sexta-feira, 17 de janeiro de 2025

Um negro nos teus braços

um negro nos teus braços
esta cor tão viva que destoa da paisagem
um negro da bahia de alagoas de nova york do congo do haiti
leão selvagem com destroços dentro do peito
infenso de todo à violência que o persegue
um negro dos quilombos em guerra com uma flecha no peito
tomado por estes espectros de correntes e estas grades fantasmas
teus braços tão delicados assustar-se-ão com a brutalidade
que tem sofrido este homem tão estranho à sociedade
este marginalizado ser que entoa paz
que persegue a justiça e a liberdade embora tão encarcerado
neste mundo onde o branco tudo pode e seu dever é servi-lo
um negro de corpo e alma negros nos teus braços brancos 
intactos braços de tantos privilégios
na tua pele tão livre de avessos
acaso tisnarias a história tão imaculada
da tua sorte?

                       Jan- 2025

quinta-feira, 16 de janeiro de 2025

Os espelhos

os espelhos estão cobertos 
minha mãe legou-me a mania de cobrir os espelhos quando chove
mania que herdou de minha avó
mas nos espelhos vejo apenas meu rosto aprendendo ser velho
tua imagem que me alegra o dia vejo apenas em fotografia
aprendi a te amar olhando tuas fotos
em que esquina exatamente vou ver teus olhos de novo?
medindo o chão talvez por uma timidez congênita
quando me extasiarei olhando minha imagem no espelho de tua íris?
deixastes tanta vida para um incerto depois
quando agora eu queria o teu calor
quando agora eu queria descobrir teu cheiro
deixar minha tatuagem no teu sangue
estes espelhos cobertos refletem minha vergonha agora
de haver deixado você partir nos braços de um vento de outono
de haver deixado você alheia de mim
de tê-la apenas nos versos

                           Jan- 2025

quarta-feira, 15 de janeiro de 2025

Assalariados da fome

moluscos do mangue eclodidos do ermo
formigas operárias da caatinga social, inóspita e árida terra 
dos sem-sorte implicados na lida do pão
assalariados de modestas estirpes
desaguam nas obras e fábricas das cidades
desafortunados empregam a força do braço na feitura da nação 
que os despreza
e máquinas humanas desdobram-se multidão saciando a sanha de progresso
dos patrões endinheirados
sob os uniformes e macacões que os distinguem fabricam fortunas
para gerações e gerações alheias 
enquanto estabelecem a miséria dos seus
por força ou em troca de uma códea
mirrada de existência

                             Jan- 2025

Mãos de operário

estas mãos que já foram humanas
e hoje sãos duros cascos de mãos operárias
embargadas mãos de ogro, infenso instrumento 
ao carinho de amor
mãos precificadas de irreversível brutalidade
obscuro sargaço em superfícies sensíveis
prólogo e epílogo das minhas vergonhas mais fundas
e expressão do progresso inacessível
lamentam seu destino de trevas 
condenadas às sombras do ostracismo na cela escura 
da íntima masmorra do meu ser medieval

            Jan- 2025

terça-feira, 14 de janeiro de 2025

Filhos da mesma mãe

vivemos alheios ao parentesco
ávaros, vivemos indiferentes
enquanto gira o globo e tudo volta
o alimento nos chega à mesa num passe de mágica
nós que comemos, e desperdissamos alheios ainda
depois de haverem-se perdido toneladas do mesmo alimento no transporte
e ainda alheios nos regalamos com fartura
mas na lama escura e podre do completo anonimato
nos escombros duros de anseios bombardeados
subexistem filhos da mesma mãe
irmãos de pátria e sangue derramado no campo de batalha
são esses seres que tropeçamos nas ruas
andarilhos da grande cidade
órfãos d'áfrica, grande mãe da humanidade
os enigmas obscuros das urbes
vitimados das tiranias com que forjou-se a nação
os destroços humanos de nossos atos
eu falo dos indigentes que povoam as ruas sob nosso desprezo
falo de gente que transpira fome
sob nossa arrogância

