quarta-feira, 9 de julho de 2025

Linha de frente

meu mocambo no quilombo
é mocambo simples
tem milho cozido farofa e peixe
tenho o corpo fechado
na umbanda
primeiro guerreiro de Ganga
pra matar e morrer
sou linha 
de frente na guerra
contra branco tirano
senhor 
de 
terra

                Jul- 2025

Negro escravo

por que eu tenho 
que arreganhar os dentes 
num sorriso
se sou negro de ganho 
de moenda
e arado?

              Jul- 2025

Negra Carmelinda, minha avó.

pude ver a minha avó
tecendo nuvens de banzo
à beira do fogão

pude ganhar um afago
raro afago posto que dura a luta
de suas trêmulas mãos 
anciãs
mãos de quem foi escrava na vida
mesmo muito depois 
da abolição

a canga sobre os ombros
fez dela uma velha de corpo curvo
os olhos enevoados
refletiam a tragetória madrasta dos passos
e a pouca fé no homem 
que governa

negra analfabeta e muda
eram discretas as suas estórias de vó
a favela era o seu quilombo
e a maior agressão

sua pele era negra
a pouca liberdade era negra
a vida era negra

                     Jul- 2025

terça-feira, 8 de julho de 2025

Leis impostas

ruas escuras do gueto
por onde passa dia após dia toda a minha
angústia
de onde saio pro mundo
e me vasto
mas sempre volto
preso às leis impostas à minha pele negra
porque em vez de pontes
encontro muros

                           Jul- 2025

Aguda discrepância: um sumário.

ponta de faca do feitor
captura na tocaia cepo pelourinho
trágica morte na forca
negro de ganho
cachaça roupa urinada boca cariada
lambida por cachorro de rua

e o senhor acumulando
pesada fortuna

negra mucama lavoura
roupa no rio lida pesada na casa grande
criança senzala adolescente
nos engenhos 
estupro banzo de velho na enxada
ama de leite engordando
rebento de sinhá

e o sinhozinho estudando
no exterior

favelas extremos confins
presídios homicídio analfabetismo indigência
desemprego mendicância
no heterogênio tecido 
social a mesma aguda discrepância
viajou no tempo:

a riqueza é toda branca
e toda negra a tragédia da miséria.

                     Jul- 2025

O que fez o negro

vai na direção dos guetos
o negreiro cinza dos poderosos da pátria
pegar negro no tapa ou no tiro
muitas vezes 
os seus iguais na cor 

o que fez o negro
pra merecer a canga o cepo
o antolho
os muros que lhe tolhem o acesso
aos espaços de poder

o que fez o negro
pra merecer a mordaça as algemas
a máscara de ferro
as grades que lhe estorvam o direito
às posições de destaque

fato que nem mesmo 
nos guetos
o negro tem a paz dos dias amenos
sempre em sobresalto amarga 
a mão pesada da tirania
sob a égide das leis

                        Jul- 2025

Há de ter coragem

há de ter coragem 
de palmilhar o chão do senhor de terras
e não se rebelar por parte 
do latifundio

há de ter coragem 
de não sujar as vestes no tronco 
dum pelourinho covarde
tomado de gente

há de ter coragem 
de não dobrar os joelhos carregando 
pedra imensa serra acima
sob sol a pino

há de ter coragem 
de não comer em louça fina 
o coração do senhor de sua gente
numa revolta escrava

                         Jul- 2025

segunda-feira, 7 de julho de 2025

O que é do negro

o que é do negro
desde o ventre materno atingido na honra
ou antes predestinado
por mortal afronta
à vida indefesa na hora do parto
                    a prostrar qualquer homem
                    no âmago ferido
                    
o que é do negro
rendido à força de um tiro grosso
certeiro no coração
sem apelo ou honrosa saída
                    atirado à terra seca da indigência
                    sem porvir que prospere

o que é do negro
humilhado antes que conheça a guerra
surpreendido por um sistema
que sujeita e submete
                     ao poderio da artilharia da raça pura
                      sem miscigenado apelo

o que é do negro forças ocultas
orixás da minha crença
deuses que olham por seus filhos
o que é do negro

a flor que nasce na pedra
não encontra adubo que a dissemine
o negro na sociedade branca
agoniza ainda vivo
                      lutando por um escape
                      que o liberte destas algemas de dor

