terça-feira, 28 de janeiro de 2025

Cervantes em São Paulo

olhando da janela do ônibus
cervantes talvez imaginasse quixote em batalha
contra os arranha-céus
mas vendo a cidade despida
coberta apenas por tanto gás e ruído
espantar-se-ia o grande mestre com as gentes da metrópole
e destacado das pessoas por suas roupas esfarrapadas
sua cor escura e aspecto medonho um bicho:
um mendigo esfaimado revirando o lixo
o que para muitos é processo natural das grandes urbes
para o poeta pareceria menos a mão da natureza que a do homem
e tudo que visse era ouropel ubíquo e frágil
quixote talvez voltasse para casa
sem batalha sem cavalo sem espada apenas resignado
com uma dor imensa no peito

                     Jan- 2025

segunda-feira, 27 de janeiro de 2025

Catedral da Sé

o prefeito da cidade tomou uma medida disparatada
varreu das escadarias da catedral os bêbados e os vagabundos
cobriu o câncer com a mortalha de turim
só que a cidade está desprezada
as gentes que vivem na cidade estão desprezadas
mendigos, moradores de rua e usuários de droga
são a nova confuguração do povo do centro
as escadarias das catedrais são do povo
são dos bêbados e dos vagabundos que precisam mais de deus
que os burgueses que ouvem os sermões do arcebispo

                              Jan- 2025

domingo, 26 de janeiro de 2025

Fagulha

o amor que dorme
soterrado dentro do peito
está sujeito a vir à tona e incendiar
o corpo de quem ama
sorver o ar
queimar a cama
e não há oceano que debele as labaredas
que vão lamber tudo em volta
até que soçobre a casa
e tudo vire cinzas hulha
brasa
por conta duma
fagulha

                       Fev- 2024


Nossa terra

enquanto tardo a vida de escravidões
quando minha filha foi levada pela mão ao reino das sombras 
e minha esposa repousa um sono perpétuo sob as pálpebras
a cidade vazia sob o rigor do inverno espanta
os mendigos mortos aguardam algum calor dos sobreviventes da guerra
horas que escorrem em clepsidras
meu passo é lento minha esperança perdida
nos donos de nossa terra

                       Jan- 2025

quinta-feira, 23 de janeiro de 2025

O meu amor é maior que eu

o meu amor é maior que eu
se eu pudesse falar com você...
se eu pudesse beijar teu rosto inteiro
beijar teus olhos, tua testa, teu nariz, tua boca
beijar teus cabelos, teus braços, teus seios, teu sexo
se eu pudesse te abraçar muito
abraçar bem apertado
abraçar sem fim
abraçar abraçar abraçar até te sufocar
ler nos teus olhos a história da tua vida
eu a amo sem medida
amo desde sempre e por toda minha existência
já não sei mais o que fazer para viver sem você ao lado
sem você olhando nos meus olhos
sem você conversando comigo longamente
e sobre todos os assuntos por toda a noite
sem você pronunciando meu nome
sem você sorrindo ou chorando
sem teu cheiro
sem a tua saliva alimentando meu amor
a falta que você me faz
também é maior que eu, é maior que o mar
que o céu, que todas as galáxias
não queria estar em todos os momentos com você
pois apenas uma hora do seu dia
far-me-ia transbordar você por todos os poros
e a nossa conviência seria leve
mesmo intensa
saber do seu dia e contar do meu
calcular nossas dívidas e despesas
pois as coisas extremamentes chatas com você seriam alegrias para mim
eu a amo de um jeito profundo e infinito
dum jeito que excede os limites de uma vida
e vai por outras vidas
assim como acredito que veio de outras
extravasar este amor seria necessário muitos universos 
e muitas vidas
expandir ao infinito um sentimento que não cabe em mim
como o universo se expande sempre
se eu pudesse te falar um minuto...

