segunda-feira, 29 de janeiro de 2024

Sonho

era um negreiro moderno
escuro frio e insalubre

quanto negro de olhos tristes 
numa gaiola aglomerados

no fluxo oceânico
de uma famosa avenida 

não era um navio
que partia das costas d'áfrica

transportando carga humana
atlântico adentro

era o camburão exíguo
de um torpe carro de polícia

                 Jan- 2024

sábado, 27 de janeiro de 2024

Quando ouço um blues

quando ouço um blues
vozes ancestrais falam em mim
um lamento de cratera no centro do ser
sons de antigas lavouras
engenhos
e garimpos
a moenda dentro do peito
remoendo memórias que guarda a pele
memórias de um tempo obscuro
mas uma força tremenda
que vem do âmago
rompe com o passado de lágrimas
e negro refeito das amarguras
deixo que me atravesse um sopro de liberdade
que o som se aposse de mim
porque é tempo de música
                 quando ouço um blues

                                  Jan- 2024

quarta-feira, 24 de janeiro de 2024

Os condenados

os últimos dos infelizes
(à beira da mendicância
chaga ainda mais exposta)
habitam as ruas 
do centro da cidade
mergulhados nas próprias sombras
sem teto
sem terra
sem pão
jazem loucos 
de tráfego e ausência
é o passante que passa e ignora
o estômago vazio que apavora
a chuva que chove e molha
a criança que tem fome e chora
condenados dos invernos
o frio cortando a carne à lâmina afiada
sobrevivem
não há horizonte possível
apenas imponentes edifícios enquadrando 
a visão às estruturas concreto e aço
guerreiros sem armaduras
amarguram a vida dura
enredo costurado atrás na história
árvore com raízes que datam 
da escravatura

e os poderosos guiam automóveis
no valor de apartamentos

até quando?

                       Jan- 2024

terça-feira, 23 de janeiro de 2024

Eu a noite e o breu

súbito apaga-se a luz
espanto
             adeus

                 Jan- 2024

Gratidão

agradeço
ao sêmen que a transportou
ao óvulo que a recebeu
                           e originou
ao cordão que a nutriu
e alimentou
à placenta que a protegeu
                              e sustentou
à mulher e ao homem
que a criou

agradeço!

agora
nesse mundo desumano
       onde há tanta injustiça
lutamos você e eu
          nosso amor em apogeu

                            Jan- 2024

segunda-feira, 22 de janeiro de 2024

Uma força

nos acompanha 
de outros tempos outras eras
uma força revolucionária
de profundas raízes
encravadas em nosso peito
e tronco forte e folhas verdes
que nos põe de pé
todos os dias de nossa jornada
e nos oferece a seiva
alimenta com o fruto
força que vem 
de terras distantes 
unindo nossas bocas
nossos braços
nosso inesgotável querer
traçada ainda
na ancestralidade nossa
essa força que vejo nos teus olhos
toda manhã quando acordas
e que não falta nos meus
essa força perene:
AMOR

            Jan- 2024

quinta-feira, 18 de janeiro de 2024

Tempo de amar

onde você é mulher 
e eu sou homem
na tumescência úmida de nossa carne
embaraço a razão e sou um pouco
animal sedento
acovardado por toda ternura
que transpira 
dos teus poros
mas hoje tenho que te amar
amar e sorver teu beijo
amar e matar o desejo
esta insaciável fome de tua boca
de teu corpo em chamas
que me chama
e exige que eu me afogue
dentro do teu ser
irremediavelmente entregue às horas 
fugídias do nosso íntimo 
carnaval

                       Jan- 2024

Sonhos

são gigantescos os meus sonhos
têm a estatura de nós dois

                 Jan- 2024

Desnuda

flor que ao solo fértil
baixo-horizonte de teu rosto
desabrocha
cuidadosamente gestada na essência
do teu ser
            desperta e aguça
esta sede inesgotável de teus lábios
rubros de entardecer

a metrópole transpira 
fluxo arterial constante dramas sociais
inflação violência desemprego
    fome que teima em doer fome
        miséria que persiste
ilustrão as páginas dos jornais

de minha parte absorto
na estampa translúcida de teu esmalte
que te desnuda e revela
                                   resta lutar
mesmo que com palavras
por dias melhores

                        Jan- 2024

Sincretismo

ancestral desejo reavido
por nossos olhos intensos de emoções
palavras que não foram ditas
entendidas dentro
do peito
nossos contrastes 
pavimentando o sentimento
no solo seguro
das nossas certezas
protegidos dos riscos e perigos
dos ventos que a vida trás

o que somos eu e você
homem e mulher na essência da vida
no âmogo dum tempo perdido
no tempo
alheios a quase tudo

arcanjo e orixá no sincretismo
do nosso encontro
caminhando rumo ao mar de estrelas
que nos aguarda no universo
multicor do nosso querer
                                 de mãos dadas

                       Jan-2024


Lucidez

minha bagagem perdeu-se nos becos 
e nas esquinas
nos bares do centro da cidade
(sob a vigília insistente da polícia
e seu arsenal de repressão contra a minha pele
destino que me ronda que me cerca)
ou até mesmo nas bocas
das amantes

-no útero castigado da mãe negra

agora a estafa
quer que me renda ao sono dos infelizes
conceda vitória sem luta ao opressor
mas não me entrego de bandeja 
ao inimigo
lúcido 
abro um livro
e transcendo corpo e alma
deixo que as águas me levem
pr'alguma foz perdida
desta vastidão de sombra e espaço
desaguar no mar insondável
de minha sina 

                Jan- 2024

Solitude

quantas vezes
sob a lança afiada da madrugada
                      cinza
não adocei demais o café
pra compensar o amargor
                                         desta vida

é gris a madrugada
e a escuridão que transpira
                        através das paredes
toma posse de meu sangue
ganha meus poros
                  e apenas a sua ausência

tenho apenas a sua ausência
neste exíguo sopro de vida
        que transpassa meu coração
e deságua nos meus olhos
                          duros
fixos como esta madrugada vidrada
de um vidro opaco
opaco e inflexível vidro
               mulher cor das manhãs

                      a sua grave ausência
manchando meu silêncio
                         carregado de noite
e solitude

                        Jan- 2024

terça-feira, 16 de janeiro de 2024

Reencontro

dentro do seu abraço
tingindo de noite a sua pele
meus braços
              corpos redescobertos
nosso inesgotável
rebelar-se

                      Jan- 2024

segunda-feira, 15 de janeiro de 2024

A palavra liberta

a navalha na carne do poema
não é lanhar o coração
é exigir a secular dívida que não foi paga
arte é pedra
no sapato do opressor
navalha sempre foi na mão do negro
agora é a palavra

eu que nunca escrevi nada
agora me escrevo
em signos
mas temos que tomar todo cuidado
os donos das coisas
estão nos vigiando de perto
e não há nada que se possa fazer
apenas não abandonar 
a lida

fazer dela questão de vida
como um faminto luta por um prato de comida
e se a palavra liberta
tomar posse dela
ainda que sob toda a opressão
fazer dela o nosso tesouro
há tempos subtraído covardemente
de nossas mãos

                 Jan- 2024

sábado, 13 de janeiro de 2024

Atrás da culatra

atrás da culatra
o assassino assas(sina)-se
antes de matar se mata
aspirações desaguam no lodo
e a bala gasta
alimenta a indústria da morte
eriquece os donos da posse
sequer enxerga 
que a chaga é social
não está no seu desafeto
no seu vasto arsenal
de desengano
perde a vida no breve instante 
de disparar o cano

                      Jan- 2024