quarta-feira, 9 de julho de 2025

Educação

a escola que eu vejo
é a do escárnio ao público
sevicia o professor
e afugenta
cedo o aluno 
no país da opulência
às elites 

                   Jul- 2025


Linha de frente

meu mocambo no quilombo
é mocambo simples
tem milho cozido farofa e peixe
tenho o corpo fechado
na umbanda
primeiro guerreiro de Ganga
pra matar e morrer
sou linha 
de frente na guerra
contra branco tirano
senhor 
de 
terra

                Jul- 2025

Negro escravo

por que eu tenho 
que arreganhar os dentes 
num sorriso
se sou negro de ganho 
de moenda
e arado?

              Jul- 2025

Negra Carmelinda, minha avó.

pude ver a minha avó
tecendo nuvens de banzo
à beira do fogão

pude ganhar um afago
raro afago posto que dura a luta
de suas trêmulas mãos 
anciãs
mãos de quem foi escrava na vida
mesmo muito depois 
da abolição

a canga sobre os ombros
fez dela uma velha de corpo curvo
os olhos enevoados
refletiam a tragetória madrasta dos passos
e a pouca fé no homem 
que governa

negra analfabeta e muda
eram discretas as suas estórias de vó
a favela era o seu quilombo
e a maior agressão

sua pele era negra
a pouca liberdade era negra
a vida era negra

                     Jul- 2025

terça-feira, 8 de julho de 2025

Leis impostas

ruas escuras do gueto
por onde passa dia após dia toda a minha
angústia
de onde saio pro mundo
e me vasto
mas sempre volto
preso às leis impostas à minha pele negra
porque em vez de pontes
encontro muros

                           Jul- 2025

Aguda discrepância: um sumário.

ponta de faca do feitor
captura na tocaia cepo pelourinho
trágica morte na forca
negro de ganho
cachaça roupa urinada boca cariada
lambida por cachorro de rua

e o senhor acumulando
pesada fortuna

negra mucama lavoura
roupa no rio lida pesada na casa grande
criança senzala adolescente
nos engenhos 
estupro banzo de velho na enxada
ama de leite engordando
rebento de sinhá

e o sinhozinho estudando
no exterior

favelas extremos confins
presídios homicídio analfabetismo indigência
desemprego mendicância
no heterogênio tecido 
social a mesma aguda discrepância
viajou no tempo:

a riqueza é toda branca
e toda negra a tragédia da miséria.

                     Jul- 2025

O que fez o negro

vai na direção dos guetos
o negreiro cinza dos poderosos da pátria
pegar negro no tapa ou no tiro
muitas vezes 
os seus iguais na cor 

o que fez o negro
pra merecer a canga o cepo
o antolho
os muros que lhe tolhem o acesso
aos espaços de poder

o que fez o negro
pra merecer a mordaça as algemas
a máscara de ferro
as grades que lhe estorvam o direito
às posições de destaque

fato que nem mesmo 
nos guetos
o negro tem a paz dos dias amenos
sempre em sobresalto amarga 
a mão pesada da tirania
sob a égide das leis

                        Jul- 2025

Há de ter coragem

há de ter coragem 
de palmilhar o chão do senhor de terras
e não se rebelar por parte 
do latifundio

há de ter coragem 
de não sujar as vestes no tronco 
dum pelourinho covarde
tomado de gente

há de ter coragem 
de não dobrar os joelhos carregando 
pedra imensa serra acima
sob sol a pino

há de ter coragem 
de não comer em louça fina 
o coração do senhor de sua gente
numa revolta escrava

                         Jul- 2025

segunda-feira, 7 de julho de 2025

O que é do negro

o que é do negro
desde o ventre materno atingido na honra
ou antes predestinado
por mortal afronta
à vida indefesa na hora do parto
                    a prostrar qualquer homem
                    no âmago ferido
                    
o que é do negro
rendido à força de um tiro grosso
certeiro no coração
sem apelo ou honrosa saída
                    atirado à terra seca da indigência
                    sem porvir que prospere

o que é do negro
humilhado antes que conheça a guerra
surpreendido por um sistema
que sujeita e submete
                     ao poderio da artilharia da raça pura
                      sem miscigenado apelo

o que é do negro forças ocultas
orixás da minha crença
deuses que olham por seus filhos
o que é do negro

a flor que nasce na pedra
não encontra adubo que a dissemine
o negro na sociedade branca
agoniza ainda vivo
                      lutando por um escape
                      que o liberte destas algemas de dor

