domingo, 25 de fevereiro de 2024

Agosto

na tua pele arde
qualquer coisa de fruta
talvez o cheiro talvez o sabor
que na boca 
fica depois do amor

os lençóis falam
de nossa pele indefesa
da chama que não se apaga
nossa fome
nossa orgia negra

ainda que durma
o corpo que se esgota
a noite teima e nos reclama
mesmo nas dores
que esconde a cama

amar ensina
a sina de viver o outro
o que a vida fustiga e fere
sepultamos na cinza
face de agosto

    Agos- 2021

sábado, 24 de fevereiro de 2024

Teus olhos II

                                        à Eliane a verdadeira dona desses olhos

             mar de cristais sob o sol
deposto
reflexo insigne do azul
                         no colo da noite
             brisa 
de inócuo sal e húmus
                       de algas virgens
                                          no lago
utópico
   cindindo pedra
e treva
           
teus olhos

auge do ímpeto
               da neve austral
de invernos
coroados de pássaros
               e ventos
                        ao largo da dor

vieram assim

prisma de nítidas cores
                  de náufragos velames
carregados de sonhos
                     fora da voragem
do fluir das eras

vieram assim
arder o fogo aceso do opaco
espelho das íris do poeta
           -sem poesia-
                    ária de leve melodia
do poema
desfeito no espectro
                             do verso

vieram como foram
flores no silêncio do bosque
sepultando 
          esperanças
                    vieram como foram
chuva de estio
em folhas de outono
         estórias de infância
                   vieram como foram
acordes de viola boêmia
sob os astros

               Set- 2021

Laço que não desata

réu no tribunal do teu ser
implica-me grave delito: amo!

quando não quis 
senão o beijo tinha um arsenal
de gestos que te escapava
vestígios de mulher
inevitável minha captura

na cela de ardentes 
desejos trancado nego a liberdade
condena-me e submeta 
à perpétua pena 
deste apego, acato!

não me furte porém
da urgência do calor do teu corpo
do hálito úmido do teu sexo
a desvairar-me o tino

quero os laços 
dos teus cabelos a dissipar-me o ar
a fustiga dos teus pelos
tatuando a carne nua do meu peito
apenas morrer 
de afeto no teu sangue

     Mar- 2021

terça-feira, 20 de fevereiro de 2024

Guerras

eles matam mulheres e crianças 
numa guerra fria
fria e sangrenta guerra
sem sentido ou justificativa
diante dos olhos atônitos do mundo
eles se matam uns aos outros nas periferias
por qualquer detalhe ou absurdo
derramam sangue aos jorros
como numa guerra intensa e permanente 
sem trégua ou remorso
guerra no campo
cidade e em toda parte guerra
enquanto eu que sofro por amar demais
mato-me a mim mesmo
um pouco cada dia
na minha guerra comigo
jogo-me bombas e granadas
dou-me tiros de fuzil e metralhadoras
e até planto minas explosivas
em meu peito cansado de guerra
sou o meu próprio inimigo e me saboto
com exércitos e artilharia pesada
tropas e tropas entrincheiradas 
dentro de mim
causando o meu extermínio
um pouco cada dia
na minha guerra comigo
tentando compreender
esta noite escura
escura e fria noite
noite infinita
sem o teu abrigo

                Fev- 2024

segunda-feira, 19 de fevereiro de 2024

Tambores

os tambores estão tocando
nos meandros da noite 
eu escuto
estão tocando
e são os filhos d'áfrica que tocam
eu reconheço o toque
são mãos negras
eu reconheço o som
estão tocando
estão tocando 
vamos sair pra noite amor
que áfrica está aqui
vamos amor
juntar-se a nossos irmãos
áfrica está aqui
irremediavelmente 
dentro de nós
somos áfrica amor
e os tambores estão chamando
eu reconheço o timbre
vamos amor
vamos amor

                  Fev- 2024

Nevoeiro

quando madrugada 
baixa nevoeiro sobre as casas
meu olhar embota lágrima
porque um tempo desperta súbito
a memória
de um mar sem fim
de obscuras embarcações com carga humana
partindo d'áfrica pra nunca mais
se baixa nevoeiro
é lamento de negro cativo nos porões 
dos negreiros
por séculos
se baixa nevoeiro sobre as casas
meu olhar embota lágrima
e sou um pouco nada
sou lástima