             Jan- 2025

sexta-feira, 17 de janeiro de 2025

Dentro da noite

mergulhar nos teus mistérios
banhar-me no teu corpo de tuas lágrimas teu gozo teu suor
e sair isento de tua drástica ausência que me fere
na tua verve me alargar e te conhecer por dentro 
tomá-la nos braços e te proteger do mundo
ver nascer a noite nos teus olhos a noite mais intensa 
que nos abrigará nas horas remotas
no seu âmago todo escuro

                      Jan- 2025

Nada além de sombra

não sou gama 
nem machado nem barreto
não passo de sombra desprezada
na sociedade que deglute
como podre alimento
a cor que me distingue
bibelô das elites
sambo minha sorte de coisa
e carrego nas andanças
o fardo que esgota
peso imenso de ser anônimo negro
inserido no império intacto
da branquitude

                  Jan- 2025

Um negro nos teus braços

um negro nos teus braços
esta cor tão viva que destoa da paisagem
um negro da bahia de alagoas de nova york do congo do haiti
leão selvagem com destroços dentro do peito
infenso de todo à violência que o persegue
um negro dos quilombos em guerra com uma flecha no peito
tomado por estes espectros de correntes e estas grades fantasmas
teus braços tão delicados assustar-se-ão com a brutalidade
que tem sofrido este homem tão estranho à sociedade
este marginalizado ser que entoa paz
que persegue a justiça e a liberdade embora tão encarcerado
neste mundo onde o branco tudo pode e seu dever é servi-lo
um negro de corpo e alma negros nos teus braços brancos 
intactos braços de tantos privilégios
na tua pele tão livre de avessos
acaso tisnarias a história tão imaculada
da tua sorte?

                       Jan- 2025

quinta-feira, 16 de janeiro de 2025

Os espelhos

os espelhos estão cobertos 
minha mãe legou-me a mania de cobrir os espelhos quando chove
mania que herdou de minha avó
mas nos espelhos vejo apenas meu rosto aprendendo ser velho
tua imagem que me alegra o dia vejo apenas em fotografia
aprendi a te amar olhando tuas fotos
em que esquina exatamente vou ver teus olhos de novo?
medindo o chão talvez por uma timidez congênita
quando me extasiarei olhando minha imagem no espelho de tua íris?
deixastes tanta vida para um incerto depois
quando agora eu queria o teu calor
quando agora eu queria descobrir teu cheiro
deixar minha tatuagem no teu sangue
estes espelhos cobertos refletem minha vergonha agora
de haver deixado você partir nos braços de um vento de outono
de haver deixado você alheia de mim
de tê-la apenas nos versos

                           Jan- 2025

quarta-feira, 15 de janeiro de 2025

Assalariados da fome

moluscos do mangue eclodidos do ermo
formigas operárias da caatinga social, inóspita e árida terra 
dos sem-sorte implicados na lida do pão
assalariados de modestas estirpes
desaguam nas obras e fábricas das cidades
desafortunados empregam a força do braço na feitura da nação 
que os despreza
e máquinas humanas desdobram-se multidão saciando a sanha de progresso
dos patrões endinheirados
sob os uniformes e macacões que os distinguem fabricam fortunas
para gerações e gerações alheias 
enquanto estabelecem a miséria dos seus
por força ou em troca de uma códea
mirrada de existência

                             Jan- 2025

Mãos de operário

estas mãos que já foram humanas
e hoje sãos duros cascos de mãos operárias
embargadas mãos de ogro, infenso instrumento 
ao carinho de amor
mãos precificadas de irreversível brutalidade
obscuro sargaço em superfícies sensíveis
prólogo e epílogo das minhas vergonhas mais fundas
e expressão do progresso inacessível
lamentam seu destino de trevas 
condenadas às sombras do ostracismo na cela escura 
da íntima masmorra do meu ser medieval

