sábado, 15 de fevereiro de 2025

Memórias

havia portão árvores e a rua
um danado cão divertindo-se em urinar
aos teus pés
assuntos delicados
nos quais eu não podia tocar
tua boca
teus olhos
teus braços
você mulher e intelecto
eu homem e todo coragem

(a repressão disfarçada 
na noite
do meu saber
o opressor oculto no opaco da juventude
de quase toda a juventude
eu era livre e prisioneiro no mesmo homem)

e o desesperado desejo
de teus lábios

mais futuro que passado
lua vento tecendo outonos e céu estrelado
a percorrer ainda vasto chão 
de perdas e ganhos
e o apaixonado coração

                        Jan- 2024

Intempérie duma dama

não sou fantoche
de um amor perfeito
mas tento
enquadrar-me ao teu jeito

bolei no pensamento uma boa
estrateja
agora se tu trovejas
transindo-me d'espanto

sereno uma brisa leve
e no silêncio da minha aragem
esperarei que abrande

tua imensa tempestade

            Fev- 2024

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2025

Um nome

                                            à Eliane Pereira da Silva

ostensiva a boca chama um nome
talvez tenha sido sonho ou um torpor matutino com restos de sono
e este nome está em meu sangue como a chama está no fogo
irreversivelmente parte que não segrega
este nome está grafado em cadernos perdidos nesta estante em desordem
um nome que trago estação após estação por entre escritos
esquecidos em folhas ao vento entregues
são letras tatuadas na memória cuja boca jamais esquecerá a pronúncia
e ratos e baratas não levarão pelos vãos estreitos da noite para as trevas
nome que não cabe nos sonhos de qualquer poeta desgraçado
que está apenas no grito do galo tecendo manhã com outros galos como diz o poema
nome que perdeu-se no cartório ante tantos nomes em papéis escritos
e que na desordem dos dias vai ficando assim na poeira do tempo
nos arquivos do meu peito esfacelado
soterrado sob um coração de pedra pra eternidade da carne que apodrecerá sob a terra 
e levará esta palavra no seu cerne mas que o verme não saberá dizer ao certo 
a quem pertence aquela perfeita junção de sílabas 
que te obstrui as entranhas

                  Mar- 2024


quarta-feira, 12 de fevereiro de 2025

Farsa

nos meandros de nós uma farsa
essa avenida que aproxima 
e afasta
pois
em todo caso
melhor que um são dois

              Fev- 2024

terça-feira, 28 de janeiro de 2025

Cervantes em São Paulo

olhando da janela do ônibus
cervantes talvez imaginasse quixote em batalha
contra os arranha-céus
mas vendo a cidade despida
coberta apenas por tanto gás e ruído
espantar-se-ia o grande mestre com as gentes da metrópole
e destacado das pessoas por suas roupas esfarrapadas
sua cor escura e aspecto medonho um bicho:
um mendigo esfaimado revirando o lixo
o que para muitos é processo natural das grandes urbes
para o poeta pareceria menos a mão da natureza que a do homem
e tudo que visse era ouropel ubíquo e frágil
quixote talvez voltasse para casa
sem batalha sem cavalo sem espada apenas resignado
com uma dor imensa no peito

                     Jan- 2025

segunda-feira, 27 de janeiro de 2025

Catedral da Sé

o prefeito da cidade tomou uma medida disparatada
varreu das escadarias da catedral os bêbados e os vagabundos
cobriu o câncer com a mortalha de turim
só que a cidade está desprezada
as gentes que vivem na cidade estão desprezadas
mendigos, moradores de rua e usuários de droga
são a nova confuguração do povo do centro
as escadarias das catedrais são do povo
são dos bêbados e dos vagabundos que precisam mais de deus
que os burgueses que ouvem os sermões do arcebispo

                              Jan- 2025

domingo, 26 de janeiro de 2025

Fagulha

o amor que dorme
soterrado dentro do peito
está sujeito a vir à tona e incendiar
o corpo de quem ama
sorver o ar
queimar a cama
e não há oceano que debele as labaredas
que vão lamber tudo em volta
até que soçobre a casa
e tudo vire cinzas hulha
brasa
por conta duma
fagulha

                       Fev- 2024


Nossa terra

enquanto tardo a vida de escravidões
quando minha filha foi levada pela mão ao reino das sombras 
e minha esposa repousa um sono perpétuo sob as pálpebras
a cidade vazia sob o rigor do inverno espanta
os mendigos mortos aguardam algum calor dos sobreviventes da guerra
horas que escorrem em clepsidras
meu passo é lento minha esperança perdida
nos donos de nossa terra

