domingo, 4 de fevereiro de 2024

Reflexão

infância preta na favela
perto do álccol e das drogas e longe da escola
diz muito ao olhar agudo 
e nada à vista rasa
ou à vesga visão dos hipócritas
lembra senzala
ou às leis que enojam
qual ventre livre de escrava
ou tetas secas que engordam
o robusto fruto da sinhá
que mais há de vir
desta equação amarga?
o inesperado astro da bola
ou o ordinário
cargo subalterno
n'alguma empresa ou fábrica?
ou a gaveta fria do IML
sem mais nem identidade
sem mais nada?

enquanto reflito
mais um grã-fino esnoba
o favelado pretinho que esmola

               Jan- 2024

quinta-feira, 1 de fevereiro de 2024

Crespitude

meu crespo dito ruim
é que me fortalece na caminhada
cresce força e negritude
mas na sua boca
é vergonha descarada
enquanto não passa
de atitude
e mais nada

             Fev- 2024

Lapso de cor

no papel o branco
é cor igual a qualquer outra
inclusive ao preto
por que na gente os brancos são mais
e os pretos 
cercados de preconceitos
são vistos 
como animais?

              Fev- 2024

quarta-feira, 31 de janeiro de 2024

Área de risco

área de risco
que desliza e desmorona em escombros
não é só a encosta dos morros
onde vivem os desgraçados desta terra
área de risco
é também não mais indignar-se
não insurgir-se
contra a instituída sacanagem do estado
contra o povo deste país
rico e pobre na sua essência
é baixar a cabeça
e aceitar calado a imposta
escrecência
dos poderosos que ditam as regras
em forma de desprezo
e bosta

                   Jan- 2024

Urubu

me chamam de urubu
quisera ter asas fortes pra voar
pleno tantos céus
e a única carniça que me cabe 
é o preconceito
                      dos racistas

                       Jan- 2024

Iconoclastas

ódio aos terreiros
à macumba
à crença dos negros
os racistas estão soltos com facas nos dentes
e sangue nas nas mãos
a liberdade sobrevive aos tropeções
à democracia perneta gritando socorro
a fé nalfraga frente à estupidez
demonizam divindades negras
e exaltam violência
sem clemência ou culpa
pitam um deus homem velho e branco
quando pode ser uma criança
menina negra de trança
correndo n'alguma relva d'algum quintal
brincando de fabricar esperança
contra a embriaguez
do preconceito
enquanto os tortos conceitos iconoclastas
cerceam direitos
tolhem a liberdade ao culto
deus não tem igreja é de todas as crenças
de todos os povos
de cada homem que nele crê
e dos que não creem
também é pai
está para salvar indistintamente
mas com a cega violência
sofre a umbanda
sofre o candomblé


e os criminosos que devastam terreiros 
país afora, não sabem,
são afluentes da mesma dor.

               Jan- 2024

Insana espera

fazer de hoje meu descanso
este pilão socando destroços de dia
para conceber o doce amargo 
de tua ausência
acostumar-me ao abismo
que nasce do nosso encontro
n'alguma dura esquina
do desencontro
            regar a semente que germina
no frio concreto de teu peito
e reencontrar-te para colher a flor
sobrevivente
que nasce dessa insana espera...

                      Jan- 2024
                             

Verão

reproduzir-te nas minhas retinas
e inundado da tua imagem
transbordar as mágoas
                      no chuvoso janeiro

                      Jan- 2024

(Des)crença

a igreja me afasta 
de suas crenças e liturgias
adorar brancas entidades
recorrer a um deus branco que me resgate dos pecados
eu tão preto quanto os orixás
em que acreditarias tu
no meu lugar?

                   Jan- 2024

Manhã

eu acredito na noite
porque ela tem em si a cor de minha pele
e ainda que me seduza a serpente
de mortal peçonha
sobreviverei à esta manhã
à cilada entorpecente de sua alva
está escandalosa brancura
que me cega

                      Jan- 2024

Abraço

nem povos extintos pela guerra
nem livros inacabados que não chegaram a ser
nem escombros de pétalas no jardim do peito
nada que consuma a força de mil braços
ou que sepulte a madrugada embriagada
dos loucos da cidade
nem o cais do porto de muitos séculos
nem os logradouros insalubres da província
de onde os donos de terras negociavam seres
nada
nada nos afastará
da comunhão de nossos corpos
desesperadamente entregues à bruma da madrugada
nada impedirá que renasçamos onde nasce nosso afeto
no alarido de nossos braços
encontrando-se no meio da noite

                     Jan- 2024

terça-feira, 30 de janeiro de 2024

Desespero

ninguém mais se espanta com a miséria
catando restos de feira
ou no ceasa

quer alçar voo o pássaro
mas as asas estão partidas
a liberdade é sonho oculto sob às mágoas

estão turvas as águas
da bonança
nesta festa ninguém mais dança

e o olhar de fome da criança
já não comove
é certeiro o tiro no coração da esperança

já não negociam mais a paz
os coqueteis molotovs
nas passeatas

e a mãe que amarga aquele olhar
traz no ventre um vazio que já não aguenta
uma avenida onde antes placenta

             Jan- 2024

Abolição

liberdade concedida, 
abolição?
como, se antes escravos
depois portas abertas à sarjeta
ou o mesmo eito
por meio pão?

o poeta cunhou: meia obrigação! 
roubo-lhe o refrão
e modifico:

que houve no brasil, vergonha, 
algo menos 
que meia disposição!

                       Jan- 2024