            Jan- 2025

terça-feira, 14 de janeiro de 2025

Filhos da mesma mãe

vivemos alheios ao parentesco
ávaros, vivemos indiferentes
enquanto gira o globo e tudo volta
o alimento nos chega à mesa num passe de mágica
nós que comemos, e desperdissamos alheios ainda
depois de haverem-se perdido toneladas do mesmo alimento no transporte
e ainda alheios nos regalamos com fartura
mas na lama escura e podre do completo anonimato
nos escombros duros de anseios bombardeados
subexistem filhos da mesma mãe
irmãos de pátria e sangue derramado no campo de batalha
são esses seres que tropeçamos nas ruas
andarilhos da grande cidade
órfãos d'áfrica, grande mãe da humanidade
os enigmas obscuros das urbes
vitimados das tiranias com que forjou-se a nação
os destroços humanos de nossos atos
eu falo dos indigentes que povoam as ruas sob nosso desprezo
falo de gente que transpira fome
sob nossa arrogância

                          Jan- 2025

segunda-feira, 13 de janeiro de 2025

Origem

o mendigo vem de um ventre castigado
que por sua vez vem de outro ventre castigado
que vem de outro e de outro e de outro
até às savanas d'áfrica a captura a tortura os porões dos negreiros
que desaguam em terras brasileiras

para o eito forçado o tronco a chibata e outras crueldades
enfim a "liberdade" as ruas a exploração
as favelas a fome o álcool as drogas a doença mental a indigência
é essa a origem de muitos mendigos que vês diariamente nas ruas
a história brasileira omitida

                   Jan- 2025

sábado, 11 de janeiro de 2025

Sob as barbas de deus

a féria é pouca pro mês
o catado da feira não sobra pra semana
as sinfônicas do rádio dão lições de delicadeza
e vou-me embrutecendo com a árdua lida
tuas mãos suaves de docente
extranharão a calosidade grosseira das minhas
o intelecto desenrolando assim assim
estalado de sol tamanho
o patrão mais quer explorar
a sociedade mais oprime arrogante sob as barbas de deus
os sonhos todos de vida a dois definham como nuvens
dispersas na abóboda do céu
este negócio de amor escolhe cor e condição
sem que não sofra ninguém
nesta sociedade que destrói com requintes de crueldade 
a pessoa física de quem ganha o pão com a força dos braços
e os humildes planos de família satisfeitos
vêm com prazo de validade vencido de fábrica
do ventre materno ao inferno
desta vida de silvas

                       Jan- 2025

A grande noite

entre a desordem das gavetas
e os livros empoeirados a noite galopa seu trote lento
tentando talvez seduzir-me a embrenhar seus segredos
jovem destemida propõe jogos perigosos
jogos de embriaguez, vadiagens e inconsequências
mas quero aprender da noite o poder sedutor de sua escuridão
a força de comportar o peso da beleza de tanta estrela
apenas uma estrela brilha na noite de minha pele
amor que excede o peso que suporta meu corpo
a noite silenciosa me olha e aconselha:
"olhe pra dentro de si, encontre no âmago a força"
e nos braços da amada descubro força suficiente
para sustentar sua luz

                       Jan- 2025

Amar esta mulher

amar esta mulher é um pouco liberdade,
ambíguo como uma alforria num país escravagista.
um pouco prisão, estar restrito aos limites do corpo
e não dispor do poder de pássaro que enxerga de cima a savana.

mas é meu vento de outono
aquela brisa leve que refresca e dilui a tara abrasadora do sol
é meu rio manso em pleno estio
quando posso despir-me e mergulhar o corpo
nas águas frescas do seu leito

é enfim sentir-se vivendo estações
e suas mais íntimas características e peculiaridades
detendo-se na intensa experiência de experimentar
a vida no que ela oferece de mais saboroso
o espetáculo das sensações

alimento-me deste amor sem conforto ou luxo
como faminto mendigo alimentando-se do que conseguiu perambulando a cidade, 
com a mesma voracidade e urgência
num canto de rua entre as gentes passando indiferentes.

ignoro a fronteira entre o querer e o poder
pois a entrega deste amor é como devaneio de poeta
diamante indescoberto no fundo da terra
entre a distância e o estar no corpo.