                          Jan- 2025

segunda-feira, 13 de janeiro de 2025

Origem

o mendigo vem de um ventre castigado
que por sua vez vem de outro ventre castigado
que vem de outro e de outro e de outro
até às savanas d'áfrica a captura a tortura os porões dos negreiros
que desaguam em terras brasileiras

para o eito forçado o tronco a chibata e outras crueldades
enfim a "liberdade" as ruas a exploração
as favelas a fome o álcool as drogas a doença mental a indigência
é essa a origem de muitos mendigos que vês diariamente nas ruas
a história brasileira omitida

                   Jan- 2025

sábado, 11 de janeiro de 2025

Sob as barbas de deus

a féria é pouca pro mês
o catado da feira não sobra pra semana
as sinfônicas do rádio dão lições de delicadeza
e vou-me embrutecendo com a árdua lida
tuas mãos suaves de docente
extranharão a calosidade grosseira das minhas
o intelecto desenrolando assim assim
estalado de sol tamanho
o patrão mais quer explorar
a sociedade mais oprime arrogante sob as barbas de deus
os sonhos todos de vida a dois definham como nuvens
dispersas na abóboda do céu
este negócio de amor escolhe cor e condição
sem que não sofra ninguém
nesta sociedade que destrói com requintes de crueldade 
a pessoa física de quem ganha o pão com a força dos braços
e os humildes planos de família satisfeitos
vêm com prazo de validade vencido de fábrica
do ventre materno ao inferno
desta vida de silvas

                       Jan- 2025

A grande noite

entre a desordem das gavetas
e os livros empoeirados a noite galopa seu trote lento
tentando talvez seduzir-me a embrenhar seus segredos
jovem destemida propõe jogos perigosos
jogos de embriaguez, vadiagens e inconsequências
mas quero aprender da noite o poder sedutor de sua escuridão
a força de comportar o peso da beleza de tanta estrela
apenas uma estrela brilha na noite de minha pele
amor que excede o peso que suporta meu corpo
a noite silenciosa me olha e aconselha:
"olhe pra dentro de si, encontre no âmago a força"
e nos braços da amada descubro força suficiente
para sustentar sua luz

                       Jan- 2025

Amar esta mulher

amar esta mulher é um pouco liberdade,
ambíguo como uma alforria num país escravagista.
um pouco prisão, estar restrito aos limites do corpo
e não dispor do poder de pássaro que enxerga de cima a savana.

mas é meu vento de outono
aquela brisa leve que refresca e dilui a tara abrasadora do sol
é meu rio manso em pleno estio
quando posso despir-me e mergulhar o corpo
nas águas frescas do seu leito

é enfim sentir-se vivendo estações
e suas mais íntimas características e peculiaridades
detendo-se na intensa experiência de experimentar
a vida no que ela oferece de mais saboroso
o espetáculo das sensações

alimento-me deste amor sem conforto ou luxo
como faminto mendigo alimentando-se do que conseguiu perambulando a cidade, 
com a mesma voracidade e urgência
num canto de rua entre as gentes passando indiferentes.

ignoro a fronteira entre o querer e o poder
pois a entrega deste amor é como devaneio de poeta
diamante indescoberto no fundo da terra
entre a distância e o estar no corpo.

                              Jan- 2025

Esfarrapados

a sociedade tolera os esfarrapados
infectada pelo racismo e a indiferença
doença corrosiva e terminal
e a criança negra, a criança pobre reconhece no branco o seu ídolo
libertando-se às vezes apenas depois de adulto
trauma instalado, crime consumado estamos todos doentes
a infecção alastra-se por todo o corpo social
as elites intactas gozam o seu sucesso
os esfarrapados perecem sem direitos
a sociedade então rui em escombros de ignorância
jazem indivíduo e humanidade
vazia a terra segue seu distino 
de globo inabitado

