sexta-feira, 22 de março de 2024

O barro transborda

o barro da minha cidade está nas bordas.
o negro está nas bordas, está no barro das bordas da minha cidade. 
cifrado no barro o negro está, no longe onde se extravia a vida, onde há vida que se nega a negra cor do meu país.
o asfalto chegou (para alguns lugares, às bordas das bordas não).
carnaval sem adereço, lágrima clara sobre pele escura, o negro chora, não é mais dono do estandarte. a passista hoje tem endereço nobre, a favela sobra.
o barro está nas bordas, nada muda, tudo muda numa metamorfose trágica, no geográfico apogeu do abandono desprezo descaso. o investimento do estado é parco, exceto o cinza de barcas sombrias onipotentes onipresentes com seus radares discriminatórios.
quase sempre o alvo é negro, dos disparos deflagrados. a farda a patente o coturno sobre o pescoço da negritude sufoca diversidade, os soldados são negros, treinados para ignorar. 
o poder pelo dinheiro aniquila com os sonhos das gentes, antes mesmo que pudessem sonhar.
ninguém está sozinho afundando na lama, almeja-se a cauda duma estrela, dum cometa que irá resgatar a todos dos confins.
o barro está nas bordas, estende-se infinito de cidade em cidade até a próxima capital, a conurbação, megalópole do desespero.
quanto de barro há nos edifícios cobertos de luxo? que braços são os verdadeiros donos do progresso?
os pais são os pés e os braços do meu país, os filhos a cara cara da fome, onde todos trabalham e ninguém come. nestes cantos lamentos mudos mudam a cara da cidade de alegre em triste, onde tudo existe à margem, nas margens de regatos podres, de magros ratos e esquálidos destinos. o muro o mudo olhar a ponte em escombro escondem a parcela condenada dos que habitam vielas barracos ruelas morros com cheiro de morte, onde todos improvisam um sol que não existe, um céu nublado toda vida. os cães fazem a festa no lixo amontoado em fins de ruas.
nas bordas da minha cidade existe vida, existe olhares suplicantes que ninguém vê, ninguém quer ver. o natal passado levou beatriz muito cedo, cedo demais para que se entenda, no dia que nasceu o menino deus, o presente de uma tonelada na cabeça do seio familiar, na cabeça de toda a comunidade acostumada ao barro ao berro, à boneca branca da menina negra sob escombros.
nos terreiros apenas os orixás são os mesmos, as mãos nos tambores são outras, as bocas que entoam as litanias são outras, os corpos que recebem os santos são outros.
a história se repete, o barro das cidades do meu país transborda.

Jan- 22

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