quarta-feira, 30 de outubro de 2024

No ônibus

meus castigados sentidos ainda captam,
os olhos ousam distinguir detalhes, 
as narinas teimam absolver o sensível no ar,
o cérebro equaciona o submundo das incógnitas 
mais covardemente mascaradas:
não é só o cabelo que dá, 
a veste pobre que pode,
o trabalho implorado que resta,
a angústia desesperada do desemprego,
a assistência do governo,
a pessoa física tristemente empobrecida,
o amor que nem sabe o que seja,
o agasalho dum colo
que ficou para trás na infância,
os olhos resignados de quem assiste à tragédia de cada um
e a cara de quem sangrou a noite toda por cada poro.
é a consciência pressentida que tudo segue
amargamente o curso do abismo.
o homem bombardeou covardemente 
a cidade dos meus sonhos.

              Out- 2024

sábado, 5 de outubro de 2024

Entre as flores do jardim

trabalhadores de tabaco nos dentes
ruminam vida e amassam mágoas sob as solas
enlameadas dos sapatos rotos.
enquanto uma tristeza turva os contornos
dos meus olhos com um pranto lento.

não viram meus olhos,
exaustos de tanto horizonte desperdiçado,
outras marcas do destino além das avarias
nos espectros de toda uma sociedade.
enquanto eu andava entre os presos da Sibéria,
e vi partir, pensei que para nunca mais,
a nau com os olhos de minha amada.

nasceu o poeta depois da guerra,
mutilado da sua dignidade:
flores germinaram no jardim de minha mãe,
rios serpentearam entre as pedras até o mar,
passaram nuvens ocultando a nudez do poente
sob os dedos ainda atônitos com a beleza destes versos.

testemunhei meu irmão caminhar
para morrer adiante sob a tristeza de meus olhos,
entre as flores do jardim de minha mãe,
ou mesmo alguém com semelhantes feições,
já não me lembro de quase nada.
eu mesmo pereci no estio entre as flores de minha mãe.

e quando a madrugada era apenas uma fresta
que eu perseguia na trégua dos anos
quando não esperava mais nada da vida,
surgiu entre a brisa que embotava meu olhar cansado
a silhueta que pensei ser minha mãe a cuidar do jardim,
mas era, novamente, a imagem da mulher que amei.

                             Julho- 2017

Madrigal para uma senhora

O fino cetim que cinge seu corpo claro,
Mais que sua pele macia não é fino.
O diamante do anel no dedo seu de brilho raro,
Mais que seus olhos não brilha, senhora do meu destino.

A madressilva que exala perfume sem fim,
Perfume mais doce que o seu não tem.
A lã de que é feita sua pala carmesim,
Mais macia que seus cabelos não é também.

E nesse brilho sem igual de sua natureza
Vai passando sem igual sua mulher
E nos deixando, nós homens, assim atônitos:

Em uma criatura só tamanha beleza,
É leve, do seu jeito faz o que quer.
Senhora, como a tenho no pensamento com clareza.

Poema composto por volta de 2013, 2014

Não há vaga

a universidade é pública
mas atende aos filhos
da alta classe
de pública tornou-se privada
e para o filho
do pobre não há vaga

o diagnóstico é triste
a sobrevivência
possível
o sentido fragilizado da vida
o osso do banquete
no prato
a liberdade abolida
e do que se precisa nem mesmo resto

a conta que nunca fecha
o ministério
da estatística adverte
a balança
não pende, (de)pende
poder perpétuo, justiça
a exata medida entre a vastidão
e o corpo inerte

as faces estranhas
de uma moeda
a posse usurpada da terra
um oceano
de negras angústias
o desfalque,
a apropriação indébita
a cínica farsa do mérito

em vez de extinguir
o abismo, multiplica-se
o burguês
regala-se sempre
abastado
e mais fome pra quem não tem nome
o feto indigente, coitado
já nasce com fome

a história revisitada
quanto maior a exposição dos fatos
mais a litania é comprovada
a universidade é pública
mas para o filho
do pobre NÃO HÁ VAGA!