                 Jan- 2025

quarta-feira, 8 de janeiro de 2025

O amor é um direito

os anos vão passando
e a gente vai passando com eles.
indigno-me ainda com coisas que não podemos mudar de imediato,
coisas como o racismo, a desigualdade social e as injustiças.
ainda há poucos com conciência das coisas com as quais me indigno.
mas o tempo encarregar-se-a delas certamente.
quem dorme, acordará! quem luta, vencerá!
dedico meus versos, muitas vezes ácidos,
a quem não se cansa dessa luta árdua por justiça.
o coração da gente é feito criança acreditando sempre numa utopia.
chegará um tempo que hão de poder brincar
livres como brincam as crianças.
o tempo também carrega nossos dentes, nossos cabelos e o viço de nossa pele.
carrega numa avalanche as pessoas que amamos, as coisas que adquirimos
ao longo da vida e vai deixando um vazio nunca preenchido.
e se existe uma fórmula que faz valer à pena tanta luta, 
tanta perda e tanto vazio essa fórmula é o amor.
um dia o grande Nelson Mandela disse:
"ninguém nasce odiando, e se ensinamos a odiar, podemos ensinar a amar."
aprender amar, saber amar é fundamental, ninguém pode nos tirar isso.
a sociedade há de amar um dia,
quando este dia chegar teremos uma terra onde viver.
hoje temos um lugar estranho onde o homem pisa no homem, mais que pisa,
escarra na cara, tortura, mata.
quem tem o poder quer mais poder e oprime, humilha, explora.
o oprimido é cada vez mais oprimido e, o direito é tirado com violência, 
de muitos o direito foi tirado gerações e gerações anteriores.
a maior violência está neste ponto, o pobre, o injustiçado, 
o maltratado muitas vezes sofre sem saber
o ponto de partida de tanta angústia, de tanto sofrer.
mas com poesia, com livros, com conhecimento
vamos construir uma sociedade sã para todos, de todos.
hoje este direito de viver num lugar saudável é para quem come, para quem veste,
para quem tem axcesso ao amor,
à cultura, ao conhecimento, à informação, ao conforto.
hoje o lugar saudável pra se viver
é para poucos.
 
                     Jan- 2025

domingo, 5 de janeiro de 2025

Primeiro poema

este livro não começa aqui
vem mesmo de antes
da primeira visão que tive de ti
que ainda guardo
bem viva na memória
antes mesmo que eu soubesse
organizar as palavras
compor as letras
e não haverá cabo
isso mesmo não haverá final
tudo o que eu escrever
até a última palavra
será dedicado a você
mesmo os poemas mais duros
que não falem de amor
não falem da proeza
que é amar-te minha musa
amor que eu jamais soube igual

              Fev- 2024

Colóquio com a mulher amada

quanto não ficou apertado
este coração menino num quarto escuro
esperando um sinal
um indício ou qualquer outra alegria efêmera
mas com a poeira do tempo
aprendeu libertar-se e tomar o ar
dum dia azul
e brincar na grama como fosse ainda
um jovem menino encantado
com as belezas da vida
madurei dum jeito gente não fruta
aos trancos e barrancos
e isso tranquiliza a gente dum jeito...
sei seu endereço
e sei que posso encontrar-te na rua
por estes meros acasos
que a vida proporciona
e sabe que de maduro isso me basta
não direi que não conto
com a possibilidade de um abraço prolongado
de um beijo nos lábios
ou de uma história pra contar ou ouvir
dentro duma noite branda
tudo isso me assalta ainda o peito e eu aceito
como possibilidade que se realize
mas não brigo mais com deus e o mundo
pra tornar realidade uma coisa
que cabe quietinha
no canto dum coração que ainda bate
quando deixar de bater não sei
ninguém sabe
mas ainda não deixou
e este cantinho é teu
amor que não acabou
que ainda arde
vivo feito você e eu
dentro duma tarde

                  Fev- 2024

Lugar de negro

mau destino sabido
mesmo antes da concepção.
de quantos maus destinos sabidos 
o estarrecimento?

pelourinho é pouco
chibata é pouco
o tronco é pouco
ainda tem a pinga barata, 
intragável, goela abaixo.
eu que gosto de livros e conhecimento,
mas tenho cicatrizes.

o mijo nas vestes, o sebo, 
a comida podre, o intelecto esfacelado.

o cigarro, a droga, o homicídio, 
o estupro, a indigência, a exclusão,
tudo sobre meus ombros.
quando abolir-se-ão das máscaras, do cepo,
das grades, das algemas?
e o orgulho de ser negro, quando fato?

não estou pela misericórdia divina, 
a dívida é do homem.
credor rigoroso, 
meu verso é centavo.
 
                    Jan- 2024

poema inconcluso e sem data

menino negro na favela
todos diziam de sua inteligência
havia céu e estrada
potencial de voo e tempo
mas mais perto
do álcool e das drogas
entrou 
para estatística