segunda-feira, 7 de julho de 2025

Poeta do povo

um dia a máscara cairá
virá abaixo o escárnio da distinção do homem
ouvir-se-á nas bordas nos quilombos
nas favelas nos confins os mais distantes
o grito descomunal dum peito ao extremo oprimido
confins de nossas adestradas gentes
graduadas na tv de meias verdades e foscos argumentos dos mais iguais
reverter-se-á a miopia do povo humilhado
através da voz ostensiva da poesia
do poeta do povo

                        Jul- 2025

domingo, 6 de julho de 2025

As armas a prata o trono

não amargo cárcere
nas sujas senzalas de então
nem estou nas lavouras nas moendas
ou nos engenhos
muito menos sou negro forro
nasci livre à custa da luta ancestral
mas sinto o peso da pedra
pedra de erguer muros
de construir passagens aos bens
do patronato branco
livre sou até que marcado de cicatrizes
ceda meu corpo ao açoite diário
da exploração
da opressão e do escárnio
que explícitos impõem-se pela força
sob o império descarado
de uma cor que se distingue se exalta
se jacta de um poder usurpado
a braquitude tem as armas
a prata o trono
o negro trabalha se esfola se extingue 
eles usufluem apoderam-se
perpetuam-se exclusivos donos
de entes adestrados

                     Jul- 2025

New racist

ah sim, negro é lindo!
mas é artigo que se pesa em arroba
minha filha jamais estará metida 
nuns braços negros
e meu filho é educado bastante para estar com uma negra
mas sim, negro é lindo!

negro é lindo
mas foi vendido no mercado negro por patacas de ouro
em insalubres logradouros
e minha estirpe é pura 
não admite mistura que a tisne a alvura
mas claro, negro é lindo!

negro é lindo
mas urinou e evacuou nas vestes em público
pendurado no tronco feito charque
que ao sol se curte
e tem na essência o costume do cárcere
argolas e golilhas
mas certo, negro é lindo!

ah sim, negro é lindo!
e a sociedade precisa do negro
mas não metido nas escolas universidades e nos lugares do branco
tem negro hoje até nos parlamentos
cada qual no seu lugar
negro sim nasceu para chibata
está no DNA.

                         Jul- 2025

sexta-feira, 4 de julho de 2025

Aonde poesia?

e nuvens flainam
e folhas adejam à brisa
um negrinho chuteira extinta
chão pé e poeira
trama a fama adversa
assistem incrédulos os esfarrapados
quase se exime a favela
diante de tanto risco tanta fome
nas faces o abandono
será viável o impossível
se nem o mínimo
se nem se aprende se nem se come
e mais um cadáver grita
indiferente à atmosfera que paira
do moleque que acredita
e desfalece a poesia
inerte à realidade explícita
o dia mais azul é cinza
amarga a escrita

         Jul- 2025

domingo, 8 de junho de 2025

A chaga não se apaga

a chaga não se apaga da noite pro dia
não se apaga a chaga incrustrada por séculos
como lanho de couro no lombo
não se apaga a chaga dum crime sob a égide das leis
um crime viajado no tempo que nos atinge
e fere de morte nossos teres e haveres
neste circo sem lona e sem público
neste tecido esfarrapado e sujo
a chaga não se apaga
não se apaga a chaga e vivemos como artigo de segunda 
ignorados no fundo do estoque
pegando poeira e traça com o pior do pior
e nó na garganta nuvens nos olhos apagados feito astro que expira 
num céu de ofuscantes estrelas
a chaga não se apaga não se apaga a chaga

               Jun- 2025

quarta-feira, 21 de maio de 2025

Signos e sombras

                                                        Para Mariana

letra livre
escrita isenta de jugos
alforriada pela silenciosa e tenaz labuta
Ítaca a barlavento rasurada 
de horizontes e mitos
chega a ser

São Franciscos Ganges
Tejos Eufrates Senas Hudsons Nilos
correm na grandeza 
do protesto das tuas arejadas
palavras

teus livros estão em ti
como ruas passadas na história
dos sapatos que mudos possuem apenas 
indícios de antigos passos
é evidente

tuas janelas 
escrivaninha tapetes 
estantes xícaras cortinas cadeiras 
desesperadamente vazias
apenas o grito mudo do teu espectro existe
envelheceste e agora escreves 
o teu ocaso

eu temo o tempo
em que o sol desfeito em cera
não mais ilumine a treva 
dos séculos
e que a imagem tua
que me cobre de ternura
seja apenas sombra

