sábado, 28 de agosto de 2021

Mãe negra

                                 à minha mãe

quanto de dor pisa a avenida
sem adereço 
eterno recomeço deste enredo sem palavras
o emprego do seu afeto
entre o prazer reprimido e o encargo

nenhuma poesia
nesta alegria sem sorriso
doada
neste abraço que protege indefeso
sem qualquer interesse
do desapego

o tempo não cede 
ao argumento que alegam teus olhos
que propõe teu desejo
somos cinzas sem direitos
e dissipamos 
sopro

mãe 

gestasse o homem não seria tanto
na dor e no pranto
do ser que desentranha

parisse o homem não seria tudo
no fruto que fere feto e já fato
esta voz que ecoa 
fora do útero

mãe negra é a mãe branca
com os encargos da cor

        Agos- 2021

terça-feira, 20 de abril de 2021

A complexa cor dos anjos

demônios não existem
mas eu vi um demônio
ele era negrão, negro, negrinho
era algo encarnado
não era ilusão ou devaneio
da mente cientista
não era o negro de sombra
era negro matéria
melhor, 
não era matéria abstrata
era matéria concreta
eu vi um demônio
ou talvez fosse apenas um anjo

      Abr- 2021

domingo, 21 de março de 2021

Mosquito

nem sempre perverso
nem sempre ser odioso
sanguíneo
às vezes sagrado
vida e sopro
grandes distâncias para um ser infinito
longevo 
do tempo restrito
infeliz abismo da incerteza
predador 
da humana seiva
puro instinto
obstinado e precavido
intui o alvo
enseja o instante
na sua sorte de inseto
resignado ao des/conhecido
faminto
entrega-se à morte

   Mar- 2021


sexta-feira, 12 de março de 2021

Contrastes

as mãos que fazem, 
promulgam e executam as leis
são brancas, no parlamento, 
governos, tribunais e delegacias.
as que escrevem os jornais,
revistas, roteiros de filmes 
e novelas também.
as que escrevem 
nos quadros-negros 
e livros nas universidades,
despacham nas repartições públicas.

para que sejam negras 
as que executam e sofrem 
os homicídios,
padecem o peso das leis,
as mãos do cárcere, 
desemprego e analfabetismo.
as da pá, faxina, 
enxada, lixo e facão,
das marmitas, indigência, 
mendicância, fome e favelas.

o branco escravizou,
torturou, perseguiu e matou.
o negro construiu 
a riqueza do país para usufruto daquele.

tratando de raça
o Brasil é país diverso,
mas os contrastes
não acabam na cor das peles.

     Mar- 2021

quarta-feira, 10 de março de 2021

Nosso idioma

seja como for
eu quero a tua língua
pra falar a língua
que me cubra a ideia
do seu vernáculo

pra umedecer o sexo
de intenções pejar a boca

eu quero você despida
das tantas máscaras cotidianas
o pudor 
que se dissipa
na apoteose pubiana
segredos da cama

seja como for
eu quero a tua língua
você despida
nosso íntimo idioma

    Mar- 2021


terça-feira, 9 de março de 2021

Negreiros

penumbra no sepulcro das águas
dos porões ao espanto das vagas
desabam quilombos em águas de ódio
uma lágrima encosta 
abaixo do rosto soterra o sorriso
a angústia de posse do peito
flagrante delito
no mar os corpos são alimento
vedada qualquer intenção de arbítrio
abolido qualquer sentimento
obsceno o atrito do grito com o vento  

         Mar- 2021            

Matando hora

num certo discreto torrão
de então incerto destino
os grandes grã-finos de então
decidiram por escravidão

o negro lutou
resistiu, se rebelou

nasce a nossa revolução
Zumbi funda Palmares
o negro trama ação
a golpes de capoeira e facão

e os distintos senhores
ao lucro, ouro, especulação

todos sabem a história
a colônia tornou-se nação
o negro que não esqueceu
luta por reparação

o branco manda
desmanda, senhor da decisão

e esta breve história
é o poeta matando a hora
com versos por se fazer
não sabe senão linhas tecer

o negro ainda sofre
mas hoje sabe escrever

      Mar- 2021

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2021

Tumbeiros II

feito morcegos 
espreitam a penumbra, 
encovam os olhos na treva, 
suspeitam mesmo de si 
à pele negra,
não há limite ou trégua.
têm pólvora nos dedos,
distinguem métodos,
a jurisdição
onde quem teme acata.
capitães do mato da selva urbana,
o mesmo que a vida
"protege" mata,
enquanto o burguês soma, 
acumula capital.
e pelo mister 
de matar se matam,
na urgência d'algum tiro
tiram a vida dum igual.
a quem se deve
a escavada chaga social,
estão nas ruas
os coevos tumbeiros.

      Fev. 2021

terça-feira, 23 de fevereiro de 2021

Tumbeiros

dos porões aos tubarões
estanque a dignidade 
vida e morte
esgotam as emoções
pressentidas
golilhas e correntes
o berço jaz no horizonte
fim que apenas
principia
princípio do precipício
faz-se uma nação
negra força motriz
atrozes flagelos
dorme nos tumbeiros
o intelecto
nem talvez e nem senão
acato e servilismo
e até hoje, senhores 
                   
                      -pois não!?

