Poemas de temática social onde aborda, em linguagem simples, de maneira aberta e franca a fome, a miséria, as desigualdades e os privilégios da elite brasileira, e, voltados para a condição do negro e afro-descendente no Brasil fazem menção a fatos históricos desde o continente de origem (África) aos dias atuais, ao amor, à paixão e ao desejo.
sábado, 3 de fevereiro de 2024
comeram o pão e a carne, fruto de mão escrava. beberam o vinho, concebido pelas mesmas mãos. lambusaram-se a noite inteira com dança, música e gargalhada, como não houvesse amanhã. o maior banquete do melhor alimento e bebida, tudo fino e caro. pela manhã sairam em diligência cada um para o seu palacete deixando para trás o rastro de esbórnia jamais vista, sem pudor ou culpa, para suas vidas de conforto, luxo e riqueza. indefesos, porém, a própria fragilidade encarnada.
quinta-feira, 1 de fevereiro de 2024
Crespitude
meu crespo dito ruim
é que me fortalece na caminhada
cresce força e negritude
mas na sua boca
é vergonha descarada
enquanto não passa
de atitude
e mais nada
Fev- 2024
Lapso de cor
no papel o branco
é cor igual a qualquer outra
inclusive ao preto
por que na gente os brancos são mais
e os pretos
cercados de preconceitos
são vistos
como animais?
Fev- 2024
quarta-feira, 31 de janeiro de 2024
Área de risco
área de risco
que desliza e desmorona em escombros
não é só a encosta dos morros
onde vivem os desgraçados desta terra
área de risco
é também não mais indignar-se
não insurgir-se
contra a instituída sacanagem do estado
contra o povo deste país
rico e pobre na sua essência
é baixar a cabeça
e aceitar calado a imposta
escrecência
dos poderosos que ditam as regras
em forma de desprezo
e bosta
Jan- 2024
Urubu
me chamam de urubu
quisera ter asas fortes pra voar
pleno tantos céus
e a única carniça que me cabe
é o preconceito
dos racistas
Jan- 2024
Iconoclastas
ódio aos terreiros
à macumba
à crença dos negros
os racistas estão soltos com facas nos dentes
e sangue nas nas mãos
a liberdade sobrevive aos tropeções
à democracia perneta gritando socorro
a fé nalfraga frente à estupidez
demonizam divindades negras
e exaltam violência
sem clemência ou culpa
pitam um deus homem velho e branco
quando pode ser uma criança
menina negra de trança
correndo n'alguma relva d'algum quintal
brincando de fabricar esperança
contra a embriaguez
do preconceito
enquanto os tortos conceitos iconoclastas
cerceam direitos
tolhem a liberdade ao culto
deus não tem igreja é de todas as crenças
de todos os povos
de cada homem que nele crê
e dos que não creem
também é pai
está para salvar indistintamente
mas com a cega violência
sofre a umbanda
sofre o candomblé
e os criminosos que devastam terreiros
país afora, não sabem,
são afluentes da mesma dor.
Jan- 2024
Insana espera
fazer de hoje meu descanso
este pilão socando destroços de dia
para conceber o doce amargo
de tua ausência
acostumar-me ao abismo
que nasce do nosso encontro
n'alguma dura esquina
do desencontro
regar a semente que germina
no frio concreto de teu peito
e reencontrar-te para colher a flor
sobrevivente
que nasce dessa insana espera...
Jan- 2024
Verão
reproduzir-te nas minhas retinas
e inundado da tua imagem
transbordar as mágoas
no chuvoso janeiro
Jan- 2024
(Des)crença
a igreja me afasta
de suas crenças e liturgias
adorar brancas entidades
recorrer a um deus branco que me resgate dos pecados
eu tão preto quanto os orixás
em que acreditarias tu
no meu lugar?
Jan- 2024
Manhã
eu acredito na noite
porque ela tem em si a cor de minha pele
e ainda que me seduza a serpente
de mortal peçonha
sobreviverei à esta manhã
à cilada entorpecente de sua alva
está escandalosa brancura
que me cega
Jan- 2024
Abraço
nem povos extintos pela guerra
nem livros inacabados que não chegaram a ser
nem escombros de pétalas no jardim do peito
nada que consuma a força de mil braços
ou que sepulte a madrugada embriagada
dos loucos da cidade
nem o cais do porto de muitos séculos
nem os logradouros insalubres da província
de onde os donos de terras negociavam seres
nada
nada nos afastará
da comunhão de nossos corpos
desesperadamente entregues à bruma da madrugada
nada impedirá que renasçamos onde nasce nosso afeto
no alarido de nossos braços
encontrando-se no meio da noite
Jan- 2024
terça-feira, 30 de janeiro de 2024
Desespero
ninguém mais se espanta com a miséria
catando restos de feira
ou no ceasa
quer alçar voo o pássaro
mas as asas estão partidas
a liberdade é sonho oculto sob às mágoas
estão turvas as águas
da bonança
nesta festa ninguém mais dança
e o olhar de fome da criança
já não comove
é certeiro o tiro no coração da esperança
já não negociam mais a paz
os coqueteis molotovs
nas passeatas
e a mãe que amarga aquele olhar
traz no ventre um vazio que já não aguenta
uma avenida onde antes placenta
Jan- 2024
Abolição
liberdade concedida,
abolição?
como, se antes escravos
depois portas abertas à sarjeta
ou o mesmo eito
por meio pão?
o poeta cunhou: meia obrigação!
roubo-lhe o refrão
e modifico:
que houve no brasil, vergonha,
algo menos
que meia disposição!
Jan- 2024
segunda-feira, 29 de janeiro de 2024
Modesta crítica da arte moderna
pra quem já foi de todo margem
mas sem deixar de ousar
agora dividimos centro:
em generosas pinceladas
somos a arte e o artista
criando cores e expressões
mas falta preto na pauta
somos o jazz e o blues
em abundância
ainda que de sapatilha
nos vemos pouco embora
dançamos nossa cor de ébano
pelos palcos do mundo
atuamos nas telas e teatros
e custuramos o enredo
letra por letra da trama
do que somos e como vemos
ponto por ponto
somos rimas dramas
e metáforas de nós mesmos
somos forma e efeito
sob pedra sabão
mesmo que aleijados
embora falte o preto na flauta
no arco fino do violino
em todo esse ambiente
execução e criação
arte não se faz sozinho
de pausa em pauta ganhamos
espaço e somos no mais nação
Jan- 2024
Demanda
desfaleceu a escravidão
não por abolição ou qualquer
outra farsa
mas por exigência imposta
hoje nos dão a cota
que já não basta
negritude não é só revolta
é união e coletividade
mar transbordando horizonte
exigimos integralidade
e descansaremos o muque
apenas de posse da equidade
Jan- 2024
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