   Mar- 2021

quarta-feira, 9 de abril de 2025

No jazz da noite

choroso sax no jazz da noite
os livros espreitam à espera que os abram
no instante de nenhum açoite 
além da aflição pressentida
a solidão desenha contornos que aprecio
é amiga a solidão consentida
o brio do estro e a palavra no cio

não obstante o destino 
com olhos de lince e garras à mostra 
observa com aguçado tino
o desafino do homem em poeta
consagrado asceta na lida do verso
a alma acessa o complexo
amplexo da vida no instante diverso

mas será o homem completo
se a sina de compor o verso é única sina
se o poeta é todo ele e ele discreto
se quem manda é apenas o poema
a compor toda a vida por lei e decreto
questões que são dilema
o poeta é homem o homem poema

       Fev. 2021

Miragem

corpo mulher miragem
retido das retinas à memória
dono de insondáveis terras
latifúndio do coração
posse única do poeta amador

talvez outras vidas
noutras lidas do amor

plenilúnio que entoa 
sagrado timbre d'estrelas
astro profano que reverbera
fenômeno ou vida
banha o poema de ardor

será a natureza
no tempo de esgalhar a flor

suspeita vasta ramagem
mas era miragem era miragem

          Fev. 2021

sexta-feira, 4 de abril de 2025

Doces bárbaros

cuida desses meninos poeta
que romperam o ventre materno com asas
quebradas 
e jamais voarão
que deixarão cedo o seio da família
pra jamais...
quase todos com a noite pousada na pele
cuida desses meninos...

cuida desses meninos poeta
que vão se abrigar sob as marquises
disputando um palmo de chão
sem cama cobertor
ou colchão
assoprando com o pensamento as estrelas
e com as palpebras apagando a lua
cuida desses meninos...

cuida deles poeta
debutando no furto no roubo e no pinote
que portarão estiletes armas de fogo e drogas
que serão vendados amordaçados e torturados
pela polícia que não dorme em serviço
e acabarão em celas sujas e frias nas instituicões
de correção de menores
cuida desses meninos...

cuida deles poeta
que a escravidão ainda não acabou
e o sistema se encarrega de todos os petrechos
de tortura e opressão
dos negreiros senzalas e pedras que se carregue nos ambros
cuida!...

cuida poeta
que a favela é muito pouco
e a rua o tanto que lhes cabe dessa vida desgraçada
que o alimento é o travo amargo na boca
de cola de sapateiro e crack
e as vestes os trapos sebosos que os esquentam do relento
cuida deles poeta...

faça o que decretos leis estatutos ou políticas
não lograram fazer...
cuida poeta...

trata deles no teu poema reclamando
o que jamais haverá
que a força dos teus versos revigora suas asas inúteis

                   Fev- 2024

quarta-feira, 2 de abril de 2025

Com urgência

meu silêncio
comunica-se com o seu
dentro
                        de nossa noite

mas virá o dia
esse meio-escuro dia que há
do nosso encontro
              abismos
e nos amaremos com urgência
nessa estranheza
                   infinito desejo

                    Jan- 2024

quinta-feira, 13 de março de 2025

Quando ouço um blues

quando ouço um blues
vozes ancestrais falam em mim
raízes de tempos remotos
só então reconheço minha própria voz
que emerge de um recôdito
onde o ferro grita
nas trevas de meu corpo marcado
quando reconheço cada cicatriz
que tento ocultar sob as vestes
e explicarei apenas
aos que compreenderão os motivos
então entendo
as correntes dissimuladas
os embustes que utilizam os mercadores de gente
a minha própra ignorância
então tomo ciência dos próximos passos
minha luta passa a ser questão
a honra cavada com as unhas
a prole distante do ferro
das crueis artimanhas dos donos de gente
dos quais ainda sou cativo
quando minha arma é a palavra
a síntaxe do poema suado
as metáforas escavadas da pedra
quando a voz são vozes nas lavouras do peito
então me liberto
crio minha própria abolição
deixo de ser escravo dos senhores da casa grande 
entro na posse do meu destino
quando ouço um blues

                   Dez- 2023

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2025

O que Será- Milton Nascimento e Chico Buarque ao vivo no youtube. Em qualquer circunstância esses dois valem muito a pena, mas eu conferiria esta obra-prima da MPB neste vídeo.