                     Jul- 2025

A cor do racismo

por que não me estarrece 
a cor que predomina
eurocêntrica cor enraizada
de sólidos alicerces entranhada
nos lugares de privilégio
em toda parte
por todo canto onde há destaque
onde há posição
um corpo branco pulsando vida
resguardado
escandalosamente inserido
na melhor das hipoteses
radicado no tecido que se quer justo 
que se quer isento
de qualquer mácula que o tisne
de qualquer nódoa
um corpo branco que colhe fortuna
bem-sucedido exitoso
florescente
sobre a sorte desfavorável
dum corpo negro

                    Jul- 2025

dos que me desentranharam

sei quase nada dos meus avós
nada dos meus bis 
e tataravós
dos meus país sei que sofreram e lutaram
pra ensinar educar alimentar e vestir
mas não preciso conhecer a história
da linhagem distante dos que me desentranharam
para saber
que sofreram aferro angústia flagelo
que foram marcados
a ferro em brasa
capturados vendidos enforcados
e uma série de graves afrontas
e humilhações
que reverberam no homem no poeta nos versos 
que agora lhes apresento 

                     Jul- 2025

Poeta do povo

um dia a máscara cairá
virá abaixo o escárnio da distinção do homem
ouvir-se-á nas bordas nos quilombos
nas favelas nos confins os mais distantes
o grito descomunal dum peito ao extremo oprimido
confins de nossas adestradas gentes
graduadas na tv de meias verdades e foscos argumentos dos mais iguais
reverter-se-á a miopia do povo humilhado
através da voz ostensiva da poesia
do poeta do povo

                        Jul- 2025

domingo, 6 de julho de 2025

As armas a prata o trono

não amargo cárcere
nas sujas senzalas de então
nem estou nas lavouras nas moendas
ou nos engenhos
muito menos sou negro forro
nasci livre à custa da luta ancestral
mas sinto o peso da pedra
pedra de erguer muros
de construir passagens aos bens
do patronato branco
livre sou até que marcado de cicatrizes
ceda meu corpo ao açoite diário
da exploração
da opressão e do escárnio
que explícitos impõem-se pela força
sob o império descarado
de uma cor que se distingue se exalta
se jacta de um poder usurpado
a braquitude tem as armas
a prata o trono
o negro trabalha se esfola se extingue 
eles usufluem apoderam-se
perpetuam-se exclusivos donos
de entes adestrados

                     Jul- 2025

New racist

ah sim, negro é lindo!
mas é artigo que se pesa em arroba
minha filha jamais estará metida 
nuns braços negros
e meu filho é educado bastante para estar com uma negra
mas sim, negro é lindo!

negro é lindo
mas foi vendido no mercado negro por patacas de ouro
em insalubres logradouros
e minha estirpe é pura 
não admite mistura que a tisne a alvura
mas claro, negro é lindo!

negro é lindo
mas urinou e evacuou nas vestes em público
pendurado no tronco feito charque
que ao sol se curte
e tem na essência o costume do cárcere
argolas e golilhas
mas certo, negro é lindo!

ah sim, negro é lindo!
e a sociedade precisa do negro
mas não metido nas escolas universidades e nos lugares do branco
tem negro hoje até nos parlamentos
cada qual no seu lugar
negro sim nasceu para chibata
está no DNA.

                         Jul- 2025

sexta-feira, 4 de julho de 2025

Aonde poesia?

e nuvens flainam
e folhas adejam à brisa
um negrinho chuteira extinta
chão pé e poeira
trama a fama adversa
assistem incrédulos os esfarrapados
quase se exime a favela
diante de tanto risco tanta fome
nas faces o abandono
será viável o impossível
se nem o mínimo
se nem se aprende se nem se come
e mais um cadáver grita
indiferente à atmosfera que paira
do moleque que acredita
e desfalece a poesia
inerte à realidade explícita
o dia mais azul é cinza
amarga a escrita

         Jul- 2025

domingo, 8 de junho de 2025

A chaga não se apaga

a chaga não se apaga da noite pro dia
não se apaga a chaga incrustrada por séculos
como lanho de couro no lombo
não se apaga a chaga dum crime sob a égide das leis
um crime viajado no tempo que nos atinge
e fere de morte nossos teres e haveres
neste circo sem lona e sem público
neste tecido esfarrapado e sujo
a chaga não se apaga
não se apaga a chaga e vivemos como artigo de segunda 
ignorados no fundo do estoque
pegando poeira e traça com o pior do pior
e nó na garganta nuvens nos olhos apagados feito astro que expira 
num céu de ofuscantes estrelas
a chaga não se apaga não se apaga a chaga

               Jun- 2025