quarta-feira, 6 de março de 2024

Um pedido

palmares e outros quilombos
que venceram guerras contra o colonizador
ensinai resistência aos filhos periféricos
desta nacão de contrastes
contai a história de zumbi e demais guerreiros
para que o povo preto orgulhe-se de de onde veio
e o destino seja próspero no nosso meio

                   Mar- 2024

Sociedade enferma

num país corroído pelas bases por regime escravocrata,
onde abolição meia-boca jogou os negros na sarjeta.

nada de novo no front:

cadeias apinhadas de pessoas pretas e pardas.
universidade formando doutores brancos para sociedade enferma.

               Mar- 2024

As grandes chagas

guerras agem contra a vida no mundo
revoluções tentam um pouco de bom senso em nações dispersas
golpes instauram ditaduras em países indefesos
muros caem unindo expectativas

outros erguem-se apartando sonhos já falidos
e como pano de fundo a tragédia da fome apartheids extermínios
e na áfrica um tanto de cada chaga
de cada espectro maléfico que o homem cria

                         Mar- 2024

Um copo de veneno

o agrotóxico está na mesa
a mãe serve o alimento a seus filhos
um copo de veneno com amor
entanto a mãe não sabe
quem pode e sabe paga pelo orgânico
inclusive o deputado
que defende enfático o uso de tais defensivos
e faz lobby e é amigo do produtor
enquanto o pobre
alimenta-se da própria morte
e tudo segue como ordem natural 
das coisas
e foi reeleito o hipócrita
locupleta-se
da miséria olheia

            Mar- 2024

Ofício do verso

ao cabo tudo é dor
pássaros sem a posse 
do espaço estamos
o poema 
que morre aos olhos
e tenta no âmago a essência
pequenas glórias
que o céu almejam no mar da vida

ecoa a palavra 
que não sustenta o verso 
na trágica metáfora da tarde
desatar os fios da lavra
tece o tempo

(o novelo mais se ata)

rompem os elos
explode arte-vida 
em musgo
tudo nos escapa
restam ranhuras n'espanto 

o poeta é um egoísta
tentando o belo por ruínas
no instante fatal

   Mar- 2021

terça-feira, 5 de março de 2024

Um fenômeno de amor

fecho os olhos e você é a água que me mata a sede
vou à rua e você é a praia em que me banho e refresco
o ar que respiro tem teu cheiro natural de flor
a fruta que como tem o sabor dos teus lábios que nunca beijei
o vento leve que toca meu rosto tem a textura de tuas mãos macias
e a água a comida a praia o ar o vento compõem o que sou
um ser inteiramente impregnado da tua presença

                   Mar- 2024

Poder público

a britadeira da prefeitura 
me desperta antes do relógio
no exato momento 
em que as bocas uniriam-se
num beijo apaixonado
como odeio o poder público
e suas obras em ano de eleições
inúteis obras eleitorais
ó incompetente prefeito
leve saneamento a quem 
precisa com urgência
e deixe-me sonhar com a boca
de minha amada
meu voto não é de cabresto
é antes voto de oposição
ao seu desgoverno
maldito alcaide empata foda

             Mar- 2024

A renúncia do poeta

grafar teu nome no atropelo
das obrigações diárias no outono poluído 
da metrópole de pedra
escrever entre ruído e fuligem 
o enredo dum amor 
que não se desgaste feito engrenagem
na grave inércia do mármore exista

o tempo é credor dos corpos
hábitos e costumes
com o amor coexiste na órbita do indizível
é frágil o verbo
rica a poesia que há na vida

então quero existir
noite adentro da intimidade nossa
na fortaleza dum apartamento
tratar de boletos e despesas no café da manhã
averiguar nos jornais algum alento concreto 
contra a violência

vez em quando evadir pro campo

      Mar- 2021

segunda-feira, 4 de março de 2024

Medusa

revolução é a noite indecifrável e muda
neste quarto de paredes de gelo
onde eu imagino a tua imagem mulher
que havia perdido n'alguma manhã de outono

porque é mulher está nos meus pensamentos
cravada como rocha sobre outra rocha
e te encontro entre palavras e livros
fechados no silêncio da madrugada fria

e te vejo sempre assim medusa implacável
que me fez pedra quando eu era todo afeto
disponível a teus braços de neve que ofusca

                        Mar- 2024

Escrevendo o ocaso

faliram-me os olhos
a maior das ilusões do homem
como mister que me fosse o sustento
a vista deu-me o mundo e tirou
friamente

os dentes 
foram triturados pelo tempo
como ironia machadiana
fina e corrosiva

o beijo vou guardar na lembrança 
como o gesto mais terno 
de que fui capaz
com o abraço

palavras fundamentais
para mim
que lhes estudei até as origens
já não lembro o significado
como por exemplo: 
alteridade

meu pau é um mito
o nosso imenso paradoxo
espectro de todas as glórias
e dramas
outra grande ilusão

a gente perde o que nunca teve
apenas imaginou que tivesse
como uma certeza traída
resta-nos a ignorância de tudo