                              Jan- 2025

Esfarrapados

a sociedade tolera os esfarrapados
infectada pelo racismo e a indiferença
doença corrosiva e terminal
e a criança negra, a criança pobre reconhece no branco o seu ídolo
libertando-se às vezes apenas depois de adulto
trauma instalado, crime consumado estamos todos doentes
a infecção alastra-se por todo o corpo social
as elites intactas gozam o seu sucesso
os esfarrapados perecem sem direitos
a sociedade então rui em escombros de ignorância
jazem indivíduo e humanidade
vazia a terra segue seu distino 
de globo inabitado

                 Jan- 2025

quarta-feira, 8 de janeiro de 2025

O amor é um direito

os anos vão passando
e a gente vai passando com eles.
indigno-me ainda com coisas que não podemos mudar de imediato,
coisas como o racismo, a desigualdade social e as injustiças.
ainda há poucos com conciência das coisas com as quais me indigno.
mas o tempo encarregar-se-a delas certamente.
quem dorme, acordará! quem luta, vencerá!
dedico meus versos, muitas vezes ácidos,
a quem não se cansa dessa luta árdua por justiça.
o coração da gente é feito criança acreditando sempre numa utopia.
chegará um tempo que hão de poder brincar
livres como brincam as crianças.
o tempo também carrega nossos dentes, nossos cabelos e o viço de nossa pele.
carrega numa avalanche as pessoas que amamos, as coisas que adquirimos
ao longo da vida e vai deixando um vazio nunca preenchido.
e se existe uma fórmula que faz valer à pena tanta luta, 
tanta perda e tanto vazio essa fórmula é o amor.
um dia o grande Nelson Mandela disse:
"ninguém nasce odiando, e se ensinamos a odiar, podemos ensinar a amar."
aprender amar, saber amar é fundamental, ninguém pode nos tirar isso.
a sociedade há de amar um dia,
quando este dia chegar teremos uma terra onde viver.
hoje temos um lugar estranho onde o homem pisa no homem, mais que pisa,
escarra na cara, tortura, mata.
quem tem o poder quer mais poder e oprime, humilha, explora.
o oprimido é cada vez mais oprimido e, o direito é tirado com violência, 
de muitos o direito foi tirado gerações e gerações anteriores.
a maior violência está neste ponto, o pobre, o injustiçado, 
o maltratado muitas vezes sofre sem saber
o ponto de partida de tanta angústia, de tanto sofrer.
mas com poesia, com livros, com conhecimento
vamos construir uma sociedade sã para todos, de todos.
hoje este direito de viver num lugar saudável é para quem come, para quem veste,
para quem tem axcesso ao amor,
à cultura, ao conhecimento, à informação, ao conforto.
hoje o lugar saudável pra se viver
é para poucos.
 
                     Jan- 2025

domingo, 5 de janeiro de 2025

Primeiro poema

este livro não começa aqui
vem mesmo de antes
da primeira visão que tive de ti
que ainda guardo
bem viva na memória
antes mesmo que eu soubesse
organizar as palavras
compor as letras
e não haverá cabo
isso mesmo não haverá final
tudo o que eu escrever
até a última palavra
será dedicado a você
mesmo os poemas mais duros
que não falem de amor
não falem da proeza
que é amar-te minha musa
amor que eu jamais soube igual

              Fev- 2024

Colóquio com a mulher amada

quanto não ficou apertado
este coração menino num quarto escuro
esperando um sinal
um indício ou qualquer outra alegria efêmera
mas com a poeira do tempo
aprendeu libertar-se e tomar o ar
dum dia azul
e brincar na grama como fosse ainda
um jovem menino encantado
com as belezas da vida
madurei dum jeito gente não fruta
aos trancos e barrancos
e isso tranquiliza a gente dum jeito...
sei seu endereço
e sei que posso encontrar-te na rua
por estes meros acasos
que a vida proporciona
e sabe que de maduro isso me basta
não direi que não conto
com a possibilidade de um abraço prolongado
de um beijo nos lábios
ou de uma história pra contar ou ouvir
dentro duma noite branda
tudo isso me assalta ainda o peito e eu aceito
como possibilidade que se realize
mas não brigo mais com deus e o mundo
pra tornar realidade uma coisa
que cabe quietinha
no canto dum coração que ainda bate
quando deixar de bater não sei
ninguém sabe
mas ainda não deixou
e este cantinho é teu
amor que não acabou
que ainda arde
vivo feito você e eu
dentro duma tarde

