terça-feira, 14 de janeiro de 2025

Filhos da mesma mãe

vivemos alheios ao parentesco
ávaros, vivemos indiferentes
enquanto gira o globo e tudo volta
o alimento nos chega à mesa num passe de mágica
nós que comemos, e desperdissamos alheios ainda
depois de haverem-se perdido toneladas do mesmo alimento no transporte
e ainda alheios nos regalamos com fartura
mas na lama escura e podre do completo anonimato
nos escombros duros de anseios bombardeados
subexistem filhos da mesma mãe
irmãos de pátria e sangue derramado no campo de batalha
são esses seres que tropeçamos nas ruas
andarilhos da grande cidade
órfãos d'áfrica, grande mãe da humanidade
os enigmas obscuros das urbes
vitimados das tiranias com que forjou-se a nação
os destroços humanos de nossos atos
eu falo dos indigentes que povoam as ruas sob nosso desprezo
falo de gente que transpira fome
sob nossa arrogância

                          Jan- 2025

segunda-feira, 13 de janeiro de 2025

Origem

o mendigo vem de um ventre castigado
que por sua vez vem de outro ventre castigado
que vem de outro e de outro e de outro
até às savanas d'áfrica a captura a tortura os porões dos negreiros
que desaguam em terras brasileiras

para o eito forçado o tronco a chibata e outras crueldades
enfim a "liberdade" as ruas a exploração
as favelas a fome o álcool as drogas a doença mental a indigência
é essa a origem de muitos mendigos que vês diariamente nas ruas
a história brasileira omitida

                   Jan- 2025

sábado, 11 de janeiro de 2025

Sob as barbas de deus

a féria é pouca pro mês
o catado da feira não sobra pra semana
as sinfônicas do rádio dão lições de delicadeza
e vou-me embrutecendo com a árdua lida
tuas mãos suaves de docente
extranharão a calosidade grosseira das minhas
o intelecto desenrolando assim assim
estalado de sol tamanho
o patrão mais quer explorar
a sociedade mais oprime arrogante sob as barbas de deus
os sonhos todos de vida a dois definham como nuvens
dispersas na abóboda do céu
este negócio de amor escolhe cor e condição
sem que não sofra ninguém
nesta sociedade que destrói com requintes de crueldade 
a pessoa física de quem ganha o pão com a força dos braços
e os humildes planos de família satisfeitos
vêm com prazo de validade vencido de fábrica
do ventre materno ao inferno
desta vida de silvas

                       Jan- 2025

A grande noite

entre a desordem das gavetas
e os livros empoeirados a noite galopa seu trote lento
tentando talvez seduzir-me a embrenhar seus segredos
jovem destemida propõe jogos perigosos
jogos de embriaguez, vadiagens e inconsequências
mas quero aprender da noite o poder sedutor de sua escuridão
a força de comportar o peso da beleza de tanta estrela
apenas uma estrela brilha na noite de minha pele
amor que excede o peso que suporta meu corpo
a noite silenciosa me olha e aconselha:
"olhe pra dentro de si, encontre no âmago a força"
e nos braços da amada descubro força suficiente
para sustentar sua luz

                       Jan- 2025

Amar esta mulher

amar esta mulher é um pouco liberdade,
ambíguo como uma alforria num país escravagista.
um pouco prisão, estar restrito aos limites do corpo
e não dispor do poder de pássaro que enxerga de cima a savana.

mas é meu vento de outono
aquela brisa leve que refresca e dilui a tara abrasadora do sol
é meu rio manso em pleno estio
quando posso despir-me e mergulhar o corpo
nas águas frescas do seu leito

é enfim sentir-se vivendo estações
e suas mais íntimas características e peculiaridades
detendo-se na intensa experiência de experimentar
a vida no que ela oferece de mais saboroso
o espetáculo das sensações

alimento-me deste amor sem conforto ou luxo
como faminto mendigo alimentando-se do que conseguiu perambulando a cidade, 
com a mesma voracidade e urgência
num canto de rua entre as gentes passando indiferentes.

ignoro a fronteira entre o querer e o poder
pois a entrega deste amor é como devaneio de poeta
diamante indescoberto no fundo da terra
entre a distância e o estar no corpo.