                     Jul- 2025

A cor do racismo

por que não me estarrece 
a cor que predomina
eurocêntrica cor enraizada
de sólidos alicerces entranhada
nos lugares de privilégio
em toda parte
por todo canto onde há destaque
onde há posição
um corpo branco pulsando vida
resguardado
escandalosamente inserido
na melhor das hipoteses
radicado no tecido que se quer justo 
que se quer isento
de qualquer mácula que o tisne
de qualquer nódoa
um corpo branco que colhe fortuna
bem-sucedido exitoso
florescente
sobre a sorte desfavorável
dum corpo negro

                    Jul- 2025

dos que me desentranharam

sei quase nada dos meus avós
nada dos meus bis 
e tataravós
dos meus país sei que sofreram e lutaram
pra ensinar educar alimentar e vestir
mas não preciso conhecer a história
da linhagem distante dos que me desentranharam
para saber
que sofreram aferro angústia flagelo
que foram marcados
a ferro em brasa
capturados vendidos enforcados
e uma série de graves afrontas
e humilhações
que reverberam no homem no poeta nos versos 
que agora lhes apresento 

                     Jul- 2025

Poeta do povo

um dia a máscara cairá
virá abaixo o escárnio da distinção do homem
ouvir-se-á nas bordas nos quilombos
nas favelas nos confins os mais distantes
o grito descomunal dum peito ao extremo oprimido
confins de nossas adestradas gentes
graduadas na tv de meias verdades e foscos argumentos dos mais iguais
reverter-se-á a miopia do povo humilhado
através da voz ostensiva da poesia
do poeta do povo

                        Jul- 2025

domingo, 6 de julho de 2025

As armas a prata o trono

não amargo cárcere
nas sujas senzalas de então
nem estou nas lavouras nas moendas
ou nos engenhos
muito menos sou negro forro
nasci livre à custa da luta ancestral
mas sinto o peso da pedra
pedra de erguer muros
de construir passagens aos bens
do patronato branco
livre sou até que marcado de cicatrizes
ceda meu corpo ao açoite diário
da exploração
da opressão e do escárnio
que explícitos impõem-se pela força
sob o império descarado
de uma cor que se distingue se exalta
se jacta de um poder usurpado
a braquitude tem as armas
a prata o trono
o negro trabalha se esfola se extingue 
eles usufluem apoderam-se
perpetuam-se exclusivos donos
de entes adestrados

                     Jul- 2025

New racist

ah sim, negro é lindo!
mas é artigo que se pesa em arroba
minha filha jamais estará metida 
nuns braços negros
e meu filho é educado bastante para estar com uma negra
mas sim, negro é lindo!

negro é lindo
mas foi vendido no mercado negro por patacas de ouro
em insalubres logradouros
e minha estirpe é pura 
não admite mistura que a tisne a alvura
mas claro, negro é lindo!

negro é lindo
mas urinou e evacuou nas vestes em público
pendurado no tronco feito charque
que ao sol se curte
e tem na essência o costume do cárcere
argolas e golilhas
mas certo, negro é lindo!

ah sim, negro é lindo!
e a sociedade precisa do negro
mas não metido nas escolas universidades e nos lugares do branco
tem negro hoje até nos parlamentos
cada qual no seu lugar
negro sim nasceu para chibata
está no DNA.

                         Jul- 2025

sexta-feira, 4 de julho de 2025

Aonde poesia?

e nuvens flainam
e folhas adejam à brisa
um negrinho chuteira extinta
chão pé e poeira
trama a fama adversa
assistem incrédulos os esfarrapados
quase se exime a favela
diante de tanto risco tanta fome
nas faces o abandono
será viável o impossível
se nem o mínimo
se nem se aprende se nem se come
e mais um cadáver grita
indiferente à atmosfera que paira
do moleque que acredita
e desfalece a poesia
inerte à realidade explícita
o dia mais azul é cinza
amarga a escrita

