quarta-feira, 10 de abril de 2024

Poeta Suburbano

flor rompendo o asfalto, nasceu um poeta suburbano,
poeta assim meio inquieto, meio discreto, meio engano.
versado no seu dialeto, compõe seu verso meio profano.
morreu na cruz, morreu, morreu Jesus enquanto humano,
quem morre no SUS, à margem morre, morre subumano.
o céu que vejo é uma nuvem de monóxido de carbono,
se o céu não vejo, estrelas vejo, mas apenas em sonho.
concebi um lindo verso, assim meio com cara de aborto,
bem semelhante ao feto que um dia vi no meio do esgoto:
saiu um poema torto, um poema coto, um poema morto,
então, ando meio bronco, meio bronca, assim meio pouco.

                            Junho- 2016

domingo, 7 de abril de 2024

Faça valer à pena

Jesus Cristo

Jesus Cristo é crioulo
tição verdadeiro
nasceu em morro carioca
feito Noel Rosa
Cartola
Machado de Assis

descende de orixá
filho estimado do pai Oxalá
prega a paz embora pregado na cruz
mas o coração de Jesus
sangrando
perdoou e perdoará

Ele é carapinha
falsa é a imagem atribuída
lutou por liberdade
sendo feito Gama abolicionista
há de haver
perdidos registros
que estas palavras ratificam

dois mil anos
que se sabe transformaram-te a cor
do pixaim 
nasceram escorridas madeixas
e o olho azulou
o que fizeran Santo Pai
da Tua imagem

Tua prole descende 
d'África
nosso eterno Pai é brasileiro
se provar não posso
o que peremptório assevero
também provar
ninguém pode esta cor
tão desbotada
que envergam nos templos
Tuas imagens

tanta incerteza sobre 
Tua história
me faz acreditar reclamando
Tua nacionalidade
digam toda a verdade
sobre Teu cabelo
sobre Teus olhos, sobre Tua pele
que renuncio minhas certezas
que Cristo é brasileiro
que é carapinha?
retinto tição verdadeiro.

        Out- 2021

Apedrejamento

um jovem negro foi apedrejado até a morte
e o cadáver arreganhou os dentes amarelados
na via pública
do sol a pino da tarde
à luz da lua da madrugada
esta pedra tem cor e classe social
e os parasitas brancos
da sociedade 
branca
legislavam em congresso a má sina do gado negro
e os parasitas brancos
da sociedade 
branca
condenavam nos tribunais
o gado negro ao matadouro sem uma gota de dignidade
eu conheço
uma legião de zumbis negros
que sofrem
apedrejamento diariamente
até
que encontrem a mesma sorte
do jovem negro apedrejado até a morte
com a pedra
que a sociedade
branca
dos parasitas brancos
inventou para vitimar jovens negros
já tão vitimados
por todas
as mazelas da sociedade branca
dos parasitas brancos

Out- 2019

sexta-feira, 5 de abril de 2024

Racismo estrutural

nas novelas, via de regra, eu sou a empregada.
nos filmes a prostituta ou o traficante.
nas propagandas de natal a coca-cola.
nas de margarina o café.
nas de carro o pneu ou o passageiro.
nas de fralda a pupila.
nos telejornais a caneta do apresentador.
nas redações dos jornais as teclas do computador.
nas empresas a faxineira.
nos condomínios de luxo o porteiro.
nas universidades o quadro negro, que é verde.
nas orquestras o smoking do maestro.
na oscar freire o mendigo.
nos shoppings centers o segurança.
nos livros didáticos e paradidáticos os escravos.
no congresso os ternos dos nobres parlamentares.
nos tribunais as togas dos excelentíssimos juízes.
nas academias as fardas dos imortais.
nas bibliotecas públicas as lixeiras.
nos bancos as copeiras, será? 
nos hospitais... repartições públicas...
essa é a vergonha do rascismo estrutural no brasil,
treine o seu olhar, se quiser, é claro!

               Jan- 2024

quarta-feira, 3 de abril de 2024

A cor de minha busca

eu escarro e cuspo sangue negro
na cara desdenhada do feitor
que me chibata,
este destino imposto às custas
de tanto sangue,
na cara de escárnio
do patrão dono do fruto 
usurpado dos meus esforços.

porque negro é o escroto que me trouxe
de terras remotas,
a placenta que acolheu
o tambor do meu peito no ventre
de minha mãe negra.

desde a aparência renegada
das minhas origens
à mista cor dos corpos herdeiros
dos horrores das senzalas,
das dores das torturas tantas vezes negadas.

negra é a cor de minha pele,
negra são minhas palavras 
e a minha poesia,
negra é a raça humana desentranhada
de África mãe, negro 
são os caminhos onde forjo 
meus passos em busca 
de minha verdadeira história.