                    Fev- 2024

domingo, 18 de fevereiro de 2024

Guerra perdida

lutar pelo amor é guerra perdida
quando ele se esconde sob a terra estéril
de um peito indiferente
antes que germine bulbo e broto
a semente mofa
e não adianta levante ou tempestade
apenas entregar as armas
antes mais cedo 
que tarde

                    Fev- 2024

O sino da igreja

o sino da igreja é tão pobre
tão pobre que a gente quase não escuta
(a igreja é pobre coitada)
um som cansado 
de latão
cansado e desengonçado
trôpego como o andar do poeta
e o poeta é mais pobre que a igreja coitado
mas quando eu ganhar dinheiro com meus poemas
vou doar um sino novo à igreja
de bronze
do bronze mais nobre que houver
que soe como música
para todo o bairro
quero ouvir nitidamente 
as badaladas
das seis

                   Fev- 2024

Amicão

amigo cão
agora que tu partiste
é que dou-me por mim sozinho
sozinho e apatetado sem tua amizade
sei que estas em boa companhia 
perto de deus
brincando de anjo
bem canino
que é a tua agridoce sina
enquanto cumpro minha sina amarga
que tua festa abrandava
eras a própria festa
apenas tu sem a festa que fazias
festa aprontando divertimento pro amigo humano
e não tenho mais de quem arrancar um carinho
nas horas vagas
vagas e tristes horas
ficou a tristeza mordendo a carne
o que nunca foi teu feitio
quando for possível
pegue uma nave
rompa ligeiro o infinito espaço
e retorne para um último
abraço

                Fev- 2024

sábado, 17 de fevereiro de 2024

Sacerdócio

o padre showman
o padre altruísta
que sacerdócio me irrita?
mais alguma pista?!

               Fev- 2024

A palavra negro

a palavra negro 
quando queima na boca do negro
ou é vergonha de quem
ignora a negritude
ou é negro 
traidor da causa

a palavra negro 
quando queima na boca do branco
ou é ignorância de quem
desconhece o negro
ou é branco
racista pronto pra dar
o bote

falar de raça não deve ser tabu

a palavra negro
não é zona de risco pra queimar na boca
é orgulho e confiança
pra quem assume o crespo solto
ou na trança
pra quem assume o preto
da pele sem receio
ou medo

                      Fev- 2024

sexta-feira, 16 de fevereiro de 2024

Catedrais

quando vou pela são paulo antiga
tenho em mim catedrais de nosso senhor
não as que celebram em seus cultos dominicais
um deus branco apartado do homem comum que vêm nos trens
nas vias sujas de urina e excremento
nas esquinas perigosas
da cidade infelizmente abandonada
trago em mim as catedrais
que abrigam os desgraçados negros
nas suas escadarias
último refúgio
de quem não tem mais nada
em degraus 
aquilombados


                 Fev- 2024

Pauta

se uma pauta se faz apenas de pausa
não tem música ou músico
ou regência
ensurdecedor silêncio
sem espetáculo nem público
                           nem vida

a sedutora noite
sem os teus suspiros
              sem o sons do teu gozo
é pentagrama em branco
                 apenas possibilidade de amor
flor germinando na rocha
na solidão de inóspito deserto

                      Fev- 2024

O que é isso, companheiro?

não há mais as reuniões do partido
perdera-se na poeira o afinco
o engajamento ativo de nossas forças
a verve militante foi tomada de ferrugem
as reivindicações por justiça
injustamente esqueceu-se no fundo das gavetas
e nossa juventude escoou no turbilhão
fleumático do cotidiano
sem causa
sem objeto ou objetivo
num silêncio de necrópole esquecida
como não houvesse por que lutar
como não houvesse existido um sonho
nos apequenamos sem conquista
no sofá da sala
aos afagos inúteis de um jogo
de bola ou novela
com o intelecto amordaçado
em lastimoso silêncio
mofando

                    Fev- 2024

Folha

uma folha corria o jardim
sem galho sem viço amputada

               errava às ordens do vento
nos socavos fundos
de uma tarde perdida no tempo

               abandonada
                         ca
                              í
                                da

diante do meu nariz altivo
velho monarca egoísta

                    Fev- 2024