                  Fev- 2024

Lugar de negro

mau destino sabido
mesmo antes da concepção.
de quantos maus destinos sabidos 
o estarrecimento?

pelourinho é pouco
chibata é pouco
o tronco é pouco
ainda tem a pinga barata, 
intragável, goela abaixo.
eu que gosto de livros e conhecimento,
mas tenho cicatrizes.

o mijo nas vestes, o sebo, 
a comida podre, o intelecto esfacelado.

o cigarro, a droga, o homicídio, 
o estupro, a indigência, a exclusão,
tudo sobre meus ombros.
quando abolir-se-ão das máscaras, do cepo,
das grades, das algemas?
e o orgulho de ser negro, quando fato?

não estou pela misericórdia divina, 
a dívida é do homem.
credor rigoroso, 
meu verso é centavo.
 
                    Jan- 2024

poema inconcluso e sem data

menino negro na favela
todos diziam de sua inteligência
havia céu e estrada
potencial de voo e tempo
mas mais perto
do álcool e das drogas
entrou 
para estatística

A mulher que eu amo

a mulher que eu amo é diferente
é doce, leve, incapaz de qualquer absurdo
e muito inteligente
eu estava achando estranho
mas estou feliz
eu nunca ouvi ela dizer meu nome
e faz eternidade que ela
dirigiu a palavra 
a mim, a voz doce 
que não sai do meu pensamento
o riso discreto
que um dia soou 
aos meus ouvidos
enfim, tudo que se chama amor
e que vivemos
que a mulher que eu amo
é a mulher que eu amo
e pronto

          28/03/1997

Poema sem correção e inconcluso

o brasil nasceu dos braços dessa gente preta
nos engenhos, nas lavouras, na extração das riquezas












enquanto houver um oprimido
sob o macacão operário
enquanto houver um mendigo
comendo os restos dos endinheirados
não posso enfeitar o discurso com palavras amenas
e meu verso áspero permeia o poema

meu olhar treinado reconhece a pele negra
sob o macacão operário
reconhece ainda a pele negra
na pele do mendigo revirando os restos no lixo
muita gente passa e nem vê

não vê nas novelas, nos filmes, nas propagandas
a ausência do protagonismo de minha gente
não vê nos livros em suas estantes
nos jornais que leem
nos bancos das universidades onde estudam seus filhos
a ausência do protagonismo de minha gente preta

os milicos largaram o osso
depois de grossa pancadaria e protesto
mas entra governo sai governo
e minha gente negra ainda é o alvo da opressão
ainda engole a pinga forçada goela abaixo
e fuma a bomba h dos excluídos

o best seller ainda é *********
e suas referências brancas, seus romances vazios
enquanto provavelmente meus versos
morrerão esquecidos nas páginas desse blog
e escaparão à análise dos críticos, pesquisadores e historiadores

a indiferença do mundo contra um povo
contra sua cultura, sua arte, sua etnia e sua cor
os assassinatos covardes de luther king, steve biko, malcolm x
dos amarildos e genivaldos nos becos escuros das favelas
e muita gente passa e nem vê

mas esse povo existe
como existe sua cultura, sua arte, sua etnia e sua cor
e a chaga exposta da indiferença permanecerá em meus versos
sem pretenção nemhuma além da denúncia
meu dedo está na ferida

                            Dez- 2023

Uma vírgula 2

toda uma história de avessos
destino traçado antes da concepção
ainda em tempos bem distantes
e este inferno fora do útero
pra negro retinto estava por uma vírgula
de agressões trazia um tratado
palavras que lhe corriam nas veias
não que as cultivasse
mas como ervas daninhas
brotavam no jardim de suas lutas
maltrapilho maltratado humilhado
bebeu fogo comeu vidro abraçou espinhos
banhou-se no sangue da íra alheia
e só queria uma fresta
mas o barro sujou-lhe os sapatos
lhe emporcalhou as vestes
penetrou-lhe a pele
no lugar de um coração
uma escultura escarlate percutia
e todas doces glórias que almeja um homem
na mão contrária seguiam
uns olhos de abismo em suas retinas
seguro porto de atraque vislumbra
nada mais que a morte segura
e queda-se sob uns cabelos de medusa
para sempre perdia-se

