segunda-feira, 30 de setembro de 2024

Mendigos

perambulam sem rumo certo
atormentados de tráfego e fuligem
possuídos da inceteza
do que virá na próxima esquina
bem raciocinam no avesso da razão
a lucidez da loucura
famintos ratos das ruas da cidade
loucos alucinados
de gás e buzina
caminham pelas sombras
do que já foram
seres de pele escura de sebo e melanina
sequer sabem de onde veio a sina
(o homem que arvora-se a explicar o homem 
quase nega um passado que condena
passado de tronco senzala e algema)
e espectros das próprias
sombras
insenssíveis os passantes 
nem os notam
invisíveis são a própria chaga exposta
chafurdando restos dos restaurantes
acomodando-se sobre as próprias
                                              bostas
 
                  Jan- 2024

sexta-feira, 27 de setembro de 2024

De que falou o poeta

                     Ao poeta Abdias Nascimento

minh'alma atada à noite gerou o verso improvável
assimilado por minha pele porosa de estrelas
que estendeu na extensão de meu corpo
a percepção do que falou o poeta em eras diversas
e que ora toca a superfície das retinas calcinadas

e escalei montes, transpus as alturas das montanhas
até que avistasse no ermo das horas perdidas
os tempos de espantos memoráveis,
de hostilidades vãs,

mas meus olhos sob as pálpebras
não verteram lágrimas ao espetáculo deplorável
e a poesia me disse tudo o que eu precisava saber

como o sêmen da chuva fecunda a terra
e faz germinar o grão que alimenta o corpo faminto
nasce do ventre da palavra o grão de que precisa o homem
para alimentar o diamante bruto da alma

permitir que a amplidão sobre nossas cabeças
perpasse o instante de um sonho
e que este instante seja definitivamente as nossas vidas
a fonte perdida das palavras extremamente grandes

                       Mar. 2020

Hoje não tem quilombo

Hoje não tem quilombo,
onde agora estancar o sangue,
mitigar do conflito, curar as feridas?
O efúgio talvez fosse uns braços
de mulher,
mas o ódio é substância nociva
que asfixia com mãos
de aço o amor,
e a opressão maltrata
o sentimento e o desejo se esvai
entre balas de borracha
e bombas de gás lacrimogênio.
Estamos obrigados a submetermo-nos
às regras e às leis do opressor,
mas aquele negro que não luta
pelo fim do racismo,
que não protesta por cota,
que não protesta por terra
e por bem estar social,
garantias usurpadas de nós,
tem que despir-se
da pele negra
feito serpente que faz a troca,
e vestir-se com a pele do opressor,
tem que vestir-se da pele branca.

               Nov. 2019

De leituras e ciências

cada vez que fecho um livro me abro,
multiplico a capacidade de me ler, com olhos isentos,
transcendidos de ambição, depois
de tanto horizonte.
e neste olhar para dentro me vasto, despido
de vaidades, me sei do avesso.
exposto a mim, as páginas escritas do tempo,
norte das outonais aragens, cumprem a ordem estável,
mesmo que algum desejo
de transforma-las agite uma cobiça
adormecida, um interesse além do possível.
vem daí a paz do meu sono, da ciência de poder me ver,
elucidar as obscuridades
entranhadas no inconsciente, penetrar no insabido,
no negado aos sentidos,
no oculto sob a casca que nos veste.
isto me põe satisfeito, humano radicado na vida.
por isso abro os livros
cada vez mais,
matuto o lodo sob as palavras.
antes que sepulte-me a noite, derroto distâncias,
conquisto páginas, conheço seus finais
e venço a guerra cada vez que os fecho, depois de lidos.

                       Abr- 2020

Tarde

teus olhos no poema
aquela província dos gestos
ainda jovens
os dias curtos dos afagos
e o silêncio cumplice
das flores

lembrar é ainda ter
mesmo que a posse seja nuvem
que não cabe no abraço
e eu não esqueci teu nome
grafado na pele
na razão

mitigar as horas
encasteladas no teu beijo
que não se apaga 

Poema sem data

Ofensa abolida

ninguém te deve nada irmão,
e este teu dano mental
que a palavra
nem escoa bem da tua boca
e tu vacilas, tartamudeias,
e entre outras coisas,
constrangido, isola-te?
e este teu saber escasso
que te põe à margem dos fatos
e tolhe teu entendimento
das coisas até as mais banais,
e ainda envergonha-te?
e esta tua relação com os ratos
que frequentam teu catre
enquanto doas o sangue na labuta
braçal de todo dia?
e os dentes que te faltam
e as moléstias que te sobram
e o alimento que te falta
e as ilusões que te sobram
e os afetos que te faltam
e as injúrias que te sobram
e este pouco morar,
este pouco vestir.
e este pouco amar,
este pouco dormir.
e este pouco prosperar,
este pouco ir e vir.
e este pouco divertir, divertir?
ninguém te deve nada irmão?

