breve instante 
de disparar o cano

                      Jan- 2024

Antes da meia-noite

antes da meia-noite me ergo
para a árdua luta diária
com este tanto em mim
de negro
disciplina e conduta
para me escrever escrevo
pois a veia poética
escuta
atrás das grades do peito
a força que jorra em cascata
com este tanto em mim
de negro
e nascerão estrelas 
nos dedos

para a árdua luta diária
antes da meia-noite me ergo

                   Jan- 2024

quinta-feira, 11 de janeiro de 2024

Sonhos desfeitos

andando por estas ruas 
transito-me 
as casas já estão mudas
e há um eco de silêncio
nos portões
os mortos sob o asfalto
não ousam manifesto


costuro a boca com os dentes
aflito sob tantas máscaras 
de obrigações 
e condenados sem sentença
no tribunal 
dos enjeitados

não há julgamento justo
não há júri isento
pra essa gente de cor escura
com a guilhotina 
da vida dura
a um fio da jugular

de repente me afaga uma flor
afogo no ensaio 
um anseio de fé satisfeita
não há prazer que apague a mágoa
de sonhos desfeitos 

já não quero nada
diante dos gozos urbanos
da tragédia planejada
dos arquitetos do caos e suas plantas
com nódoas de sangue

sorrir já não quero

enroscado, o esqueleto duma pipa
elabora o tempo.

                 Jan-2024

Autoestima

esta boca imbeijada
de inesgotável tempo enamorada
pelos lábios teus
conta segredos pra noite...
deste jogo de opostos das raças
que despreza o negro
e exalta o branco
que me tomba
sem bilhetes de suicida
e me mata
sem matar-me a sede
da tua língua

mas da minha parte
sou a fera que se fere nas rochas
e hiberna 
nas cavernas do peito
num instinto de autoestima
esqueço

        Jan 2024

quarta-feira, 10 de janeiro de 2024

Habitat naturalizado

a chuva molha
o pranto dos desgraçados
munidos de rua e fardo
afogados nas águas da descrença
das próprias graças enlutados
provam da hóstia 
amarga dos endinheirados
consagrada na pia 
da indiferença

expostos os fatos
mesa posta
pra manhã que graça triste
uma boca negra sorri entre os carros
cagam os sectários

                     Jan-2024

Luta armada

não serei solidário ao mendigo
pra jogar na cota 
do desapego
atrás da chaga que perambula pelas ruas 
do desespero
existe represados ódio e desprezo

andarei com ele de mãos dadas
mesmo que em busca duma utópica saída
para os males que nos acomete
e que nos chaga

não serei o bobo da corte
dos monarcas de terno 
atrás de seus modernos veículos
com seus automáticos vidros do medo
em fuga da miséria
escondida nos seus próprios atos 

não distribuirei sorrisos ao meio-dia
nas duras esquinas da cidade 
desgovernada
qual criança negra que ganha boneca branca
a inocência não anda nas esquinas
desarmada

é armada minha luta
tenho papel e caneta pra guerra
se quiserdes algo de mim
nos vemos nas trincheiras da noite
a qualquer hora

                     Jan- 2024

Poeta negro

o afro-tambor manifesto
num batuque gingado
pr'além das fronteiras do tempo
ecoou pelas frestas da noite
e as demandas ancestrais
carregadas de um banzo triste
encontraram o menino
no seu âmago de menino preto
que brincava n'algum quintal
ele não se sabia negro
apagadas que são tais memórias
criança perdida de seu povo
não sabia da sua história

as veredas predosas venceu
astro negro de estro estelar viveu

                  Jan-2024

domingo, 7 de janeiro de 2024

Flash criolo

de muitos braços
faz-se um edifício

de muitos edifícios
faz-se um império

de muitos impérios
faz-se o poder econômico

depois de quantas misérias
faz-se um sorriso?

           Jan- 2024

sábado, 6 de janeiro de 2024

Sob os olhos atônitos do dia o crime perfeito

chibata cantou
no lombo do preto
e eu sei quem mandou
cantar a chibata
tem diploma de doutor
e usa gravata
 
            Jan- 2024

domingo, 10 de outubro de 2021

o negro, o, BRANCO
bebe água branca
e vomita 
sangue
sobre as flores
negras
do jardim.

Mar- 2021

sexta-feira, 3 de setembro de 2021

Luzia

               (sobre incêndio no museu nacional)

Luzia nasceu negra
séculos antes em terra indígina
ou foi trazida? 
migrou da guerra?
resta apenas o crânio de luzia
consumido pelo fogo
o fogo amargo
fogo da nação suicida.

   Set- 2021

sábado, 28 de agosto de 2021

Mãe negra

                                 à minha mãe

quanto de dor pisa a avenida
sem adereço 
eterno recomeço deste enredo sem palavras
o emprego do seu afeto
entre o prazer reprimido e o encargo

nenhuma poesia
nesta alegria sem sorriso
doada
neste abraço que protege indefeso
sem qualquer interesse
do desapego

o tempo não cede 
ao argumento que alegam teus olhos
que propõe teu desejo
somos cinzas sem direitos
e dissipamos 
sopro

mãe 

gestasse o homem não seria tanto
na dor e no pranto
do ser que desentranha

parisse o homem não seria tudo
no fruto que fere feto e já fato
esta voz que ecoa 
fora do útero

mãe negra é a mãe branca
com os encargos da cor

        Agos- 2021