quarta-feira, 25 de setembro de 2024

...Ela

pelas bordas da cidade atarantada
deságua e cresce favela
em avenidas de esperança e mágoas
a favela sofre a esperar que brote
no árido ar da metrópole
a sua aposta
de melhores dias
dias de bonança a seus filhos pretos
quilombo que nascido
de coletivo sonho
é refúgio e lar e gueto
a favela se expande em tentáculos
de resistência
não mero espetáculo
da elite rancorosa
que destila ódio a quem deve 
muito mais que cota
e ignora escarnece e não paga
mas a favela trabalha
estuda e sobrevive no fio 
da navalha
e não se entrega às sujas regras
do jogo inimigo

e segue em mar revolto ela
tal como eu versando dores sigo

                 Fev- 2024

quarta-feira, 18 de setembro de 2024

Pedaços da fome

                   Poema em homenagem à Carolina Maria de Jesus

a vida agora é de alvenaria,
os objetos, os filhos, as flores...
a casa talhada a lápis com palavras de dor.
filhos adotados dos teus braços pela miséria.
o prego, a madeira, a fome, o silêncio,
o trabalho e a solidão.
o ódio de deus sobre os ombros dos teus,
sobre os ombros
dos que não têm que querer,
cuja escolha é não ter escolha.
nada conterá a força das tuas palavras
ainda que as águas das chuvas tenham contido
teu corpo franzino, anônima de papel,
estrela sem hora
nas ruas avessas da cidade.
cidade hostil, afeto de pedra, flores sobre a sepultura.
nuvens de África, ares de África, sois de África.
sopa de vento, poeira de terra no prato,
está no pasto este gado,
ou nos finos pratos de louça fina.
qual a cor da fome, Carolina?
dos pedaços da fome?
despejada de cada quarto, de todo canto,
preterida da vida.
zela da veste granfina,
desdobra-se a cuidar deste chão,
e sonha, Carolina!
escreve e sonha, Carolina!

           Maio- 2020

500...

a úlcera do ser estagnado
destila o cianureto meias verdades
a sociedade doente
as academias mutiladas
o cânone envesgado dos costumes

o ópio-ódio burguês
excrementos 
de míopes cogitações
petrificados pitacos letra-morta:
88 aboliu os poderosos da culpa
eis a excrecência
(o poder de eximir
à régia canetada histórica)

à goela empobrecida
a baba espessa do cão sem raça
a gente engolindo miséria
vivendo de sonhos extintos
vinho tinto 
de sangue vomitado à nossa boca
e mais injúrias e hospício
e o vício por alimento

o ensino ensina chacina
despótica gramática das ruas
complexa pedagogia dos excluídos
e o rebanho 
de negras ovelhas -destino e pele-
amarga a sintaxe suburbana
engrenagens de aço 
e vestígios de munição
a violência escandalosamente 
armada de carência-criança

nas feiras encarceradas
das periferias
bandejas de desdém 
dúzias de fatalidade
pencas de mágoa no olhar
o desenlatado extrato antissocial
brasileiro marinado em caos
no topo etc e tal, no meio isto e aquilo
na base, versada em revés
nem isso, e jazem os ratos classe E
esfomeados nas sarjetas
à margem 
destes regalos
os indigentes à margem

agressões nos subterrâneos
cotidianos do lar
amor por argumento
a negra pele roxa de ternura
não há primavera pra criança órfã de amor
esmolando gorjeta
pra sua fome de afeto
as balas que nada têm de perdidas
e encontram a infância 
perdida
grande contingente negro
implicado em "masmorras medievais"
nem uma réstia de liberdade
a sociedade pelo racismo
combalida definha
Zumbi expira no quilombo do peito
vencido pela impotência

o protesto burguês 
bate panela vazia com a mesa farta
no conforto dos apartamentos
o protesto proletário
almoça poeira de obra
a miséria sem miséria das marmitas
faxina por negras mãos
de fadas sem conto
ventre colado às costas
o mármore das mansões de pedra

seus deveres cívicos
resguardados pela constituição
seus direitos
engavetados no parlamento
parlamento branco e burguês
como todos os poderes
e poderosos 
da nossa república esgarçada 
em egoísmo.