             Out- 2019

Ascendência

daquela robusta árvore
eis o ínfimo ramo que somos
as raízes e a planta
a progênie o que tentamos
na origem à dor suplanta

arejar a névoa espessa
trazer do berço a lúcida aragem
história e nação
o ímpeto da luta e coragem
reaver o avito torrão

      Fev. 2021

Descendência

mira a flor que rebenta
é fruto do fruto e semente
raiz folhagem botão
a imensa estrutura
da extensa estirpe da gente

do sêmen ao ventre
brota um ser de todo ameno
ramo da vasta linhagem
gigante mesmo pequeno
etnia e coragem

    Fev. 2021

Frágil forte

o açoite da artilharia do tempo
contra as sólidas muralhas do eu
tenta o sequestro 
do que existe frágil na pedra
o desterro 
dos soterrados da queda
forte que desmorona em esplendor e treva

a força da pedra que dura
está naquele sopro de ternura
no âmago
da própria substância
sob a fustiga do vento no tempo
esgarçado de uma dor

o alarde da gente
oculto no silêncio dos dias

     Mar- 2021

Gênese

sêmen ou susto
intuito infenso à luz
sopro indefeso
gérmen élan
ovário que ovula óvulo 
presa de estigmas
alarde da vida em silêncios

o devir da flor
é quando toca a retina
-ou existe vácuo
áspero ser- 
qualquer receio
tácito beijo do rocio
à pétala detida 
nos nós do âmago
apenas frio

não sei de aragem
que não censure o silêncio
no seu trânsito
entre seca folhagem

nascer é ruído
na estagnação da luz em ruínas
ou sombra que paira
paz e parto

     Mar- 2021
 

Poema para Cristina

 A orquídea que você cultivou em seu apartamento

com carinho de mãe, a mesma que calada e
distante exalou segredos na manhã, que beijou
a noite com sua aparência de virgem e amou o
dia apaixonada e perdida, hoje é testemunha das
palavras ao pé do ouvido, dos ardentes beijos de loucuras
no verão, dos teus apaixonados suspiros em meus braços...
De tudo enfim o mais que somos nós.

Composto por volta de 2013, 2014.

quarta-feira, 25 de setembro de 2024

...Ela

pelas bordas da cidade atarantada
deságua e cresce favela
em avenidas de esperança e mágoas
a favela sofre a esperar que brote
no árido ar da metrópole
a sua aposta
de melhores dias
dias de bonança a seus filhos pretos
quilombo que nascido
de coletivo sonho
é refúgio e lar e gueto
a favela se expande em tentáculos
de resistência
não mero espetáculo
da elite rancorosa
que destila ódio a quem deve 
muito mais que cota
e ignora escarnece e não paga
mas a favela trabalha
estuda e sobrevive no fio 
da navalha
e não se entrega às sujas regras
do jogo inimigo

e segue em mar revolto ela
tal como eu versando dores sigo

                 Fev- 2024

quarta-feira, 18 de setembro de 2024

Pedaços da fome

                   Poema em homenagem à Carolina Maria de Jesus

a vida agora é de alvenaria,
os objetos, os filhos, as flores...
a casa talhada a lápis com palavras de dor.
filhos adotados dos teus braços pela miséria.
o prego, a madeira, a fome, o silêncio,
o trabalho e a solidão.
o ódio de deus sobre os ombros dos teus,
sobre os ombros
dos que não têm que querer,
cuja escolha é não ter escolha.
nada conterá a força das tuas palavras
ainda que as águas das chuvas tenham contido
teu corpo franzino, anônima de papel,
estrela sem hora
nas ruas avessas da cidade.
cidade hostil, afeto de pedra, flores sobre a sepultura.
nuvens de África, ares de África, sois de África.
sopa de vento, poeira de terra no prato,
está no pasto este gado,
ou nos finos pratos de louça fina.
qual a cor da fome, Carolina?
dos pedaços da fome?
despejada de cada quarto, de todo canto,
preterida da vida.
zela da veste granfina,
desdobra-se a cuidar deste chão,
e sonha, Carolina!
escreve e sonha, Carolina!

           Maio- 2020

500...

a úlcera do ser estagnado
destila o cianureto meias verdades
a sociedade doente
as academias mutiladas
o cânone envesgado dos costumes

o ópio-ódio burguês
excrementos 
de míopes cogitações
petrificados pitacos letra-morta:
88 aboliu os poderosos da culpa
eis a excrecência
(o poder de eximir
à régia canetada histórica)

à goela empobrecida
a baba espessa do cão sem raça
a gente engolindo miséria
vivendo de sonhos extintos
vinho tinto 
de sangue vomitado à nossa boca
e mais injúrias e hospício
e o vício por alimento

o ensino ensina chacina
despótica gramática das ruas
complexa pedagogia dos excluídos
e o rebanho 
de negras ovelhas -destino e pele-
amarga a sintaxe suburbana
engrenagens de aço 
e vestígios de munição
a violência escandalosamente 
armada de carência-criança

nas feiras encarceradas
das periferias
bandejas de desdém 
dúzias de fatalidade
pencas de mágoa no olhar
o desenlatado extrato antissocial
brasileiro marinado em caos
no topo etc e tal, no meio isto e aquilo
na base, versada em revés
nem isso, e jazem os ratos classe E
esfomeados nas sarjetas
à margem 
destes regalos
os indigentes à margem

agressões nos subterrâneos
cotidianos do lar
amor por argumento
a negra pele roxa de ternura
não há primavera pra criança órfã de amor
esmolando gorjeta
pra sua fome de afeto
as balas que nada têm de perdidas
e encontram a infância 
perdida
grande contingente negro
implicado em "masmorras medievais"
nem uma réstia de liberdade
a sociedade pelo racismo
combalida definha
Zumbi expira no quilombo do peito
vencido pela impotência

o protesto burguês 
bate panela vazia com a mesa farta
no conforto dos apartamentos
o protesto proletário
almoça poeira de obra
a miséria sem miséria das marmitas
faxina por negras mãos
de fadas sem conto
ventre colado às costas
o mármore das mansões de pedra

seus deveres cívicos
resguardados pela constituição
seus direitos
engavetados no parlamento
parlamento branco e burguês
como todos os poderes
e poderosos 
da nossa república esgarçada 
em egoísmo.

       Fev. 2021