sábado, 6 de janeiro de 2024

Sob os olhos atônitos do dia o crime perfeito

chibata cantou
no lombo do preto
e eu sei quem mandou
cantar a chibata
tem diploma de doutor
e usa gravata
 
            Jan- 2024

domingo, 10 de outubro de 2021

o negro, o, BRANCO
bebe água branca
e vomita 
sangue
sobre as flores
negras
do jardim.

Mar- 2021

sexta-feira, 3 de setembro de 2021

Luzia

               (sobre incêndio no museu nacional)

Luzia nasceu negra
séculos antes em terra indígina
ou foi trazida? 
migrou da guerra?
resta apenas o crânio de luzia
consumido pelo fogo
o fogo amargo
fogo da nação suicida.

   Set- 2021

sábado, 28 de agosto de 2021

Mãe negra

                                 à minha mãe

quanto de dor pisa a avenida
sem adereço 
eterno recomeço deste enredo sem palavras
o emprego do seu afeto
entre o prazer reprimido e o encargo

nenhuma poesia
nesta alegria sem sorriso
doada
neste abraço que protege indefeso
sem qualquer interesse
do desapego

o tempo não cede 
ao argumento que alegam teus olhos
que propõe teu desejo
somos cinzas sem direitos
e dissipamos 
sopro

mãe 

gestasse o homem não seria tanto
na dor e no pranto
do ser que desentranha

parisse o homem não seria tudo
no fruto que fere feto e já fato
esta voz que ecoa 
fora do útero

mãe negra é a mãe branca
com os encargos da cor

        Agos- 2021

terça-feira, 20 de abril de 2021

A complexa cor dos anjos

demônios não existem
mas eu vi um demônio
ele era negrão, negro, negrinho
era algo encarnado
não era ilusão ou devaneio
da mente cientista
não era o negro de sombra
era negro matéria
melhor, 
não era matéria abstrata
era matéria concreta
eu vi um demônio
ou talvez fosse apenas um anjo

      Abr- 2021

domingo, 21 de março de 2021

Mosquito

nem sempre perverso
nem sempre ser odioso
sanguíneo
às vezes sagrado
vida e sopro
grandes distâncias para um ser infinito
longevo 
do tempo restrito
infeliz abismo da incerteza
predador 
da humana seiva
puro instinto
obstinado e precavido
intui o alvo
enseja o instante
na sua sorte de inseto
resignado ao des/conhecido
faminto
entrega-se à morte

   Mar- 2021


sexta-feira, 12 de março de 2021

Contrastes

as mãos que fazem, 
promulgam e executam as leis
são brancas, no parlamento, 
governos, tribunais e delegacias.
as que escrevem os jornais,
revistas, roteiros de filmes 
e novelas também.
as que escrevem 
nos quadros-negros 
e livros nas universidades,
despacham nas repartições públicas.

para que sejam negras 
as que executam e sofrem 
os homicídios,
padecem o peso das leis,
as mãos do cárcere, 
desemprego e analfabetismo.
as da pá, faxina, 
enxada, lixo e facão,
das marmitas, indigência, 
mendicância, fome e favelas.

o branco escravizou,
torturou, perseguiu e matou.
o negro construiu 
a riqueza do país para usufruto daquele.

tratando de raça
o Brasil é país diverso,
mas os contrastes
não acabam na cor das peles.

     Mar- 2021

quarta-feira, 10 de março de 2021

Nosso idioma

seja como for
eu quero a tua língua
pra falar a língua
que me cubra a ideia
do seu vernáculo

pra umedecer o sexo
de intenções pejar a boca

eu quero você despida
das tantas máscaras cotidianas
o pudor 
que se dissipa
na apoteose pubiana
segredos da cama

seja como for
eu quero a tua língua
você despida
nosso íntimo idioma

    Mar- 2021


terça-feira, 9 de março de 2021

Negreiros

penumbra no sepulcro das águas
dos porões ao espanto das vagas
desabam quilombos em águas de ódio
uma lágrima encosta 
abaixo do rosto soterra o sorriso
a angústia de posse do peito
flagrante delito
no mar os corpos são alimento
vedada qualquer intenção de arbítrio
abolido qualquer sentimento
obsceno o atrito do grito com o vento  

         Mar- 2021            

Matando hora

num certo discreto torrão
de então incerto destino
os grandes grã-finos de então
decidiram por escravidão

o negro lutou
resistiu, se rebelou

nasce a nossa revolução
Zumbi funda Palmares
o negro trama ação
a golpes de capoeira e facão

e os distintos senhores
ao lucro, ouro, especulação

todos sabem a história
a colônia tornou-se nação
o negro que não esqueceu
luta por reparação

o branco manda
desmanda, senhor da decisão

e esta breve história
é o poeta matando a hora
com versos por se fazer
não sabe senão linhas tecer

o negro ainda sofre
mas hoje sabe escrever

      Mar- 2021

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2021

Tumbeiros II

feito morcegos 
espreitam a penumbra, 
encovam os olhos na treva, 
suspeitam mesmo de si 
à pele negra,
não há limite ou trégua.
têm pólvora nos dedos,
distinguem métodos,
a jurisdição
onde quem teme acata.
capitães do mato da selva urbana,
o mesmo que a vida
"protege" mata,
enquanto o burguês soma, 
acumula capital.
e pelo mister 
de matar se matam,
na urgência d'algum tiro
tiram a vida dum igual.
a quem se deve
a escavada chaga social,
estão nas ruas
os coevos tumbeiros.

      Fev. 2021

terça-feira, 23 de fevereiro de 2021

Tumbeiros

dos porões aos tubarões
estanque a dignidade 
vida e morte
esgotam as emoções
pressentidas
golilhas e correntes
o berço jaz no horizonte
fim que apenas
principia
princípio do precipício
faz-se uma nação
negra força motriz
atrozes flagelos
dorme nos tumbeiros
o intelecto
nem talvez e nem senão
acato e servilismo
e até hoje, senhores 
                   
                      -pois não!?

       Fev. 2021

sábado, 20 de fevereiro de 2021

Cedo ou tarde

não provarei esta comida
assim, posta na mesa,
que meu paladar 
e pudor
já não compreendem.
eu quero a cabeça dos senhores
herdeiros da afanada 
fortuna ancestral,
cedo ou tarde.

não vestirei esta roupa 
assim, cingindo meu corpo,
que minha pele 
e decoro 
também já não compreendem.
eu quero as vísceras,
cedo ou tarde, 
dos donos do poder 
usurpado.

o gado talvez cogite
no seu pastar cotidiano
vingança ao ser humano.

quem saberá?

fato é que meu paladar
degusta o menosprezo,
e enoja ao sórdido
alimento
do seu desprezo.

minha pele já não admite
o repugnante tecido da sua gula
e talvez tramo 
na surdina
sua queda destas alturas.

quem saberá?

       Fev. 2021

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2021

Lençóis trocados

divago devagar as vagas
nada além do mar 
de suas coxas
mãos dissipam-se pelo e pele
aclives e declives
sinuosidades 
travessas atravessam 
o instante

silêncios e sussurros
tudo é fogo
cometa no céu
da boca
do estômago
a dança étnica 
das nossas encruzilhadas

ato e essência
hiato
entreato 
da nossa ausência
o mundo
dentro do quarto

detalhes 
tornam-se tudo
nada escapa 
à chama 
que somos nós nus 
na cama

vulcânicas atividades
corposísmicas
a alma materializa-se
o corpo transcende

lençóis trocados secam ao vento

          Fev. 2021