terça-feira, 19 de março de 2024

Esse jeito de amar

tanta bela forma de descrever uma mulher
e eu a descrevo carne osso pele pelo que transpira e sangra
o amor transcende a matéria
mas eu só consigo e quero te ver concreta
coisa que se vê e toca e experimenta

               Mar- 2024

quinta-feira, 14 de março de 2024

Tem gente com fome

engajo tremendo sorriso
ao contato da luz amena da manhã
amena e doce manhã
mas logo desfalece
esvai-se todo entusiasmo
tem gente com fome
e é pornográfico um sorriso
talvez eu fosse feliz
não fosse tanta gente com fome
e eu tão pequeno poeta
fosse grande
também não sanaria a fome do mundo
poeta pode apenas o verso
e a angústia do povo não espera
renasce a cada manhã
a barriga colada às costas
e o olhar perdidamente triste
famélico olhar
constrange um riso rasgado
de orelha à orelha
mesmo para o espetáculo
da luz amena de uma doce manhã
devia constranger todos os homens
mas tem gente rindo à toa
no conforto de suas posses
e se tem criança sem pão
paciência
o destino quis que assim fosse
eu conquistei minha manhã ensolarada
à beira desta piscina
saboreando este uísque caro
trabalhei muito para degustar esta manhã
e até se aborrece
se alguém lembra das misérias do mundo
mas ali ninguém lembra
ninguém vai lembrar

                  Jan- 2024

Equilibrista

equilibrando demandas
domo dilúvios das águas anímicas
pela intuição de atávicos
saberes

na dor a gente 
cresce pra dentro
o coração 
duro feito pedra
estrela 
a extraviar-se 
no esplendor de galáxias
e amplidão

seguro ao cais 
da coragem libertária
desvencilho da âncora do medo
emerjo do naufrágio
atado à vida sou o argumento contido 
no enredo

      Mar- 2021

quarta-feira, 13 de março de 2024

A palavra amor

amor é palavra chave
que nos persegue dentro da noite
empregada 
com arte
abre qualquer porta

           Jan- 2024

Estrelas no verso

enquanto os tiranos
atiram corpos 
no mar e o desterro
dilacera o peito até dos fortes
atiro estrelas
que voam 
no espaço do verso
luzindo o poema protesto

e os lamentos 
dos porões fétidos
agora são vozes de muitas vozes
pois irmanando
a ginga que nasce
do encontro da língua
que nasce o verso
com as línguas que o declamam
faz-se a liberdade

e o que se escreve
reverbera 
ao som dos tambores
(que ainda percutem
sob a mão negra da ancestralidade)
na astúcia e coragem
contra os algozes
de um povo
que venceu os males
atrozes

            Jan- 2024

segunda-feira, 11 de março de 2024

Por milagre de Oxalá, por milagre de Olorum

por milagre de Oxalá
por milagre de Olorum
hoje eu escrevo a minha dor
desde tempos remotos eu só sentia
desde tempos remotos eu nem sentia
da prole da mãe negra
mãe que trouxe o barro no ventre
tão acostumada a desmandos
sou a ovelha desgarrada
ovelha que pode tingir o papel de negro
que escapou e escapa na prece
que fizeram aos santos
na encruzilhada no meio do mato
os negros analfabetos
os negros sábios
os negros marcados das senzalas
essa ovelha que ouviu dizer
que ouviu e ouve as vozes dos livros
os lanhos na carne
o sangue coagulado na poeira
os ferros dizimando a dignidade
coisas difíceis ouviu e ouve
ovelha teimosa de olhos e ouvidos bem abertos
ovelha milagre de Oxalá
que escapou e escapa às armadilhas
às armadilhas dos senhores de escravos
senhores que pagam barato por negro capturado
que multiplicam as suas riquezas
ovelha milagre de Olorum
tentando resgatar o rebanho
às vezes em vão que a luta é cruel
que ovelhas desgarradas que virão
por milagre de Oxalá
por milagre de Olorum
ouçam a minha voz
ouçam as vozes dos livros
ouçam do sangue das correntes das lutas
por prece dos negros sábios no meio da mata
por milagre de Oxalá
por milagre de Olorum

               Dez- 2023

domingo, 10 de março de 2024

Não é lícito

ainda que fosse hoje
o tempo das lavouras e o engenho
do trabalho sob o açoite
e da opressão contra um povo
não seria lícito

ainda que fosse hoje
o comércio de gente nas praças
navios com carga humana
e capturas sangrentas 
não seria lícito

ainda que fosse hoje
o sangue coagulado na terra
senzalas da dor e do desespero
e a insígnia na pele
não seria lícito

ainda que fosse hoje
o eito extenuante e forçado
os desmandos do nobre senhor
e as máscaras de ferro
não seria lícito

ainda que fosse hoje
o bafo podre da boca do feitor
bacamartes contra o peito
dignidades roubadas
não seria lícito

o tempo hoje é outro
reconstruímos o desconstruído
somos o saber autêntico
de quem sofreu e sofre injúrias
somos universidade

o tempo hoje é outro
é tempo de livro e conhecimento
os séculos curvaram-se à luta
e somos viva consciência
somos verdade

não é lícito o seu racismo
sob a máscara da boa convivência
e se escancara é indecência
se é estrutura ruirá
porque somos inteligência

