sexta-feira, 12 de março de 2021

Contrastes

as mãos que fazem, 
promulgam e executam as leis
são brancas, no parlamento, 
governos, tribunais e delegacias.
as que escrevem os jornais,
revistas, roteiros de filmes 
e novelas também.
as que escrevem 
nos quadros-negros 
e livros nas universidades,
despacham nas repartições públicas.

para que sejam negras 
as que executam e sofrem 
os homicídios,
padecem o peso das leis,
as mãos do cárcere, 
desemprego e analfabetismo.
as da pá, faxina, 
enxada, lixo e facão,
das marmitas, indigência, 
mendicância, fome e favelas.

o branco escravizou,
torturou, perseguiu e matou.
o negro construiu 
a riqueza do país para usufruto daquele.

tratando de raça
o Brasil é país diverso,
mas os contrastes
não acabam na cor das peles.

     Mar- 2021

quarta-feira, 10 de março de 2021

Nosso idioma

seja como for
eu quero a tua língua
pra falar a língua
que me cubra a ideia
do seu vernáculo

pra umedecer o sexo
de intenções pejar a boca

eu quero você despida
das tantas máscaras cotidianas
o pudor 
que se dissipa
na apoteose pubiana
segredos da cama

seja como for
eu quero a tua língua
você despida
nosso íntimo idioma

    Mar- 2021


terça-feira, 9 de março de 2021

Negreiros

penumbra no sepulcro das águas
dos porões ao espanto das vagas
desabam quilombos em águas de ódio
uma lágrima encosta 
abaixo do rosto soterra o sorriso
a angústia de posse do peito
flagrante delito
no mar os corpos são alimento
vedada qualquer intenção de arbítrio
abolido qualquer sentimento
obsceno o atrito do grito com o vento  

         Mar- 2021            

Matando hora

num certo discreto torrão
de então incerto destino
os grandes grã-finos de então
decidiram por escravidão

o negro lutou
resistiu, se rebelou

nasce a nossa revolução
Zumbi funda Palmares
o negro trama ação
a golpes de capoeira e facão

e os distintos senhores
ao lucro, ouro, especulação

todos sabem a história
a colônia tornou-se nação
o negro que não esqueceu
luta por reparação

o branco manda
desmanda, senhor da decisão

e esta breve história
é o poeta matando a hora
com versos por se fazer
não sabe senão linhas tecer

o negro ainda sofre
mas hoje sabe escrever

      Mar- 2021

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2021

Tumbeiros II

feito morcegos 
espreitam a penumbra, 
encovam os olhos na treva, 
suspeitam mesmo de si 
à pele negra,
não há limite ou trégua.
têm pólvora nos dedos,
distinguem métodos,
a jurisdição
onde quem teme acata.
capitães do mato da selva urbana,
o mesmo que a vida
"protege" mata,
enquanto o burguês soma, 
acumula capital.
e pelo mister 
de matar se matam,
na urgência d'algum tiro
tiram a vida dum igual.
a quem se deve
a escavada chaga social,
estão nas ruas
os coevos tumbeiros.

      Fev. 2021

terça-feira, 23 de fevereiro de 2021

Tumbeiros

dos porões aos tubarões
estanque a dignidade 
vida e morte
esgotam as emoções
pressentidas
golilhas e correntes
o berço jaz no horizonte
fim que apenas
principia
princípio do precipício
faz-se uma nação
negra força motriz
atrozes flagelos
dorme nos tumbeiros
o intelecto
nem talvez e nem senão
acato e servilismo
e até hoje, senhores 
                   
                      -pois não!?

       Fev. 2021

sábado, 20 de fevereiro de 2021

Cedo ou tarde

não provarei esta comida
assim, posta na mesa,
que meu paladar 
e pudor
já não compreendem.
eu quero a cabeça dos senhores
herdeiros da afanada 
fortuna ancestral,
cedo ou tarde.

não vestirei esta roupa 
assim, cingindo meu corpo,
que minha pele 
e decoro 
também já não compreendem.
eu quero as vísceras,
cedo ou tarde, 
dos donos do poder 
usurpado.

o gado talvez cogite
no seu pastar cotidiano
vingança ao ser humano.

quem saberá?

fato é que meu paladar
degusta o menosprezo,
e enoja ao sórdido
alimento
do seu desprezo.

minha pele já não admite
o repugnante tecido da sua gula
e talvez tramo 
na surdina
sua queda destas alturas.

quem saberá?