                         Dez- 2023

Uma vírgula

pra negro retinto 
estava por uma vírgula
o destino cobraria o preço caro
até os 15 tinha tudo
e tudo era nada
queria amor, carinho e tudo o mais

vintém não tinha, um esfregão
sua universidade
e as paralelas do barro
subúrbio, marmita, remela 
e trem lotado, e ainda queria amar

era cego posto não queria ver
sonhava pernas, duros peitos, buceta
a mais linda sonhava
pra retinto faltava uma vírgula

por fim achou quem amasse
quem alto sonhava pro seu parco defunto
envesgaram-te os olhos
onde passava era um canto de olho
um escárnio

depois de pancada, polícia
e escarros na cara andou percebendo
a mais linda não tem parecença
sua pele é pra outros voos, não este quase retinto

que a bala persegue
e muitas vezes encontra já com cicatrizes
andou percebendo que ascender
nesta sociedade é restrito
à aparência mais "amena", outro tom

a mais linda formou-se
e já tinha um bem, um ouro, um euro
e ele afro
fruto fraco pro jogo franco daquelas regras 
quedou-se inconformado

veio-lhe a prata tempora
os sonhos todos vencidos, pisados
nuvem nos olhos
calos nas mãos de tanto estudo
já não esperava mais da vida
eis tudo

                               Dez- 2023

Ponte

a ponte que separa 
nossas bocas
e nossos abismos
liga irremediavalmente nossos eus
                        e nosso destino
percorreremos!

mas como todas as pontes
há mendigos
sob ela
e eu não estou afim
             agora
enquanto você dorme

de fazer a remoção necessária

             Jan- 2024

Poema sem correção e inconcluso

corroída da base ao topo
por dissimulado racismo
sorri satisfeita a sociedade
mas o que tem é dívida
contraída e não paga
com substanciosa parcela
de seus cidadão
que não anda distribuindo
sorriso de pai joão
quer com urgência pelos males 
causados reparação
não existe aqui bobo da corte
pra levar chibatada
e reagir com afeição
ao déspota que nos fere
seja tenente major capitão
sobretudo quem deu o sangue
no fazimento da nação
queremos nossa parte do bolo
essa é nossa condição
se você branco tem consciência
e já escolheu o lado irmão
seja bem-vindo à nossa luta
agora você que menospreza cidadão
vamos à guerra franca
peito aberto e coragem porque não
como está não fica
digo na certeza e com disposição
cota apenas já não serve
é apenas meia obrigação
chega de servilhismo
de não e sim senhores pois não
queremos integralidade
não apenas ínfima porção
acho que bem me explico
negritude hoje é coletivo união
ou vale pra todos ordem e progresso
ou instauramos revolução
fica impresso este poema
como de recordação
do tempo que ainda negociava
as chaves da prisão
daqui não muito tempo não cumprido 
o exigido vai haver agressão
mas somos povo de paz
ainda somos por negociação
é bem melhor assim
ou não?

                     Jan- 2024


trabalhei mas não deu poema

indignado descubro-me 
num sonho 
e era o mundo empoeirado da minha 
estante de livros
qual o que o amor nos meus braços
aquela que amo entregue
o sorriso laço
num gesto todo breve 
de mais doce afeto 
de milagre

como traduzir em verso
aquele mais que breve momento exato
que mais que devaneio incerto
podia bem ser fato

a mulher que amo
na trama dum beijo apaixonado
o quarto todo escuro
pôs-me de imediato em sobressalto
onde observei que o muro
que se faz presente
no último ato de nosso interminável drama
era mesmo muro
com o meu olhar ausente
meu corpo e a cama

mas há de haver o tempo
que este sonho de todo lindo
chegará nos braços de augusto vento









quanto protagonismo incerto
de todos os sonhos lindos que tive
neste porém era exato
mais que mero devaneio mas fato

Dez- 2024