        Agos- 2021

Retrato preto e branco

água corre podre sob a pinguela
a paz nas ruas vastas
e nas vitrines
chics das butiques finas
manequins
desbotados exibem
a última moda outono/inverno.

o negro distinto
produz literatura que ninguém lê
o negro faminto sequer sabe escrever.

fulano fundou isso e aquilo
sicrano é partícipe da história
beltrano esteve aqui e além

o morro definha sob
chuva de chumbo grosso
e a criança indigente
refém da apatia nossa nem veste
nem calça,
come fogo pela culatra,
enquanto o poema, fracassa.

         Jul- 2020

sábado, 9 de março de 2024

De/negrir

preceitos arcaicos não nos acertam 
não negociamos liberdades
no nosso quintal
violência enverga bege não pele negra
em cinzas de carnaval

no céu do preconceito
enegrecemos estrelas no auge da luz
e o ágio cobrado por esta audácia
não reverbera 
no existir de quem resiste e não cai na armadilha
do de/negrir o já negro

deter a indecência
do seu legado de palavras tortas
é reinventar a escrita atenta
para a artimanha perversa do seu conceito
com asas negras
e livres escreve-se livros
de respeito

suas regras e normas
não seduzem a autêntica força da nossa sintaxe
e nosso verso cresce honesto e filosófico
com artilharia de orixás em ori
e a poesia se refaz
com a bandeira NEGRA da paz
nem branca
nem tanto faz
 
    Set- 2021

sexta-feira, 8 de março de 2024

Teus olhos

                                       à Eliane

uns olhos cheios de abismos
cactos feridos sob pedras
olvidos e névoa espessa
que me ver já não podem

estrelas no sótão de ilusões
aos esplendores da vida dedicadas
sem que a réstia de luz
ofereça o norte que não encontram
e vagam horizontes 
perdidos no crepúsculo que não há
não pode haver no tempo

no tempo dilatado de outonos
passeavam em desespero
nas mesmas ruas
nas mesmas temidas órbitas
no adejar de silênciosas batalhas
em fragosos campos de pedra
sonhos e distâncias remotas

passaram por mim uns olhos
flores inacessíveis 
na fotossíntase das manhãs
e com viés de sepulcro
como as cores de um arco-íris
não deixaram vetígios

        Jul- 2021

quinta-feira, 7 de março de 2024

O valor do voto

- a inflação come meu salário
e eu não visto não calço não como
reclama o operário

mas o que mais pesa no bolso
é o embolso do erário
que não vai pra escola creche ou hospital

e de volta eu digo:

- o olhar mais atento ao voto
é solução única pra tal escárnio!

            Mar- 2024

Gueto

nos becos escuros das favelas todo gato é pardo e preto
do que adianta não sair do gueto se no cair de cada crepúsculo
é no "confronto" com a polícia o caminho pro sepulcro?

                 Mar- 2024

As baratas não envelhecem

em que esquina pulou do bolso 
o meu dinheiro escasso 
enquanto me distraio a pegar o trem pro trabalho?
os gabinetes da administração pública recendem a carne podre.
por que desta fome de golias, este estômago dilatado ao extremo?
tua cara larga já não cabe mais nos espelhos da tua casa.
teus retratos na parede não correspondem mais ao teu aspecto endinheirado.
tua mobília de jacarandá não suporta mais o peso da tua bolsa.
o fisco me tirou até o último centavo que evaporou sob o seu cuidado.
as baratas estão roendo até os ossos do banquete do erário.
mas as baratas não envelhecem e, 
até os engenheiros de babel sucubiram à ira do tempo.

                       Mar- 2024


Artigo de luxo

forro nunca foi livre
mas escravo do mesmo dono
nas duras engrenagens do progresso
não conta a história
não contará

ventre livre foi prisão
na miséria encarcerou seus filhos
e o leite da mãe negra engordou 
muita cria dos engenhos
gordos bezerros 
da prospera pátria

negro foi artigo de luxo
carne exposta à venda nos mercados 
em praça pública
animal de boa tração gerador
da riqueza alheia

não aceito a utopia
da falsa liberdade concedida
depor-se-á o rei da barriga do homem
cedo ou tarde
alimenta-nos a certeza
que não fomos feitos
para o açoite
ou para o cárcere

não à canetada del-rei
à bondade esperta de qualquer princesa
à hipocrisia do riso branco
negro é artigo de luxo
porque veste
a roupa da batalha
e com ela vai atrás da real
liberdade

         Agos- 2021

quarta-feira, 6 de março de 2024

Sala de aula

ele era o único pretinho da sala
nem ele nem a professora o sabiam
mas os demais pretinhos e inhas à hora da aula
na mais otimista alternativa
ralavam nos lixões nos faróis ou ociosos nas favelas
ou com suas caixas de engraxate lustravam os sapatos 
dos executivos sovinas em plena faria lima

                     Mar- 2024