       Fev. 2021

terça-feira, 4 de junho de 2024

Enganos prescritos

ainda trago estas mãos incompletas
teu corpo ignorado em qualquer parte do globo
mãos de amores brancos
que não aprenderam pisar no solo 
das próprias dores

o matiz banto 
deste meu miscigenado espanto 
reclama teu chão legítimo
tua força autêntica de mulher astuta
senhora do seu destino
empoderada da sua história
e identidade

saberes tão definitivos nos cegam
com seus vieses de verdades absolutas
que somos sem o ser
e feito naus de saqueadores
cavalos de tróia de nós mesmos
vagamos senhores por águas perigosas

contra a própria vidraça
arremecei pedras de desamor
cego que estava para as cores esquecidas
e apenas tarde
descobri o mundo depois do crepúsculo
quando já era tarde
conheci o que me pintaram turvo
desde o jardim

o crime está cometido
mesuras e desculpas não restituem
o membro mutilado
o estrago é grande e grave
as raízes foram podadas e o fruto apodreceu
a árvore pendeu e dissipou-se
em plena vida
vida de enganos prescritos
esvaída

que é feito de nosso amor
mulher que eu desconheço mas amo
e que a ausência me dói nos ossos
que é feito de nós depois de tudo passado
agora que a neve caiu
que o vento carregou os sonhos
que estilhaçaram o espelho
de nossa alma

adeus!

           Agos- 2021

segunda-feira, 20 de maio de 2024

Assunção

nessa selva povoada de feras
onde o fruto que alimenta 
é também o que mata,
não me quero menos que fera,
contemporâneo afortunado 
desta gente negra,
deste contingente humano de peso.

meu verso é um compilado 
de muitas vozes, 
influência dessa miríade
de voz poética brasílica.
eu sou apenas um 
e todo mundo
neste mundo de Silveiras,
Colinas, Venturas, Camargos.

o fruto verde desta 
complexa fronde, deste robusto
arbusto, desta árvore áfrica 
brasileira que afronta
no front da palavra
a violenta frota do sistema,
a rota que nos quer 
cordeiros, carne morta, 
nas vielas, nas favelas, nos canteiros
de obra, nos quer derrota.

mas empunho a pena
e pena de quem não pensa,
de quem quer a recompensa 
por minha pele,
de quem odeia a minha negra cor.
sei de cor 
o que querem
os que me querem pó,
os que me querem só o nó 
da minha etnia.
mas é com alegria 
que sigo a assunção 
dos caminhos
de um Carlos de Assumpção,
de uma Geni Guimarães.
e é com muito orgulho
que assumo a alma que aflora
da minha ilustre 
gente negra 
na minha própria alma.

       Dez- 2020

sexta-feira, 17 de maio de 2024

Lapso

tenho um cálice letal 
de saliva
abstenho-me da vida
pago com lapso o seu hiato
do teatro sagrado renuncio ao palco

no beijo detido 
por teu ato insano
às trevas me cedo cadáver em húmus
paciente do ímpeto inumano
entrego-te meu túmulo

a nossa hóstia curtida 
em vinho
jaz em estilhaço
resta o jazigo vizinho
ao sepulcro do meu abraço

     Mar- 2021




Autópsia

quando partir fosse sensato
investigar nos olhos teus
momento exato
qualquer fagulha de bem-querer
desejo oculto
em cotidianos gestos
que revele e releve
qualquer contrário vento
que tempestade se fez
no passar do tempo
entregar-me ao silencioso culto
dos teus lábios
dizendo: - toma esta flor
que cresce...
é amor é amor

              Fev- 2024

quarta-feira, 15 de maio de 2024

Capoeira

no embuste da resistência tramada
a dança luta do negro frente à senzala
num golpe ginga a força da raça
e atravessando o tempo 

                  reverbera a sua graça 
                  história de libertação
                  onde impera o inimigo

rabo de arraia
rasteira
maculelê
benção
                         tanta dança e tambor
                         capitão do mato e senhor
                         nem desconfiam porquê

capoeira é revolução
a glória do destino de um povo
himeneu do negro com seu irmão

           Fev. 2021

terça-feira, 14 de maio de 2024

Súplica

deus, uma esmolinha
por misericórdia:
um livrinho aos cinquenta
pra eu ler um pouco.
- e a vida fodida?
depois conserta ou reencarna
pra outra vida
novinha em folha...