         Jul- 2025

domingo, 8 de junho de 2025

A chaga não se apaga

a chaga não se apaga da noite pro dia
não se apaga a chaga incrustrada por séculos
como lanho de couro no lombo
não se apaga a chaga dum crime sob a égide das leis
um crime viajado no tempo que nos atinge
e fere de morte nossos teres e haveres
neste circo sem lona e sem público
neste tecido esfarrapado e sujo
a chaga não se apaga
não se apaga a chaga e vivemos como artigo de segunda 
ignorados no fundo do estoque
pegando poeira e traça com o pior do pior
e nó na garganta nuvens nos olhos apagados feito astro que expira 
num céu de ofuscantes estrelas
a chaga não se apaga não se apaga a chaga

               Jun- 2025

quarta-feira, 21 de maio de 2025

Signos e sombras

                                                        Para Mariana

letra livre
escrita isenta de jugos
alforriada pela silenciosa e tenaz labuta
Ítaca a barlavento rasurada 
de horizontes e mitos
chega a ser

São Franciscos Ganges
Tejos Eufrates Senas Hudsons Nilos
correm na grandeza 
do protesto das tuas arejadas
palavras

teus livros estão em ti
como ruas passadas na história
dos sapatos que mudos possuem apenas 
indícios de antigos passos
é evidente

tuas janelas 
escrivaninha tapetes 
estantes xícaras cortinas cadeiras 
desesperadamente vazias
apenas o grito mudo do teu espectro existe
envelheceste e agora escreves 
o teu ocaso

eu temo o tempo
em que o sol desfeito em cera
não mais ilumine a treva 
dos séculos
e que a imagem tua
que me cobre de ternura
seja apenas sombra

   Mar- 2021

quarta-feira, 9 de abril de 2025

No jazz da noite

choroso sax no jazz da noite
os livros espreitam à espera que os abram
no instante de nenhum açoite 
além da aflição pressentida
a solidão desenha contornos que aprecio
é amiga a solidão consentida
o brio do estro e a palavra no cio

não obstante o destino 
com olhos de lince e garras à mostra 
observa com aguçado tino
o desafino do homem em poeta
consagrado asceta na lida do verso
a alma acessa o complexo
amplexo da vida no instante diverso

mas será o homem completo
se a sina de compor o verso é única sina
se o poeta é todo ele e ele discreto
se quem manda é apenas o poema
a compor toda a vida por lei e decreto
questões que são dilema
o poeta é homem o homem poema

       Fev. 2021

Miragem

corpo mulher miragem
retido das retinas à memória
dono de insondáveis terras
latifúndio do coração
posse única do poeta amador

talvez outras vidas
noutras lidas do amor

plenilúnio que entoa 
sagrado timbre d'estrelas
astro profano que reverbera
fenômeno ou vida
banha o poema de ardor

será a natureza
no tempo de esgalhar a flor

suspeita vasta ramagem
mas era miragem era miragem

          Fev. 2021

sexta-feira, 4 de abril de 2025

Doces bárbaros

cuida desses meninos poeta
que romperam o ventre materno com asas
quebradas 
e jamais voarão
que deixarão cedo o seio da família
pra jamais...
quase todos com a noite pousada na pele
cuida desses meninos...

cuida desses meninos poeta
que vão se abrigar sob as marquises
disputando um palmo de chão
sem cama cobertor
ou colchão
assoprando com o pensamento as estrelas
e com as palpebras apagando a lua
cuida desses meninos...

cuida deles poeta
debutando no furto no roubo e no pinote
que portarão estiletes armas de fogo e drogas
que serão vendados amordaçados e torturados
pela polícia que não dorme em serviço
e acabarão em celas sujas e frias nas instituicões
de correção de menores
cuida desses meninos...

cuida deles poeta
que a escravidão ainda não acabou
e o sistema se encarrega de todos os petrechos
de tortura e opressão
dos negreiros senzalas e pedras que se carregue nos ambros
cuida!...

cuida poeta
que a favela é muito pouco
e a rua o tanto que lhes cabe dessa vida desgraçada
que o alimento é o travo amargo na boca
de cola de sapateiro e crack
e as vestes os trapos sebosos que os esquentam do relento
cuida deles poeta...

faça o que decretos leis estatutos ou políticas
não lograram fazer...
cuida poeta...

trata deles no teu poema reclamando
o que jamais haverá
que a força dos teus versos revigora suas asas inúteis