                              Jan- 2025

Esfarrapados

a sociedade tolera os esfarrapados
infectada pelo racismo e a indiferença
doença corrosiva e terminal
e a criança negra, a criança pobre reconhece no branco o seu ídolo
libertando-se às vezes apenas depois de adulto
trauma instalado, crime consumado estamos todos doentes
a infecção alastra-se por todo o corpo social
as elites intactas gozam o seu sucesso
os esfarrapados perecem sem direitos
a sociedade então rui em escombros de ignorância
jazem indivíduo e humanidade
vazia a terra segue seu distino 
de globo inabitado

                 Jan- 2025

quarta-feira, 8 de janeiro de 2025

O amor é um direito

os anos vão passando
e a gente vai passando com eles.
indigno-me ainda com coisas que não podemos mudar de imediato,
coisas como o racismo, a desigualdade social e as injustiças.
ainda há poucos com conciência das coisas com as quais me indigno.
mas o tempo encarregar-se-a delas certamente.
quem dorme, acordará! quem luta, vencerá!
dedico meus versos, muitas vezes ácidos,
a quem não se cansa dessa luta árdua por justiça.
o coração da gente é feito criança acreditando sempre numa utopia.
chegará um tempo que hão de poder brincar
livres como brincam as crianças.
o tempo também carrega nossos dentes, nossos cabelos e o viço de nossa pele.
carrega numa avalanche as pessoas que amamos, as coisas que adquirimos
ao longo da vida e vai deixando um vazio nunca preenchido.
e se existe uma fórmula que faz valer à pena tanta luta, 
tanta perda e tanto vazio essa fórmula é o amor.
um dia o grande Nelson Mandela disse:
"ninguém nasce odiando, e se ensinamos a odiar, podemos ensinar a amar."
aprender amar, saber amar é fundamental, ninguém pode nos tirar isso.
a sociedade há de amar um dia,
quando este dia chegar teremos uma terra onde viver.
hoje temos um lugar estranho onde o homem pisa no homem, mais que pisa,
escarra na cara, tortura, mata.
quem tem o poder quer mais poder e oprime, humilha, explora.
o oprimido é cada vez mais oprimido e, o direito é tirado com violência, 
de muitos o direito foi tirado gerações e gerações anteriores.
a maior violência está neste ponto, o pobre, o injustiçado, 
o maltratado muitas vezes sofre sem saber
o ponto de partida de tanta angústia, de tanto sofrer.
mas com poesia, com livros, com conhecimento
vamos construir uma sociedade sã para todos, de todos.
hoje este direito de viver num lugar saudável é para quem come, para quem veste,
para quem tem axcesso ao amor,
à cultura, ao conhecimento, à informação, ao conforto.
hoje o lugar saudável pra se viver
é para poucos.
 
                     Jan- 2025

domingo, 5 de janeiro de 2025

Primeiro poema

este livro não começa aqui
vem mesmo de antes
da primeira visão que tive de ti
que ainda guardo
bem viva na memória
antes mesmo que eu soubesse
organizar as palavras
compor as letras
e não haverá cabo
isso mesmo não haverá final
tudo o que eu escrever
até a última palavra
será dedicado a você
mesmo os poemas mais duros
que não falem de amor
não falem da proeza
que é amar-te minha musa
amor que eu jamais soube igual

              Fev- 2024

Colóquio com a mulher amada

quanto não ficou apertado
este coração menino num quarto escuro
esperando um sinal
um indício ou qualquer outra alegria efêmera
mas com a poeira do tempo
aprendeu libertar-se e tomar o ar
dum dia azul
e brincar na grama como fosse ainda
um jovem menino encantado
com as belezas da vida
madurei dum jeito gente não fruta
aos trancos e barrancos
e isso tranquiliza a gente dum jeito...
sei seu endereço
e sei que posso encontrar-te na rua
por estes meros acasos
que a vida proporciona
e sabe que de maduro isso me basta
não direi que não conto
com a possibilidade de um abraço prolongado
de um beijo nos lábios
ou de uma história pra contar ou ouvir
dentro duma noite branda
tudo isso me assalta ainda o peito e eu aceito
como possibilidade que se realize
mas não brigo mais com deus e o mundo
pra tornar realidade uma coisa
que cabe quietinha
no canto dum coração que ainda bate
quando deixar de bater não sei
ninguém sabe
mas ainda não deixou
e este cantinho é teu
amor que não acabou
que ainda arde
vivo feito você e eu
dentro duma tarde

                  Fev- 2024

Lugar de negro

mau destino sabido
mesmo antes da concepção.
de quantos maus destinos sabidos 
o estarrecimento?

pelourinho é pouco
chibata é pouco
o tronco é pouco
ainda tem a pinga barata, 
intragável, goela abaixo.
eu que gosto de livros e conhecimento,
mas tenho cicatrizes.

o mijo nas vestes, o sebo, 
a comida podre, o intelecto esfacelado.

o cigarro, a droga, o homicídio, 
o estupro, a indigência, a exclusão,
tudo sobre meus ombros.
quando abolir-se-ão das máscaras, do cepo,
das grades, das algemas?
e o orgulho de ser negro, quando fato?

não estou pela misericórdia divina, 
a dívida é do homem.
credor rigoroso, 
meu verso é centavo.
 