           Fev- 2024

quarta-feira, 8 de maio de 2024

Sou negro

se às vezes meu ego é frouxo
é que sou esboço
à semelhança de um deus
que retratam branco

negro
muito negro de pele
e alma me traço me tranço
na vida 
em que me lanço
de lança em punho danço
meus ritos
escrevo meu enredo

se me querem branco
de alma e pele
fracassam sou negro
até nas entranhas
sou negro
das pontas dos dedos
aos pelos 
do crânio

                Fev- 2024

Água não lava

água não lava este sangue
aos jorros na terra das lavouras
derramado
sangue de há séculos
por séculos
dos vendidos
sangue tataravô
deste sangue das cidades
que na terra
ainda coagula
sangue das costas lanhadas
e do suor
sangue negro
escravo
        
              Fev- 2024

terça-feira, 7 de maio de 2024

Preto fede

ao promotor Avelino Grota, e, infelizmente, esse é o pensamento 
de muitos da elite deste país, é de uma tristeza tremenda, 
consegue mensurar?

preto fede
fede?
no cu todo mundo fede
se o preto fede
o branco
cheira.

Out- 2021

segunda-feira, 6 de maio de 2024

Artigo 1.305

                             delataram o poema negro
inocente dos crimes que o acusam
pesam-lhe apenas
                                os "delitos"
                                                 de informar
conscientizar
            desalienar
                       encantar 
                              orientar

conduzido à sala do censor
                              verteu metáforas dos versos
exausto do preconceito
                     proferiu estrofes de amor

implicaram-no no artigo 1.305
condenado e preso sem julgamento
nem direito à fiança 
 
                           ou habeas corpus

submetido às seguintes penas:

reclusão na cabeça do poeta
sem poder estampar folha em branco
com o agravo do silêncio absoluto

             nada dizem os críticos e acadêmicos
da injustiça contra o poema

os versos negros não são mais livres
os livros desbotam-se de tédio
                            nas estantes ariânicas
          a literatura brasileira agoniza sem matizes

o poeta negro é ser estranho do público
                           que pra comer 
não come do que escreve
                        esmola outro ofício que o sustente
desde que delito tornou-se a arte negra

ainda que objeto dos crimes
                        onde o branco é o sujeito
o negro paga

                              pobre cultura dos trópicos!

                   Agos- 2021

quinta-feira, 2 de maio de 2024

Numa tela

como posso ver-te 
em tablets e celulares
quando o desejo te quer
cada vez mais carne e osso
e meu ócio te reclama
cada vez mais próxima
cada vez mais boca e vulva 
pele pelo e íntegra
concreta âmago e víceras
ser de glórias e ruínas
cada vez mais fêmea
que mente chora e ama
dentro dos meus braços
nas dores da cama
não essa forma efêmera
fria forma em regra
que não sangra ou transpira
encerrada numa tela?

             Mar- 2024

Trilhas dispersas

às vezes me frequento
e encontro em mim mil portas trancadas
pelo receio de topar 
os desafetos 
com as mesmas máscaras
que às vezes envergo

outras me frequento
e encontro em mim um árido terreno
saturado por deglutir os restos
e estampar no rosto um ar
de naturalidade

então me frequento
e encontro em mim um estranho
dando a cara à tapa resignado
sempre que o ultraje
insiste que tenho dívidas 
em atraso

me frequento
e às vezes sou um palhaço no circo
das circunstâncias diárias
abandonando por cumprir 
o combate

às vezes dobro os joelhos
e balbucio desculpas ao agressor
em feitio de oração
eu que por mim não sei pedir

tenho frequentado
o âmago deste ser que amarga
a tíbia atitude de amar
à míngua de si
quem lhe oferece as costas

às vezes me frequento
e não reconheço o caminho de volta
perco-me nas minhas curvas
nas minhas retas
e nessas trilhas dispersas
sou poeta

        Fev. 2021