                   Fev- 2024

quarta-feira, 2 de abril de 2025

Com urgência

meu silêncio
comunica-se com o seu
dentro
                        de nossa noite

mas virá o dia
esse meio-escuro dia que há
do nosso encontro
              abismos
e nos amaremos com urgência
nessa estranheza
                   infinito desejo

                    Jan- 2024

quinta-feira, 13 de março de 2025

Quando ouço um blues

quando ouço um blues
vozes ancestrais falam em mim
raízes de tempos remotos
só então reconheço minha própria voz
que emerge de um recôdito
onde o ferro grita
nas trevas de meu corpo marcado
quando reconheço cada cicatriz
que tento ocultar sob as vestes
e explicarei apenas
aos que compreenderão os motivos
então entendo
as correntes dissimuladas
os embustes que utilizam os mercadores de gente
a minha própra ignorância
então tomo ciência dos próximos passos
minha luta passa a ser questão
a honra cavada com as unhas
a prole distante do ferro
das crueis artimanhas dos donos de gente
dos quais ainda sou cativo
quando minha arma é a palavra
a síntaxe do poema suado
as metáforas escavadas da pedra
quando a voz são vozes nas lavouras do peito
então me liberto
crio minha própria abolição
deixo de ser escravo dos senhores da casa grande 
entro na posse do meu destino
quando ouço um blues

                   Dez- 2023

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2025

O que Será- Milton Nascimento e Chico Buarque ao vivo no youtube. Em qualquer circunstância esses dois valem muito a pena, mas eu conferiria esta obra-prima da MPB neste vídeo.

A casa das três senhoras

Todos haviam partido. Pelo menos todos que vieram antes. Vivas apenas as filhas e suas famílias, mas viviam distantes. Eram filhas de apenas uma delas e sobrinhas das outras. Falo de três velhinhas pretas feito carvão. Três irmãs na vida e nos costumes. A casa era simples e sempre a mesma, construída por seus pais no germinar da comunidade. Sabia-se pouquíssimo, quase nada, das três solares e diurnas velhinhas. Eram uma imensa incógnita para as gentes do povoado. Insuspeitas, ninguém previa nada demais no comportamento das três. Passaram toda a vida praticamente despercebidas de quase todos ali. Sabia-se que amaram, que sofreram, prosperaram; uma delas fora até professora na rede pública de ensino. Viveram, sempre reclusas em si mesmas e na casa. Tinham sempre os mesmos hábitos e, personalidades muito tímidas, andavam sempre retraídas. Viveram sempre muito tristes e cabisbaixas desde a morte da mãe, ainda em suas juventudes, jamais superam a grande perda. O pai que nunca se casou depois da partida da esposa tinha sido em vida o grande esteio das três. Gerações e gerações os Pereira da Silva, era este o sobrenome das velhinhas, nunca tiveram posses, haviam notícias até de escravizados na família no tempo do Império. Como já dito, elas eram indiferentes para quase todo o bairro, mas havia uma outra família que as notaram, sobretudo na figura de um dos membros que amou desesperadamente a professora, irmã do meio, contudo a história deu em nada pois ela odiava aquele homem atrapalhado que a cortejara num tão sem jeito que a história toda havia beirado o absurdo. Nossas heroínas viveram fechadas como fechadas morreriam. Gostavam e cultivavam pequenas plantas em vazinhos de louça, e também apreciavam cachorros, não obstante há tempos não tutelavam nenhum depois da morte do último, o Théo, apenas a mais velha costumava alimentar os cães de rua. Tudo havia passado e estava sepultado na vida das três, coberto por uma espessa camada de pátina de uma vida distante no tempo. De maneira que eram religiosamente autômatas criaturas que subsistiam dentro da casa das três senhoras como era conhecida aquela velha morada muda, soturna, mas cheia de histórias de um tempo que jamais voltará. Viviam de pequenas coisas e amenidades. Nesta rotina minimizada sem novidades e nos seus próprios mundos que abatera-se sobre as três lindas velhinhas, uma tristeza crescente abrigava-se nos bons coraçõeszinhos das nossas personagens. Já não tinham força para viver, para solucionar o mínimo esforço que demandava três vidas numa casa, estavam mais a abandonarem-se ao mundo que deixavam transparecer. Não se sabe como nem quando decidiram isso, mas uma tragédia abateu a manhã daquele outono de folhas caídas daquele ano, as três velhinhas haviam amanhecido, naquela amena manhã de sábado, mortas cada qual em seu quarto. Esta inesperado notícia chocou a todos da comunidade. Não tinham desprezo pela vida, mas laceravam-lhes o coração a solidão, o vazio, a dor de tanta perda e tanta renúncia que lhes impulseram o tempo e o destino. E decidiram o que vieram mastigando vagarosamente e em detalhes durante todos esses anos de sofrimento. Eliane, a irmã do meio, viúva e sem filhos encarregara-se de tudo, não sem antes combinar em detalhes com Márcia, a mais velha, solteira e também sem filhos e Elaine, a mais nova, viúva de alguns pares de anos do grande amor de sua vida e pai de suas duas filhas. Descera então à rua do comércio, a poucas quadras da casa e adquirira o arsênico clandestinamente, substância letal que provocava uma morte rápida e sem dor, voltou a casa e trocou um olhar mudo com as irmãs querendo dizer que estava tudo certo. Caído o crepúsculo da noite daquela fatídica sexta, reuniram-se as três em torno da mesa de jantar e sentaram-se em suas respectivas cadeiras de sempre, depois de fervida a água e preparado o chá  iserindo o veneno em cada uma das xícaras. Sem muita cerimônia, apenas um silêncio cúmplice entre as três, sorveram o conteúde que pertencia a cada uma e foram para seus quartos. O resultado foi o fim duma história que na soma dos prós e contras valeu a pena, e que o proseguimento dava-se com as famílias das amadas sexagenárias filhas de Elaine, sobrinhas de Márcia e Eliane, que sofreram muito com a decisão das três velhinhas, mas entenderam perfeitamente os seus motivos, afinal a vida fustiga cada um a seu modo, e há golpes da vida que são incontornáveis.