             Jan- 2021

terça-feira, 2 de abril de 2024

Black power

                                 o sutil asfalto no seu fino trato
alaga o sorriso no rosto
                                         do favelado
rio que deságua no mar do sofrimento
e na inércia do conjunto           que não é o todo
                                  porque somos muitos
despenca o negro pirâmide
                                                    a
                                                        bai
                                                               xo
negrura exposta na estrutura social
no geográfico caráter do não viver
                                    que resiste ao impossível
dissipando o tempo na angústia 
do não ser
                                           -gado e pasto-
sociológico abandono
estrutural desenlace
                                        desengano e sociedade
e lega-se mágoa
vende-se a alma ao diabo
a preço de centavos 
                                suados
                         sob o anverso da moeda do escárnio

apartheids segregam flores do mesmo jardim
demagogia racial tranca as portas do acesso
                      cotiza exclusão
mas o poder do negro cresce pra dentro
e transborda poesia
                      para os poros lacrados da humanidade

             Set- 2021

segunda-feira, 1 de abril de 2024

Poeira

era pedra e pedra e virou pó
e compôs a poeira nas galáxias
sobre os mares, nos desertos
o cisco nos olhos
o pigarro nas gargantas
o pó na estante entre os livros
dormiu com os livros
e penetrou nos livros
e aprendeu as palavras
e devorou os livros
na magia do saber que transforma
depois de tanta andança
deu-se o improvável
mas nunca o inesperado
tornou-se pedra, estrela e lua
hoje, através das frestas do barraco,
faz voar a imaginação
faz sonho onde havia vazio
ilumina o livro nas mãos
do menino pobre que aprende ler

                      Set- 2019

domingo, 31 de março de 2024

Por meu sangue ainda passam

por meu sangue ainda passam 
os ventos dos mares necrópoles
e o hálito amargo das ondas
brindam mistérios antepassados
sofridos nas vagas de oceanos hostis
ante os olhos das nações

ainda passam por meu sangue
quintais de antepassadas lidas
as brincadeiras 
dos moleques a furtarem frutas
das goiabeiras antigas
a fome nos trópicos

por meu sangue ainda passam
quilombos vencidos pela guerra
vozes de atrozes banzos
marcando com seus brasões as minhas veias
remetendo a dores ainda vivas
sob as cicatrizes

ainda passam por meu sangue
velhas lavadeiras com seus lamentos
e as roupas imundas do passado
rumo aos rios das angústias
quarar as queixas 
vivendo sempre dias iguais

por meu sangue ainda passam
os olhos vítreos das senzalas
acomodando desesperos nas noites intermináveis
curando expostas chagas com sussurros
a liberdade estupefata
com os horrores do cárcere

por meu sangue ainda passam
ainda passam por meu sangue

      Fev. 2021

sexta-feira, 22 de março de 2024

O barro transborda

o barro da minha cidade está nas bordas.
o negro está nas bordas, está no barro das bordas da minha cidade. 
cifrado no barro o negro está, no longe onde se extravia a vida, onde há vida que se nega a negra cor do meu país.
o asfalto chegou (para alguns lugares, às bordas das bordas não).
carnaval sem adereço, lágrima clara sobre pele escura, o negro chora, não é mais dono do estandarte. a passista hoje tem endereço nobre, a favela sobra.
o barro está nas bordas, nada muda, tudo muda numa metamorfose trágica, no geográfico apogeu do abandono desprezo descaso. o investimento do estado é parco, exceto o cinza de barcas sombrias onipotentes onipresentes com seus radares discriminatórios.
quase sempre o alvo é negro, dos disparos deflagrados. a farda a patente o coturno sobre o pescoço da negritude sufoca diversidade, os soldados são negros, treinados para ignorar. 
o poder pelo dinheiro aniquila com os sonhos das gentes, antes mesmo que pudessem sonhar.
ninguém está sozinho afundando na lama, almeja-se a cauda duma estrela, dum cometa que irá resgatar a todos dos confins.
o barro está nas bordas, estende-se infinito de cidade em cidade até a próxima capital, a conurbação, megalópole do desespero.
quanto de barro há nos edifícios cobertos de luxo? que braços são os verdadeiros donos do progresso?
os pais são os pés e os braços do meu país, os filhos a cara cara da fome, onde todos trabalham e ninguém come. nestes cantos lamentos mudos mudam a cara da cidade de alegre em triste, onde tudo existe à margem, nas margens de regatos podres, de magros ratos e esquálidos destinos. o muro o mudo olhar a ponte em escombro escondem a parcela condenada dos que habitam vielas barracos ruelas morros com cheiro de morte, onde todos improvisam um sol que não existe, um céu nublado toda vida. os cães fazem a festa no lixo amontoado em fins de ruas.
nas bordas da minha cidade existe vida, existe olhares suplicantes que ninguém vê, ninguém quer ver. o natal passado levou beatriz muito cedo, cedo demais para que se entenda, no dia que nasceu o menino deus, o presente de uma tonelada na cabeça do seio familiar, na cabeça de toda a comunidade acostumada ao barro ao berro, à boneca branca da menina negra sob escombros.
nos terreiros apenas os orixás são os mesmos, as mãos nos tambores são outras, as bocas que entoam as litanias são outras, os corpos que recebem os santos são outros.
a história se repete, o barro das cidades do meu país transborda.