       Fev. 2021

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2021

Lençóis trocados

divago devagar as vagas
nada além do mar 
de suas coxas
mãos dissipam-se pelo e pele
aclives e declives
sinuosidades 
travessas atravessam 
o instante

silêncios e sussurros
tudo é fogo
cometa no céu
da boca
do estômago
a dança étnica 
das nossas encruzilhadas

ato e essência
hiato
entreato 
da nossa ausência
o mundo
dentro do quarto

detalhes 
tornam-se tudo
nada escapa 
à chama 
que somos nós nus 
na cama

vulcânicas atividades
corposísmicas
a alma materializa-se
o corpo transcende

lençóis trocados secam ao vento

          Fev. 2021

terça-feira, 4 de agosto de 2020

Meu riso branco

meu riso branco não me torna branco
ainda que cubra de resignação
a fonte de avessos em que me afogo

minha alma lavada de potente alvejante
determina a paz enganosa
sob as intenções de que me esgoto
e de onde obtenho medos e angústias

meu riso branco não me torna branco
ainda que o hidrogênio da bomba
de injúrias esqueça dor na minha voz
que minha dicção maltrate minha alma negra

ainda exibo meu tanto de espanto
na face desdenhada do mau destino
não aceito o cartão com flores
daqueles que derramaram
apenas o ódio da sua peçonha
sobre o riso franco de uma criança boba

meu riso branco não me torna branco
é apenas a face oposta
da minha usurpada felicidade.

        Agost- 2020

quinta-feira, 9 de julho de 2020

O estigma do ferro

eu sou escravo
escravo subordinado às leis
do império da cor,
humilhado com o estigma do ferro.
não trago correntes nos pulsos
nos tornozelos, no pescoço.
sofisticaram os métodos e as correntes são outras.

escravo negro renegado
escravo de uma cultura de mentiras
escravo de padrões estabelecidos.

eu sou escravo
escravo de pareceres
contrários à minha imagem,
erigidos em terrenos arenosos
cujo objetivo é degenerar reputações.

escravo das tarifas
impostas à minha pele negra
das demandas rechaçadas
da liberdade abolida do meu arbítrio.

e me afogo na lama
da sofisticada trama psicopata.
alguns irmãos gozam da liberdade
e respiram bons ares,
muitos sucumbiram
aos atrozes crimes às suas peles.

eu sigo trancado
sob estas grades de engodos,
refém do extermínio da minha teima,
do preço alto pela audácia da negritude.
escravo da ditadura do perverso.

            Jul- 2020

domingo, 21 de junho de 2020

Esquecimento

vó é sagrada
a minha sofreu de esquecimento induzido
domesticada
a homicídios, seduções 
violência brava
dissolveu o miolo exposto às intemperes
a dignidade esgotada
vivia como escrava analfabeta
na favela/senzala
palmilhando o chão das lavouras da vida
encarcerada, presa (fácil), 
aglomerada
no eito
da busca por alimento de fim de feira
eles contam 
esquecimento
em aplicações financeiras
e covardes
atos mascarados

mãe é ofício santo
a minha trouxe as sequelas no intelecto
na aparência
no pranto
os tempos difíceis no silêncio
no esquecimento
também
na desilusão, no desencanto
o peso da batalha
nos olhos 
fundos
na sobrecarga sobre os ombros 
as poucas posses 
pelos cantos
e de conquista
o mal desenhar do nome
herança
das minhas fundas raízes
de desespero

e sangrando 
lágrimas condensadas
que não saem
dos 
olhos
fui bebendo gotas de espanto
escapando
de balas de preconceito
agressões de farda
negro
num mundo branco
rezando a cartilha do senhor de engenho
fazendo fortunas alheias
recebendo migalhas
dos desmamados dos peitos ancestrais
cujos atos
seguem sequelando pranto
aparência
intelecto
induzindo esquecimento
domesticando
pelo
menos
por enquanto

Jun- 2020

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2019

Minha Mãe

Minha mãe que suportava tudo
ralava a barriga no tanque
Foi educada assim
pra sem contestar sempre servir
Negra de cama, mesa e fogão
gastou a vida limpando chão

Foi educada assim
pra sem contestar sempre servir

Sem contar que trabalhava fora
faxinando faxinando faxinando
noite adentro, madrugada afora
Gastou a vida lavando louça
gastou a vida limpando chão
para o patrão e sua prole branca sujarem

Foi educada assim
pra sem contestar sempre servir

                   Fevereiro- 2019

segunda-feira, 3 de julho de 2017

Usurpadores

aportarão no cais os usurpadores,
mesmo já não existindo cais,
mesmo estando o cais a léguas de distância,
mesmo estando saturado este chão.
usurparão desta terra
já tão usurpada da sua dignidade.

são estreitas as margens e há lixo
nas águas onde aportam
as vicissitudes de um povo.
um menino negro e cativo
desde o ventre materno transpõe
a ponte que existe no lugar do cais.

vai em busca do conhecimento,
na escola dos usurpadores,
usurpado que está da sua etnia,
da sua cor, da história do seu povo.
e tem forjado silenciosamente dentro de si,
o cepo, a chibata e o pelourinho.

e é privado de liberdade que se vive
além do cais do porto onde aportou
um povo e sua cultura que forjou uma nação.
e usurparão ainda o filho
do filho do filho até a última geração
que pisará neste solo, da história de cada um.

