quarta-feira, 31 de janeiro de 2024

Área de risco

área de risco
que desliza e desmorona em escombros
não é só a encosta dos morros
onde vivem os desgraçados desta terra
área de risco
é também não mais indignar-se
não insurgir-se
contra a instituída sacanagem do estado
contra o povo deste país
rico e pobre na sua essência
é baixar a cabeça
e aceitar calado a imposta
escrecência
dos poderosos que ditam as regras
em forma de desprezo
e bosta

                   Jan- 2024

Urubu

me chamam de urubu
quisera ter asas fortes pra voar
pleno tantos céus
e a única carniça que me cabe 
é o preconceito
                      dos racistas

                       Jan- 2024

Iconoclastas

ódio aos terreiros
à macumba
à crença dos negros
os racistas estão soltos com facas nos dentes
e sangue nas nas mãos
a liberdade sobrevive aos tropeções
à democracia perneta gritando socorro
a fé nalfraga frente à estupidez
demonizam divindades negras
e exaltam violência
sem clemência ou culpa
pitam um deus homem velho e branco
quando pode ser uma criança
menina negra de trança
correndo n'alguma relva d'algum quintal
brincando de fabricar esperança
contra a embriaguez
do preconceito
enquanto os tortos conceitos iconoclastas
cerceam direitos
tolhem a liberdade ao culto
deus não tem igreja é de todas as crenças
de todos os povos
de cada homem que nele crê
e dos que não creem
também é pai
está para salvar indistintamente
mas com a cega violência
sofre a umbanda
sofre o candomblé


e os criminosos que devastam terreiros 
país afora, não sabem,
são afluentes da mesma dor.

               Jan- 2024

Insana espera

fazer de hoje meu descanso
este pilão socando destroços de dia
para conceber o doce amargo 
de tua ausência
acostumar-me ao abismo
que nasce do nosso encontro
n'alguma dura esquina
do desencontro
            regar a semente que germina
no frio concreto de teu peito
e reencontrar-te para colher a flor
sobrevivente
que nasce dessa insana espera...

                      Jan- 2024
                             

Verão

reproduzir-te nas minhas retinas
e inundado da tua imagem
transbordar as mágoas
                      no chuvoso janeiro

                      Jan- 2024

(Des)crença

a igreja me afasta 
de suas crenças e liturgias
adorar brancas entidades
recorrer a um deus branco que me resgate dos pecados
eu tão preto quanto os orixás
em que acreditarias tu
no meu lugar?

                   Jan- 2024

Manhã

eu acredito na noite
porque ela tem em si a cor de minha pele
e ainda que me seduza a serpente
de mortal peçonha
sobreviverei à esta manhã
à cilada entorpecente de sua alva
está escandalosa brancura
que me cega

                      Jan- 2024

Abraço

nem povos extintos pela guerra
nem livros inacabados que não chegaram a ser
nem escombros de pétalas no jardim do peito
nada que consuma a força de mil braços
ou que sepulte a madrugada embriagada
dos loucos da cidade
nem o cais do porto de muitos séculos
nem os logradouros insalubres da província
de onde os donos de terras negociavam seres
nada
nada nos afastará
da comunhão de nossos corpos
desesperadamente entregues à bruma da madrugada
nada impedirá que renasçamos onde nasce nosso afeto
no alarido de nossos braços
encontrando-se no meio da noite

                     Jan- 2024

terça-feira, 30 de janeiro de 2024

Desespero

ninguém mais se espanta com a miséria
catando restos de feira
ou no ceasa

quer alçar voo o pássaro
mas as asas estão partidas
a liberdade é sonho oculto sob às mágoas

estão turvas as águas
da bonança
nesta festa ninguém mais dança

e o olhar de fome da criança
já não comove
é certeiro o tiro no coração da esperança

já não negociam mais a paz
os coqueteis molotovs
nas passeatas

e a mãe que amarga aquele olhar
traz no ventre um vazio que já não aguenta
uma avenida onde antes placenta

             Jan- 2024

Abolição

liberdade concedida, 
abolição?
como, se antes escravos
depois portas abertas à sarjeta
ou o mesmo eito
por meio pão?

o poeta cunhou: meia obrigação! 
roubo-lhe o refrão
e modifico:

que houve no brasil, vergonha, 
algo menos 
que meia disposição!

                       Jan- 2024


segunda-feira, 29 de janeiro de 2024

Modesta crítica da arte moderna

pra quem já foi de todo margem
mas sem deixar de ousar
agora dividimos centro:

em generosas pinceladas
somos a arte e o artista
criando cores e expressões
mas falta preto na pauta
somos o jazz e o blues 
em abundância
ainda que de sapatilha 
nos vemos pouco embora 
dançamos nossa cor de ébano
pelos palcos do mundo
atuamos nas telas e teatros
e custuramos o enredo
letra por letra da trama 
do que somos e como vemos
ponto por ponto
somos rimas dramas
e metáforas de nós mesmos
somos forma e efeito
sob pedra sabão
mesmo que aleijados
embora falte o preto na flauta
no arco fino do violino
em todo esse ambiente
execução e criação

arte não se faz sozinho
de pausa em pauta ganhamos 
espaço e somos no mais nação

              Jan- 2024

Demanda

desfaleceu a escravidão 
não por abolição ou qualquer
outra farsa
mas por exigência imposta
hoje nos dão a cota
que já não basta
negritude não é só revolta
é união e coletividade
mar transbordando horizonte
exigimos integralidade

e descansaremos o muque
apenas de posse da equidade

              Jan- 2024

Minha pele

minha pele assimilou 
a noite desde o ventre materno

e traz o fogo das fornalhas 
de carvão na sua essência

afora a memória das crueis 
viagens pelo atlântico em fétidos 
porões encrustada

é plena de negritude
transpirando por todos os poros
e orgulha toda jornada

deste negro afro-brasileiro
de redescobertas raízes
resplandecendo

na noite de todo meu ser

                  Jan- 2024

Sem-teto

ele olhou fundo no olhar do outro
um monarca de terno que passava

um olhar de iceberg 
duro e frio que dizia:

não se desespere
existe alento para sua dor
é confortável ainda o relento
a fome passa
a rua é libertária
e tem o cobertor do vento

maior tormento passo eu doutor
sobrecarregado de obrigações ordinárias:
aplicações financeiras que consomem minhas energias
escola das crianças feira supermercado
não queira saber toda a verdade

o sem-teto seguiu ferido
pela lança dilacerante da realidade


                           Jan- 2024

Sonho

era um negreiro moderno
escuro frio e insalubre

quanto negro de olhos tristes 
numa gaiola aglomerados

no fluxo oceânico
de uma famosa avenida 

não era um navio
que partia das costas d'áfrica

transportando carga humana
atlântico adentro

era o camburão exíguo
de um torpe carro de polícia

                 Jan- 2024