A casa das três senhoras

Todos haviam partido. Pelo menos todos que vieram antes. Vivas apenas as filhas e suas famílias, mas viviam distantes. Eram filhas de apenas uma delas e sobrinhas das outras. Falo de três velhinhas pretas feito carvão. Três irmãs na vida e nos costumes. A casa era simples e sempre a mesma, construída por seus pais no germinar da comunidade. Sabia-se pouquíssimo, quase nada, das três solares e diurnas velhinhas. Eram uma imensa incógnita para as gentes do povoado. Insuspeitas, ninguém previa nada demais no comportamento das três. Passaram toda a vida praticamente despercebidas de quase todos ali. Sabia-se que amaram, que sofreram, prosperaram; uma delas fora até professora na rede pública de ensino. Viveram, sempre reclusas em si mesmas e na casa. Tinham sempre os mesmos hábitos e, personalidades muito tímidas, andavam sempre retraídas. Viveram sempre muito tristes e cabisbaixas desde a morte da mãe, ainda em suas juventudes, jamais superam a grande perda. O pai que nunca se casou depois da partida da esposa tinha sido em vida o grande esteio das três. Gerações e gerações os Pereira da Silva, era este o sobrenome das velhinhas, nunca tiveram posses, haviam notícias até de escravizados na família no tempo do Império. Como já dito, elas eram indiferentes para quase todo o bairro, mas havia uma outra família que as notaram, sobretudo na figura de um dos membros que amou desesperadamente a professora, irmã do meio, contudo a história deu em nada pois ela odiava aquele homem atrapalhado que a cortejara num tão sem jeito que a história toda havia beirado o absurdo. Nossas heroínas viveram fechadas como fechadas morreriam. Gostavam e cultivavam pequenas plantas em vazinhos de louça, e também apreciavam cachorros, não obstante há tempos não tutelavam nenhum depois da morte do último, o Théo, apenas a mais velha costumava alimentar os cães de rua. Tudo havia passado e estava sepultado na vida das três, coberto por uma espessa camada de pátina de uma vida distante no tempo. De maneira que eram religiosamente autômatas criaturas que subsistiam dentro da casa das três senhoras como era conhecida aquela velha morada muda, soturna, mas cheia de histórias de um tempo que jamais voltará. Viviam de pequenas coisas e amenidades. Nesta rotina minimizada sem novidades e nos seus próprios mundos que abatera-se sobre as três lindas velhinhas, uma tristeza crescente abrigava-se nos bons coraçõeszinhos das nossas personagens. Já não tinham força para viver, para solucionar o mínimo esforço que demandava três vidas numa casa, estavam mais a abandonarem-se ao mundo que deixavam transparecer. Não se sabe como nem quando decidiram isso, mas uma tragédia abateu a manhã daquele outono de folhas caídas daquele ano, as três velhinhas haviam amanhecido, naquela amena manhã de sábado, mortas cada qual em seu quarto. Esta inesperado notícia chocou a todos da comunidade. Não tinham desprezo pela vida, mas laceravam-lhes o coração a solidão, o vazio, a dor de tanta perda e tanta renúncia que lhes impulseram o tempo e o destino. E decidiram o que vieram mastigando vagarosamente e em detalhes durante todos esses anos de sofrimento. Eliane, a irmã do meio, viúva e sem filhos encarregara-se de tudo, não sem antes combinar em detalhes com Márcia, a mais velha, solteira e também sem filhos e Elaine, a mais nova, viúva de alguns pares de anos do grande amor de sua vida e pai de suas duas filhas. Descera então à rua do comércio, a poucas quadras da casa e adquirira o arsênico clandestinamente, substância letal que provocava uma morte rápida e sem dor, voltou a casa e trocou um olhar mudo com as irmãs querendo dizer que estava tudo certo. Caído o crepúsculo da noite daquela fatídica sexta, reuniram-se as três em torno da mesa de jantar e sentaram-se em suas respectivas cadeiras de sempre, depois de fervida a água e preparado o chá  iserindo o veneno em cada uma das xícaras. Sem muita cerimônia, apenas um silêncio cúmplice entre as três, sorveram o conteúde que pertencia a cada uma e foram para seus quartos. O resultado foi o fim duma história que na soma dos prós e contras valeu a pena, e que o proseguimento dava-se com as famílias das amadas sexagenárias filhas de Elaine, sobrinhas de Márcia e Eliane, que sofreram muito com a decisão das três velhinhas, mas entenderam perfeitamente os seus motivos, afinal a vida fustiga cada um a seu modo, e há golpes da vida que são incontornáveis.

                      Fev- 2025
Quando as condições estiverem mais favoráveis e, estarão, este conto estará melhor escrito. O autor.

terça-feira, 25 de fevereiro de 2025

Formação do mendigo Pedro

primeiro ele não delinquiu
agressão não foi capaz de proferir e a própria voz não exibia
precariamente estudou entre a gente e até amou
mas era preciso fumar, era preciso perder-se entre a multidão
e como sustentar o vício e o desejo de tudo que não podia
a própria família era uma incógnita indevassável
no turbilhão voraz da disputa pelo lucro muitos se perderam
ele não assimilou os códigos de sobrevivência na selva
de repente a fuligem as carradas os ruídos e todas as engrenagens 
da cidade bruta ele era das ruas um espectro
sumido nas trevas do capitalismo 

                        Fev- 2025