                                  Julho- 2017

quarta-feira, 10 de maio de 2017

O menino negro

o menino negro olhava, olhava e não se via.
bebê, pensou ser a retina que olhava, olhava e não se via.
criança, desconfiou mas não pensou nada.
foi à escola, conheceu as letras, formou as palavras,
mas ainda não se via. jovem, pensou então
que o problema fosse ele, que estava nele, mas calou.
trabalhou cedo, leu livros, fez biblioteca, enamorou-se,
adquiriu conhecimento, mas ainda olhava e não se via.
mas agora o menino negro era já homem feito,
começou a perceber que o problema não estava nele,
que não era ele, chocou-se; mas desta vez não calou,
protestou! protestou! protestou!
mas agora, o menino negro que era já homem feito,
de tanto protestar começou a ouvir,
desta vez dos outros, que o problema estava nele,
que era ele o problema.
então o menino negro que era já homem feito,
conheceu de perto a hipocrisia, a injustiça,
mas não se abateu, não parou de protestar, protestar.
o menino negro, já pai e avô, partiu sem ver sua luta vencida:
o mundo diverso, em igualdade, livre do preconceito e do racismo.

                                 Maio- 2017

segunda-feira, 1 de maio de 2017

Filha de Olorum

                    à Júlia e Juliana Costa

mulher de brio e força,
negra de beleza
e graça que habitas
o chão das Minas Gerais
do meu Brasil
mais forte na potência
do ouro e do diamante.
filha obediente de Olorum,
criador onipotente
do que existe,
protetor dos povos
oprimidos das Nações.
que todos os orixás
protejam-na na adversidade,
que Oxum traga-te paz
de espírito
e prosperidade,
e Ogum
fortaleça-te na guerra
assim como inspire
estes meus humildes versos.

mulher de negritude
convicta,
que é pássaro
na dor de transpor
distâncias.
conhecedora
arguta das demandas
do teu povo,
a tua etnia é também
a minha etnia.
amar-te é um desafio,
é a força da luta
assídua pela conquista,
é a minha audácia
mais intrépida,
minha certeza lúcida.
apaixona-me
tua beleza a cada visão
da tua imagem,
mas ganha-me na íntegra
teu intelecto
a cada sílaba inteligente
que sutil pronuncias.

negra que não és minha,
pois livre
és como o vento,
tu que foste
concebida
desde o ventre d'África,
mãe generosa
das Nações do Mundo:
tua pele tem
a delicadeza das pétalas
do alto da estatura
da flor na primavera.
os teus olhos
a diversidade do topázio
com esmero
lapidado pelo ourives.
tua voz o timbre
doce das estrelas
quando cantam galáxias.
a sensualidade
crespa dos teus cabelos,
sob o domínio
do turbante, que é antes
o traço forte
de reafirmação da tua
identidade,
tem o brilho íntegro
de tudo que é forte,
de tudo que encanta.
o sorriso entre
teus lábios,
que tem a textura do figo,
tem a alvura
do marfim espoliado
desde as savanas
da terra mãe das Nações.

tua geografia tem
a complexidade
dos contornos
do Velho Continente,
sob o linho do vestido
que oculta
tua íntima beleza.
tua arquitetura
a simetria das pétalas
de uma orquídea
que esbanja graça,
fincada na autenticidade
da natureza
mais selvagem.
sejas ostensiva na poesia,
o berço autêntico
de tudo que é belo.
pões a nódoa
do teu pranto
nos dias de fragilidade
sobre os originais
dos poemas que escrevo,
que mais perto
e dentro
deste poeta,
que hoje te canta,
não podes estar na vida.

tu que no poder da tua
natureza de mulher
tens a força guerreira
de uma Luísa Mahin,
de uma Dandara,
de uma Maria Felipa,
de uma Carolina de Jesus.
corre nas tuas artérias
o sangue ancestral
dos povos guerreiros d'África.
desde o Nilo próspero
às minas
do diamante espoliado
das mãos negras do teu povo.
desde o plantio
do milho e do arroz
forjado
pelo sangue do teu povo
às lavouras do café,
da batata e da mandioca,
sob o manto sagrado
dos dialetos que compõem
os idiomas do Continente.

               Maio- 2017