sexta-feira, 9 de fevereiro de 2024

Preto no branco

pego-me estupefato 
numa reflexão:
que negro ver como escravo:
o que nutre o ódio
de negro ser
ou o que carregou pedra
na escravidão:
este foi esteio da nação
aquele cabe na palma 
de minha mão.

                 Fev- 2024

quinta-feira, 8 de fevereiro de 2024

Desdobro

sem nenhum vestígio de voo
sigo que resvalo na lama
mas se é o horizonte que almejo
o desdobro em mais de mim mesmo
não me entrego à lastimosa trama
de ser só homem de ser só negro de ser só drama

                 Fev- 2024

Constatação

quantas vezes jovem desorientado
não fui ultrajado ao extremo
diante dum ato de explícito racismo
e não trazia nenhum argumento
na algibeira comigo
eram muitos os intrumentos 
de opressão contra minha cor negra
hoje já homem feito constato
de fato não há lei ou regra
que desfaça este silencioso pacto
da branquitude
e seguimos na mesma merda!

               Fev- 2024

A bordo negro

mãos contra o muro
horário de pico
em plena avenida paulista
como viesse escrito
no meio da testa:
"eu sou bandido!"

esmiuçam os bolsos
como argumento o instinto
horário de almoço
quantas vezes o branco
sofreu este acinte

nenhum flagrante delito
mas o mal está feito
constrageram mais um preto
e no peito um grito:
"é proibido sair do gueto?"

e tem gente que insiste
no brasil não há preconceito

                 Fev- 2024

quarta-feira, 7 de fevereiro de 2024

Autópsia

esgarçar o peito aflito 
de poeta negro
investigar fibra por fibra
algum poema 
que nasce
feito cão sem dono
d'algum desastre
de abandono 
ou desenlace
e antes que se alastre
raiz no corpo
lançá-lo 
à cruz
como 
a um 
mártir

            Fev- 2024

Poema para a branca manhã

perdoe branca manhã
se busco refúgio na noite
por não 
compreende-la 
muito bem
mas a dor de ser homem
frágil em tudo
persegue-me como a um criminoso
persegue a polícia
a dor de ser negro me toma
invade o peito
estrangulado de mágoa
mas um dia
no regaço quente da amada
onde posso aliviar-me
das angústias
compreenderei-te como compreendo
minhas próprias dores
e te abraçarei com ternura
como à uma irmã
branca
e doce manhã

             Fev- 2024

terça-feira, 6 de fevereiro de 2024

Diploma

não fosse 
o tempo perdido
nas lavouras de café e cana
nos engenhos e garimpos
torrando ao sol
o miolo
talvez houvesse
doutor

não fosse
o sangue vertido nas secas terras
dos insalubres logradouros
coagulando na poeira
dos séculos
talvez houvesse
doutor

não fosse
toda perpetrada tortura
gargalheiras golilhas grilhetas
e cepos
os bárbaros assassinatos 
na densa selva
da história
talvez houvesse
doutor

mas tenho apenas versos 
sepultados nas frestas do tempo

                Jan- 2024

Existe uma dívida

onde foi que cortou
o perverso chicote do feitor
no dorço negro escravo
ou nas costas 
brancas 
do senhor?

                Fev- 2024

segunda-feira, 5 de fevereiro de 2024

Meritofarsa

fala meritocrata
se aquele branco que levou a disputa
contra o preto favela
em condição desigual e injusta
foi mérito próprio 
ou pura farsa

mérito é vencer um igual
é levar a disputa
em condição equânime
justa
não é quem já de largada 
tem a vantagem 
e vence 
a parada

meritocracia 
não mede competência
em realidade desigual
expõe diferença

nela a elite branca
ganha de bandeja melhores cargos
melhores vagas em concursos
e universidades

e aos que vêm de baixo
resta amargar a mágoa do fracasso

                 Fev- 2024

Versutopia

o engajado verso
que com esmero se escreve
se esquece
e vira cinzas nas páginas amareladas
dum livro 
vira fosco vidro
que se estilhaça em fragmento
de invisível nódoa
no pensamento
de quem lê
e goza

                    Fev- 2024

comia a bola nos campos das favelas da cidade. não tinha com o que nem como. quê de craque meio pelé meio garrincha seu livro era a bola. ainda que não quisesse outra coisa que não ela apenas bola tudo bola andou entortando as linhas do gramado os perímetros da área. sem igual craque da pelota passou da noite para dia a cachimbar seus sonhos o cachimbo que a boca entorta entortou seus voos. consumia e consumia-se crack nos desvãos da favela nos matos atrás dos campos era já consagrado craque não mais da bola mas do crack.

domingo, 4 de fevereiro de 2024

Reflexão

infância preta na favela
perto do álccol e das drogas e longe da escola
diz muito ao olhar agudo 
e nada à vista rasa
ou à vesga visão dos hipócritas
lembra senzala
ou às leis que enojam
qual ventre livre de escrava
ou tetas secas que engordam
o robusto fruto da sinhá
que mais há de vir
desta equação amarga?
o inesperado astro da bola
ou o ordinário
cargo subalterno
n'alguma empresa ou fábrica?
ou a gaveta fria do IML
sem mais nem identidade
sem mais nada?

enquanto reflito
mais um grã-fino esnoba
o favelado pretinho que esmola

               Jan- 2024

quinta-feira, 1 de fevereiro de 2024

Crespitude

meu crespo dito ruim
é que me fortalece na caminhada
cresce força e negritude
mas na sua boca
é vergonha descarada
enquanto não passa
de atitude
e mais nada

             Fev- 2024

Lapso de cor

no papel o branco
é cor igual a qualquer outra
inclusive ao preto
por que na gente os brancos são mais
e os pretos 
cercados de preconceitos
são vistos 
como animais?

              Fev- 2024