       Jun- 2020


Formiga

o cartório não lavrou seu rebento
mais um parto negro apartado da vida
filho autêntico da má sorte
de pai escravo do álcool
e mãe que sucumbiu a sucessivos partos
(suspeita-se que desconhece
a paternidade).
herdeiro da alcunha do menosprezo
violado pelo relento diário
Formiga esmola no semáforo
a fraude da favela acolhedora
refúgio dos miseráveis, dos nascidos sem sorte
o estupro da inocência na aurora da vida.
vítima do despudor social
da sociopatia racista da sociedade doente
da higiene pública da cidade
à sua inadequada presença
da evolução da fome, do medo,
da ausência de dignidade,
da supressão dos direitos fundamentais.
Formiga depende exclusivamente da caridade
eximiu-se o Estado de responsabilidade
por esta vida que berra
osso e pele
do seu perfil mais esguio
que o próprio retrato da fome
por este corpo indigente perambulando a cidade
da herança racista, do imaginário racista
do estereótipo racista de todo dia
a cola é o alimento
a maconha a fuga, o recreio
únicos proventos de que dispõe
este é Formiga
o parto preto e pobre
sem trocado, proteção ou alimento
tão recorrente entre a gente
este é Formiga sem lenço sem documento.

             Jun- 2020

O operário

agradece da gorjeta o operário ao patrão
o conforto que este desfruta permite,
e aquele não tem a pele branca que este ostenta.
a família do operário não é feliz,
tampouco estruturada.
ela não come, não veste, não mora,
necessita do mínimo
para uma manutenção de vida digna.
o menino recebe a precária
educação do estado,
a menina é mãe adolescente e abandonada
e a esposa lava sempre a veste
fina de ontem do patrão.
até aqui o alimento do operário foi gotas de orvalho
com partículas de monóxido de carbono.
e almoçará tijolo, cimento,
areia e pedra com gotas de suor.
para jantar está contando as moedas
deste ofício que o patrão o remunera,
e certamente não chegará, não chegará!

            Jun- 2020

Subversiva pele

subversiva pele que me cobre a carne
o homem colonizou, escravizou e destruiu
reputações e direitos,
mas tua força resistiu a batalhas atrozes
depois do estupro, da tortura e do assassinato.
os desmandos devastaram
povos, garantias e legados sob a perplexidade
de olhos oprimidos.
exposta às crueldades mais perversas
não se dobrou às ferozes ações contra a tua honra,
usurpada das tuas necessidades
fundamentais, e lutou em guerras tremendas,
embates desgastantes, cruciantes batalhas.
ansiaram em dizimar
teus conceitos, teus valores, teu caráter,
mas os ombros que envergam tua dignidade
não entregaram-se aos açoites covardes do opressor
e tu resistiu à chuva e ao sol das lavouras,
ao trabalho constante
sob mais torturas, mais açoites e crueldades.
subversiva pele que me cobre a carne
a carga imposta à tua linhagem
tem lhe deixado sequelas difíceis de curar,
cicatrizes de uma vida de desgastes.
mas tua capacidade de indignar-se,
de rebelar-se contra
as atrocidades todas de que é capaz o homem
enche de orgulho estes peitos
marcados pela dor e pela bravura
que tu proteges,
esta tua índole para recomeços e conquistas.
apenas a este povo
de grande destemor, valentia e audácia,
de brios inomináveis és tu capaz de servir.

               Maio- 2020

segunda-feira, 30 de setembro de 2024

Mendigos

perambulam sem rumo certo
atormentados de tráfego e fuligem
possuídos da inceteza
do que virá na próxima esquina
bem raciocinam no avesso da razão
a lucidez da loucura
famintos ratos das ruas da cidade
loucos alucinados
de gás e buzina
caminham pelas sombras
do que já foram
seres de pele escura de sebo e melanina
sequer sabem de onde veio a sina
(o homem que arvora-se a explicar o homem 
quase nega um passado que condena
passado de tronco senzala e algema)
e espectros das próprias
sombras
insenssíveis os passantes 
nem os notam
invisíveis são a própria chaga exposta
chafurdando restos dos restaurantes
acomodando-se sobre as próprias
                                              bostas
 