       Fev. 2021

sábado, 20 de fevereiro de 2021

Cedo ou tarde

não provarei esta comida
assim, posta na mesa,
que meu paladar 
e pudor
já não compreendem.
eu quero a cabeça dos senhores
herdeiros da afanada 
fortuna ancestral,
cedo ou tarde.

não vestirei esta roupa 
assim, cingindo meu corpo,
que minha pele 
e decoro 
também já não compreendem.
eu quero as vísceras,
cedo ou tarde, 
dos donos do poder 
usurpado.

o gado talvez cogite
no seu pastar cotidiano
vingança ao ser humano.

quem saberá?

fato é que meu paladar
degusta o menosprezo,
e enoja ao sórdido
alimento
do seu desprezo.

minha pele já não admite
o repugnante tecido da sua gula
e talvez tramo 
na surdina
sua queda destas alturas.

quem saberá?

       Fev. 2021

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2021

Lençóis trocados

divago devagar as vagas
nada além do mar 
de suas coxas
mãos dissipam-se pelo e pele
aclives e declives
sinuosidades 
travessas atravessam 
o instante

silêncios e sussurros
tudo é fogo
cometa no céu
da boca
do estômago
a dança étnica 
das nossas encruzilhadas

ato e essência
hiato
entreato 
da nossa ausência
o mundo
dentro do quarto

detalhes 
tornam-se tudo
nada escapa 
à chama 
que somos nós nus 
na cama

vulcânicas atividades
corposísmicas
a alma materializa-se
o corpo transcende

lençóis trocados secam ao vento

          Fev. 2021

terça-feira, 4 de agosto de 2020

Meu riso branco

meu riso branco não me torna branco
ainda que cubra de resignação
a fonte de avessos em que me afogo

minha alma lavada de potente alvejante
determina a paz enganosa
sob as intenções de que me esgoto
e de onde obtenho medos e angústias

meu riso branco não me torna branco
ainda que o hidrogênio da bomba
de injúrias esqueça dor na minha voz
que minha dicção maltrate minha alma negra

ainda exibo meu tanto de espanto
na face desdenhada do mau destino
não aceito o cartão com flores
daqueles que derramaram
apenas o ódio da sua peçonha
sobre o riso franco de uma criança boba

meu riso branco não me torna branco
é apenas a face oposta
da minha usurpada felicidade.

        Agost- 2020

quinta-feira, 9 de julho de 2020

O estigma do ferro

eu sou escravo
escravo subordinado às leis
do império da cor,
humilhado com o estigma do ferro.
não trago correntes nos pulsos
nos tornozelos, no pescoço.
sofisticaram os métodos e as correntes são outras.

escravo negro renegado
escravo de uma cultura de mentiras
escravo de padrões estabelecidos.

eu sou escravo
escravo de pareceres
contrários à minha imagem,
erigidos em terrenos arenosos
cujo objetivo é degenerar reputações.

escravo das tarifas
impostas à minha pele negra
das demandas rechaçadas
da liberdade abolida do meu arbítrio.

e me afogo na lama
da sofisticada trama psicopata.
alguns irmãos gozam da liberdade
e respiram bons ares,
muitos sucumbiram
aos atrozes crimes às suas peles.

eu sigo trancado
sob estas grades de engodos,
refém do extermínio da minha teima,
do preço alto pela audácia da negritude.
escravo da ditadura do perverso.

            Jul- 2020

domingo, 21 de junho de 2020

Esquecimento

vó é sagrada
a minha sofreu de esquecimento induzido
domesticada
a homicídios, seduções 
violência brava
dissolveu o miolo exposto às intemperes
a dignidade esgotada
vivia como escrava analfabeta
na favela/senzala
palmilhando o chão das lavouras da vida
encarcerada, presa (fácil), 
aglomerada
no eito
da busca por alimento de fim de feira
eles contam 
esquecimento
em aplicações financeiras
e covardes
atos mascarados

mãe é ofício santo
a minha trouxe as sequelas no intelecto
na aparência
no pranto
os tempos difíceis no silêncio
no esquecimento
também
na desilusão, no desencanto
o peso da batalha
nos olhos 
fundos
na sobrecarga sobre os ombros 
as poucas posses 
pelos cantos
e de conquista
o mal desenhar do nome
herança
das minhas fundas raízes
de desespero

e sangrando 
lágrimas condensadas
que não saem
dos 
olhos
fui bebendo gotas de espanto
escapando
de balas de preconceito
agressões de farda
negro
num mundo branco
rezando a cartilha do senhor de engenho
fazendo fortunas alheias
recebendo migalhas
dos desmamados dos peitos ancestrais
cujos atos
seguem sequelando pranto
aparência
intelecto
induzindo esquecimento
domesticando
pelo
menos
por enquanto

Jun- 2020