sábado, 5 de outubro de 2024

Entre as flores do jardim

trabalhadores de tabaco nos dentes
ruminam vida e amassam mágoas sob as solas
enlameadas dos sapatos rotos.
enquanto uma tristeza turva os contornos
dos meus olhos com um pranto lento.

não viram meus olhos,
exaustos de tanto horizonte desperdiçado,
outras marcas do destino além das avarias
nos espectros de toda uma sociedade.
enquanto eu andava entre os presos da Sibéria,
e vi partir, pensei que para nunca mais,
a nau com os olhos de minha amada.

nasceu o poeta depois da guerra,
mutilado da sua dignidade:
flores germinaram no jardim de minha mãe,
rios serpentearam entre as pedras até o mar,
passaram nuvens ocultando a nudez do poente
sob os dedos ainda atônitos com a beleza destes versos.

testemunhei meu irmão caminhar
para morrer adiante sob a tristeza de meus olhos,
entre as flores do jardim de minha mãe,
ou mesmo alguém com semelhantes feições,
já não me lembro de quase nada.
eu mesmo pereci no estio entre as flores de minha mãe.

e quando a madrugada era apenas uma fresta
que eu perseguia na trégua dos anos
quando não esperava mais nada da vida,
surgiu entre a brisa que embotava meu olhar cansado
a silhueta que pensei ser minha mãe a cuidar do jardim,
mas era, novamente, a imagem da mulher que amei.

                             Julho- 2017

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