                  Jan- 2024

sexta-feira, 27 de setembro de 2024

De que falou o poeta

                     Ao poeta Abdias Nascimento

minh'alma atada à noite gerou o verso improvável
assimilado por minha pele porosa de estrelas
que estendeu na extensão de meu corpo
a percepção do que falou o poeta em eras diversas
e que ora toca a superfície das retinas calcinadas

e escalei montes, transpus as alturas das montanhas
até que avistasse no ermo das horas perdidas
os tempos de espantos memoráveis,
de hostilidades vãs,

mas meus olhos sob as pálpebras
não verteram lágrimas ao espetáculo deplorável
e a poesia me disse tudo o que eu precisava saber

como o sêmen da chuva fecunda a terra
e faz germinar o grão que alimenta o corpo faminto
nasce do ventre da palavra o grão de que precisa o homem
para alimentar o diamante bruto da alma

permitir que a amplidão sobre nossas cabeças
perpasse o instante de um sonho
e que este instante seja definitivamente as nossas vidas
a fonte perdida das palavras extremamente grandes

                       Mar. 2020

Hoje não tem quilombo

Hoje não tem quilombo,
onde agora estancar o sangue,
mitigar do conflito, curar as feridas?
O efúgio talvez fosse uns braços
de mulher,
mas o ódio é substância nociva
que asfixia com mãos
de aço o amor,
e a opressão maltrata
o sentimento e o desejo se esvai
entre balas de borracha
e bombas de gás lacrimogênio.
Estamos obrigados a submetermo-nos
às regras e às leis do opressor,
mas aquele negro que não luta
pelo fim do racismo,
que não protesta por cota,
que não protesta por terra
e por bem estar social,
garantias usurpadas de nós,
tem que despir-se
da pele negra
feito serpente que faz a troca,
e vestir-se com a pele do opressor,
tem que vestir-se da pele branca.

               Nov. 2019

De leituras e ciências

cada vez que fecho um livro me abro,
multiplico a capacidade de me ler, com olhos isentos,
transcendidos de ambição, depois
de tanto horizonte.
e neste olhar para dentro me vasto, despido
de vaidades, me sei do avesso.
exposto a mim, as páginas escritas do tempo,
norte das outonais aragens, cumprem a ordem estável,
mesmo que algum desejo
de transforma-las agite uma cobiça
adormecida, um interesse além do possível.
vem daí a paz do meu sono, da ciência de poder me ver,
elucidar as obscuridades
entranhadas no inconsciente, penetrar no insabido,
no negado aos sentidos,
no oculto sob a casca que nos veste.
isto me põe satisfeito, humano radicado na vida.
por isso abro os livros
cada vez mais,
matuto o lodo sob as palavras.
antes que sepulte-me a noite, derroto distâncias,
conquisto páginas, conheço seus finais
e venço a guerra cada vez que os fecho, depois de lidos.

                       Abr- 2020

Tarde

teus olhos no poema
aquela província dos gestos
ainda jovens
os dias curtos dos afagos
e o silêncio cumplice
das flores

lembrar é ainda ter
mesmo que a posse seja nuvem
que não cabe no abraço
e eu não esqueci teu nome
grafado na pele
na razão

mitigar as horas
encasteladas no teu beijo
que não se apaga 

Poema sem data

Ofensa abolida

ninguém te deve nada irmão,
e este teu dano mental
que a palavra
nem escoa bem da tua boca
e tu vacilas, tartamudeias,
e entre outras coisas,
constrangido, isola-te?
e este teu saber escasso
que te põe à margem dos fatos
e tolhe teu entendimento
das coisas até as mais banais,
e ainda envergonha-te?
e esta tua relação com os ratos
que frequentam teu catre
enquanto doas o sangue na labuta
braçal de todo dia?
e os dentes que te faltam
e as moléstias que te sobram
e o alimento que te falta
e as ilusões que te sobram
e os afetos que te faltam
e as injúrias que te sobram
e este pouco morar,
este pouco vestir.
e este pouco amar,
este pouco dormir.
e este pouco prosperar,
este pouco ir e vir.
e este pouco divertir, divertir?
ninguém te deve nada irmão?

             Out- 2019

Ascendência

daquela robusta árvore
eis o ínfimo ramo que somos
as raízes e a planta
a progênie o que tentamos
na origem à dor suplanta

arejar a névoa espessa
trazer do berço a lúcida aragem
história e nação
o ímpeto da luta e coragem
reaver o avito torrão

      Fev. 2021

Descendência

mira a flor que rebenta
é fruto do fruto e semente
raiz folhagem botão
a imensa estrutura
da extensa estirpe da gente

do sêmen ao ventre
brota um ser de todo ameno
ramo da vasta linhagem
gigante mesmo pequeno
etnia e coragem

    Fev. 2021