                    Jan- 2024

poema inconcluso e sem data

menino negro na favela
todos diziam de sua inteligência
havia céu e estrada
potencial de voo e tempo
mas mais perto
do álcool e das drogas
entrou 
para estatística

A mulher que eu amo

a mulher que eu amo é diferente
é doce, leve, incapaz de qualquer absurdo
e muito inteligente
eu estava achando estranho
mas estou feliz
eu nunca ouvi ela dizer meu nome
e faz eternidade que ela
dirigiu a palavra 
a mim, a voz doce 
que não sai do meu pensamento
o riso discreto
que um dia soou 
aos meus ouvidos
enfim, tudo que se chama amor
e que vivemos
que a mulher que eu amo
é a mulher que eu amo
e pronto

          28/03/1997

Poema sem correção e inconcluso

o brasil nasceu dos braços dessa gente preta
nos engenhos, nas lavouras, na extração das riquezas












enquanto houver um oprimido
sob o macacão operário
enquanto houver um mendigo
comendo os restos dos endinheirados
não posso enfeitar o discurso com palavras amenas
e meu verso áspero permeia o poema

meu olhar treinado reconhece a pele negra
sob o macacão operário
reconhece ainda a pele negra
na pele do mendigo revirando os restos no lixo
muita gente passa e nem vê

não vê nas novelas, nos filmes, nas propagandas
a ausência do protagonismo de minha gente
não vê nos livros em suas estantes
nos jornais que leem
nos bancos das universidades onde estudam seus filhos
a ausência do protagonismo de minha gente preta

os milicos largaram o osso
depois de grossa pancadaria e protesto
mas entra governo sai governo
e minha gente negra ainda é o alvo da opressão
ainda engole a pinga forçada goela abaixo
e fuma a bomba h dos excluídos

o best seller ainda é *********
e suas referências brancas, seus romances vazios
enquanto provavelmente meus versos
morrerão esquecidos nas páginas desse blog
e escaparão à análise dos críticos, pesquisadores e historiadores

a indiferença do mundo contra um povo
contra sua cultura, sua arte, sua etnia e sua cor
os assassinatos covardes de luther king, steve biko, malcolm x
dos amarildos e genivaldos nos becos escuros das favelas
e muita gente passa e nem vê

mas esse povo existe
como existe sua cultura, sua arte, sua etnia e sua cor
e a chaga exposta da indiferença permanecerá em meus versos
sem pretenção nemhuma além da denúncia
meu dedo está na ferida

                            Dez- 2023

Uma vírgula 2

toda uma história de avessos
destino traçado antes da concepção
ainda em tempos bem distantes
e este inferno fora do útero
pra negro retinto estava por uma vírgula
de agressões trazia um tratado
palavras que lhe corriam nas veias
não que as cultivasse
mas como ervas daninhas
brotavam no jardim de suas lutas
maltrapilho maltratado humilhado
bebeu fogo comeu vidro abraçou espinhos
banhou-se no sangue da íra alheia
e só queria uma fresta
mas o barro sujou-lhe os sapatos
lhe emporcalhou as vestes
penetrou-lhe a pele
no lugar de um coração
uma escultura escarlate percutia
e todas doces glórias que almeja um homem
na mão contrária seguiam
uns olhos de abismo em suas retinas
seguro porto de atraque vislumbra
nada mais que a morte segura
e queda-se sob uns cabelos de medusa
para sempre perdia-se

                         Dez- 2023

Uma vírgula

pra negro retinto 
estava por uma vírgula
o destino cobraria o preço caro
até os 15 tinha tudo
e tudo era nada
queria amor, carinho e tudo o mais

vintém não tinha, um esfregão
sua universidade
e as paralelas do barro
subúrbio, marmita, remela 
e trem lotado, e ainda queria amar

era cego posto não queria ver
sonhava pernas, duros peitos, buceta
a mais linda sonhava
pra retinto faltava uma vírgula

por fim achou quem amasse
quem alto sonhava pro seu parco defunto
envesgaram-te os olhos
onde passava era um canto de olho
um escárnio

depois de pancada, polícia
e escarros na cara andou percebendo
a mais linda não tem parecença
sua pele é pra outros voos, não este quase retinto

que a bala persegue
e muitas vezes encontra já com cicatrizes
andou percebendo que ascender
nesta sociedade é restrito
à aparência mais "amena", outro tom

a mais linda formou-se
e já tinha um bem, um ouro, um euro
e ele afro
fruto fraco pro jogo franco daquelas regras 
quedou-se inconformado

veio-lhe a prata tempora
os sonhos todos vencidos, pisados
nuvem nos olhos
calos nas mãos de tanto estudo
já não esperava mais da vida
eis tudo

                               Dez- 2023