Jan- 22

quinta-feira, 21 de março de 2024

Pedra rara

é nas primeiras horas do dia
que fala aos meus sentidos tua essência
amiga da textura das rosas
da etérea força 
do amor

e com a delicadeza das pétalas
vem tocar meu peito
ávido por qualquer carinho
a manhã está plena e eu não me farto

na insuficiência do tempo
nem a noite me rebela
caindo como o rocio na grama
mas me faz dormir 
na tua luz

como estes olhos tão recentes
atravessam minhas pupilas
e dormem na memória do meu sangue?

o cheiro campestre da tua pele
a boca virgem dos meus lábios
os cabelos de prata que te enfeitam
tudo tudo me espera dentro 
do tempo

espera o toque delicado dos meus dedos
como um anjo espera por deus
dentro de um sonho prestes a brotar
como brota da terra o milho

         Agosto- 2022

terça-feira, 19 de março de 2024

História concisa do negro na terra brasilis

no princípio o verbo era no peito
era a senzala, a fome, o tronco
o engenho, a moenda
nas lavouras havia o eito
e não havia salário
depois veio a indústria
a construção, a favela, o torno
a fome, o martelo
o macacão operário
então veio o progresso
e ainda a panela vazia
a escola, o livro, a universidade
e a muito custo então o verso
por fim, já não havia utopia

               Dez- 2023

Mensagem

esperei pelos correios um telegrama
mas o carteiro desconhece meu endereço
a internet suplantou os telégrafos
tudo mais fácil à urgência que é a vida
minha sorte talvez mude
e transforme o meu destino
mas nem por e-mail a mensagem não veio
inútil qualquer espera
não há advento possível à dor 
de amor ausente
sepulto no silêncio meu drama
e teço mais um poema
de tantos esquecidos
na noite repleta de solidão
noite amena

             Mar- 2024

Esse jeito de amar

tanta bela forma de descrever uma mulher
e eu a descrevo carne osso pele pelo que transpira e sangra
o amor transcende a matéria
mas eu só consigo e quero te ver concreta
coisa que se vê e toca e experimenta

               Mar- 2024

quinta-feira, 14 de março de 2024

Tem gente com fome

engajo tremendo sorriso
ao contato da luz amena da manhã
amena e doce manhã
mas logo desfalece
esvai-se todo entusiasmo
tem gente com fome
e é pornográfico um sorriso
talvez eu fosse feliz
não fosse tanta gente com fome
e eu tão pequeno poeta
fosse grande
também não sanaria a fome do mundo
poeta pode apenas o verso
e a angústia do povo não espera
renasce a cada manhã
a barriga colada às costas
e o olhar perdidamente triste
famélico olhar
constrange um riso rasgado
de orelha à orelha
mesmo para o espetáculo
da luz amena de uma doce manhã
devia constranger todos os homens
mas tem gente rindo à toa
no conforto de suas posses
e se tem criança sem pão
paciência
o destino quis que assim fosse
eu conquistei minha manhã ensolarada
à beira desta piscina
saboreando este uísque caro
trabalhei muito para degustar esta manhã
e até se aborrece
se alguém lembra das misérias do mundo
mas ali ninguém lembra
ninguém vai lembrar

                  Jan- 2024