    Mar- 2021

Homem negro

não se ama além da própria utopia
pedaços de um homem, 
                          partes inteiras de mágoa,
o coração rubro de um homem negro.

o estio vence os braços, vence a boca,
vence o pênis
               -imenso de solidão-

enquanto os olhos têm os olhos
                          esquecidos noutros olhos.

eu quero a centelha no feno
                 muito além do fla flu casual
     sem ausência ou apatia
eu quero a ousadia profana de um corpo
                      imperfeito
difusa qual artérias nas grades do peito.

hediondas paredes de pedra
                à minha volta                                 
                   -mais um emparedado destino-
o amor deflagrado 
       que não violenta.
mas não brincarei no carnaval sem passista
da avenida do tempo,
                a vida escorrendo em suores.

       eu quero mais que o amor alheio,
amor que morde e assopra
               -tirano e frio-
eu quero o amor que volta,
    a felicidade de uma boca, 
                 de uma buceta, de uns seios.

                     14.02.2021       

domingo, 3 de março de 2024

Mendigo Pedro

cediço ranço estorva 
a metrópole
respira e traga gás carbônico
posto come o que não come
produto odioso 
da distinção do homem
enjeitado louco do manicômio
já não é mais homem
já não é mais homo
é o inumano retrato da fome
obsceno ser dos esgotos
criatura abjeta das sarjetas
destino esfacelado
banido espectro pele e osso
privado até das gorjetas
é um fato é um feto
nem nasceu por ter nascido
evento trapo que andeja
o oposto mito de Narciso
que de tanto ver
sem ser visto
agoniza todo desgosto
misto de homem e bicho
rejeita a efigie do próprio rosto

        Fev. 2021

Dizeres do Mendigo Pedro

ando a vagar vagar vagar sem rumo certo
nas ruas desta metrópole desgovernada,
no meio de toda esta gente, neste deserto.
com a sutil diferença, salvo a ironia,
que não tenho sequer um barraco na favela.
pequeno, pra mim mesmo,
ou um catre sob o viaduto, que seja.
que o que me pertence apenas são meus trapos velhos,
e o meu corpo cansado, quase nada.
quem tem rumo certo nesta vida desvairada?

de mim sei quase nada, de onde venho,
não quero lembrar,
sei apenas que aqui vim parar,
que sou de qualquer lugar.
que a fé eu perdi dobrando uma esquina, perto;
os sonhos todos,
numa noite gelada de inverno aberto.
vez em quando esqueço minha condição
e sonho mais que posso,
às vezes, muito às vezes até tenho fé, mas logo volto.

mas o que eu sei de verdade
é que não sei o que mais me transtorna,
no correr dos dias, no passar das horas:
se meu ventre que me consome, que me devora,
ou se meu coração que lamenta e chora:
o ventre consome e devora por não ter comida,
o coração lamenta e chora, pela dor desta vida.

                    Junho- 2016

sábado, 2 de março de 2024

De repente

de repente não ousamos nada
esta preguiça é coisa desde o ancestral 
enlouquecemos de cachaça e drogas
somos todos tribos no canto esquecido do mapa

de repente somos inferior
afeitos ao crime e à violência
ainda assim as estatísticas mentem
mas é destino de cada

de repente não crescemos por gosto
nosso irmão doutor é prova incontestável
somos bem-vindos nesta pátria
ainda que banho não nos apeteça

de repente gostamos da fome
te será mais útil o leite de nossa mãe
e universidade não nos é mais útil
nossa escrita é blá blá blá

de repente o racismo é nosso
consciência é humana não negra
somos mesmo é vitimistas
amam tanto nossa preta pele

                                               de repente!...

       Agos- 2021

sexta-feira, 1 de março de 2024

Confissão

amigo
tem sido dura a vida
e pode piorar
nenhuma fresta no céu chumbado
nenhuma palavra amena dos lábios que se quer
nenhum afeto ou chamego
de mulher
nenhum pão que se possa
dividir com os miseráveis
em face da própria
miséria que sou
nenhuma cama confortável
onde se possa
adormecer das dores que atravessam
o peito sem pedir licença
nenhuma poesia
que me limpe a lama dos sapatos
e das vestes
na minha pobre poesia
nenhum sorriso que suplante
esta perene tristeza
que atravessa meus dias
até os mais azuis
sequer uma lágrima que corra a face e me faça 
sentir o gosto de um pranto elaborado 
no silêncio do peito
não tenho a força necessária 
para chorar
tem sido dura 
                               amigo
a vida

                               Jan- 2024