                       Jan- 2025

quinta-feira, 23 de janeiro de 2025

O meu amor é maior que eu

o meu amor é maior que eu
se eu pudesse falar com você...
se eu pudesse beijar teu rosto inteiro
beijar teus olhos, tua testa, teu nariz, tua boca
beijar teus cabelos, teus braços, teus seios, teu sexo
se eu pudesse te abraçar muito
abraçar bem apertado
abraçar sem fim
abraçar abraçar abraçar até te sufocar
ler nos teus olhos a história da tua vida
eu a amo sem medida
amo desde sempre e por toda minha existência
já não sei mais o que fazer para viver sem você ao lado
sem você olhando nos meus olhos
sem você conversando comigo longamente
e sobre todos os assuntos por toda a noite
sem você pronunciando meu nome
sem você sorrindo ou chorando
sem teu cheiro
sem a tua saliva alimentando meu amor
a falta que você me faz
também é maior que eu, é maior que o mar
que o céu, que todas as galáxias
não queria estar em todos os momentos com você
pois apenas uma hora do seu dia
far-me-ia transbordar você por todos os poros
e a nossa conviência seria leve
mesmo intensa
saber do seu dia e contar do meu
calcular nossas dívidas e despesas
pois as coisas extremamentes chatas com você seriam alegrias para mim
eu a amo de um jeito profundo e infinito
dum jeito que excede os limites de uma vida
e vai por outras vidas
assim como acredito que veio de outras
extravasar este amor seria necessário muitos universos 
e muitas vidas
expandir ao infinito um sentimento que não cabe em mim
como o universo se expande sempre
se eu pudesse te falar um minuto...

             Jan- 2025

sexta-feira, 17 de janeiro de 2025

Dentro da noite

mergulhar nos teus mistérios
banhar-me no teu corpo de tuas lágrimas teu gozo teu suor
e sair isento de tua drástica ausência que me fere
na tua verve me alargar e te conhecer por dentro 
tomá-la nos braços e te proteger do mundo
ver nascer a noite nos teus olhos a noite mais intensa 
que nos abrigará nas horas remotas
no seu âmago todo escuro

                      Jan- 2025

Nada além de sombra

não sou gama 
nem machado nem barreto
não passo de sombra desprezada
na sociedade que deglute
como podre alimento
a cor que me distingue
bibelô das elites
sambo minha sorte de coisa
e carrego nas andanças
o fardo que esgota
peso imenso de ser anônimo negro
inserido no império intacto
da branquitude

                  Jan- 2025

Um negro nos teus braços

um negro nos teus braços
esta cor tão viva que destoa da paisagem
um negro da bahia de alagoas de nova york do congo do haiti
leão selvagem com destroços dentro do peito
infenso de todo à violência que o persegue
um negro dos quilombos em guerra com uma flecha no peito
tomado por estes espectros de correntes e estas grades fantasmas
teus braços tão delicados assustar-se-ão com a brutalidade
que tem sofrido este homem tão estranho à sociedade
este marginalizado ser que entoa paz
que persegue a justiça e a liberdade embora tão encarcerado
neste mundo onde o branco tudo pode e seu dever é servi-lo
um negro de corpo e alma negros nos teus braços brancos 
intactos braços de tantos privilégios
na tua pele tão livre de avessos
acaso tisnarias a história tão imaculada
da tua sorte?

                       Jan- 2025

quinta-feira, 16 de janeiro de 2025

Os espelhos

os espelhos estão cobertos 
minha mãe legou-me a mania de cobrir os espelhos quando chove
mania que herdou de minha avó
mas nos espelhos vejo apenas meu rosto aprendendo ser velho
tua imagem que me alegra o dia vejo apenas em fotografia
aprendi a te amar olhando tuas fotos
em que esquina exatamente vou ver teus olhos de novo?
medindo o chão talvez por uma timidez congênita
quando me extasiarei olhando minha imagem no espelho de tua íris?
deixastes tanta vida para um incerto depois
quando agora eu queria o teu calor
quando agora eu queria descobrir teu cheiro
deixar minha tatuagem no teu sangue
estes espelhos cobertos refletem minha vergonha agora
de haver deixado você partir nos braços de um vento de outono
de haver deixado você alheia de mim
de tê-la apenas nos versos

                           Jan- 2025

quarta-feira, 15 de janeiro de 2025

Assalariados da fome

moluscos do mangue eclodidos do ermo
formigas operárias da caatinga social, inóspita e árida terra 
dos sem-sorte implicados na lida do pão
assalariados de modestas estirpes
desaguam nas obras e fábricas das cidades
desafortunados empregam a força do braço na feitura da nação 
que os despreza
e máquinas humanas desdobram-se multidão saciando a sanha de progresso
dos patrões endinheirados
sob os uniformes e macacões que os distinguem fabricam fortunas
para gerações e gerações alheias 
enquanto estabelecem a miséria dos seus
por força ou em troca de uma códea
mirrada de existência

                             Jan- 2025

Mãos de operário

estas mãos que já foram humanas
e hoje sãos duros cascos de mãos operárias
embargadas mãos de ogro, infenso instrumento 
ao carinho de amor
mãos precificadas de irreversível brutalidade
obscuro sargaço em superfícies sensíveis
prólogo e epílogo das minhas vergonhas mais fundas
e expressão do progresso inacessível
lamentam seu destino de trevas 
condenadas às sombras do ostracismo na cela escura 
da íntima masmorra do meu ser medieval

            Jan- 2025