                      Fev- 2025
Quando as condições estiverem mais favoráveis e, estarão, este conto estará melhor escrito. O autor.

terça-feira, 25 de fevereiro de 2025

Formação do mendigo Pedro

primeiro ele não delinquiu
agressão não foi capaz de proferir e a própria voz não exibia
precariamente estudou entre a gente e até amou
mas era preciso fumar, era preciso perder-se entre a multidão
e como sustentar o vício e o desejo de tudo que não podia
a própria família era uma incógnita indevassável
no turbilhão voraz da disputa pelo lucro muitos se perderam
ele não assimilou os códigos de sobrevivência na selva
de repente a fuligem as carradas os ruídos e todas as engrenagens 
da cidade bruta ele era das ruas um espectro
sumido nas trevas do capitalismo 

                        Fev- 2025

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2025

Justiça social

sim caros senhor e senhora das elites
caros donos do capital de nosso país tão castigado
a violência urbana que estarrece a todos
quando não acontece nas periferias com os periféricos
tem remédio na sociedade brasileira
e a solução para essa chaga é simples
resume-se a duas palavrinhas capezes de redimir
uma nação dos seus erros
                     duas mágicas palavrinhas:
              JUSTIÇA SOCIAL

                        Fev- 2025

Negrócios

quando eu não era letrado
e meu ofício era o eito e a revolta
quando eu tinha apenas a capoeira
falaram de mim nos livros
mas falaram dum jeito tão atravessado
tão atravessado que choca
que parece que eu não tinha alma
parece que meu intelecto
era versado na pinga e na pirraça
ou que eu pensava no falo
minha cabeça era oca
mas na base do suor e sangue
aprendi a fala
aprendi as letras
aprendi a escrita e cursei universidade
e agora falo de mim nos livros
conto livre de jugos as minhas andanças
os meus sonhos e desejos
a minha miséria e a minha luta
não sou mais o animal selvagem
que me fizeram ou tentaram fazer
não sou mais apenas um corpo da sinhá
não sou mais um corpo autômato
agora falo e penso e escrevo
e continuam falando de mim nos livros
mas agora posso refutar
escrever a minha própria história
e estou nas livrarias
mais um bocado de anos
e todos saberão que lá vai um homem
que fala e pensa e escreve
não mais na categoria de negro forro
mas na de gestão de negrócios 
cidadão do mundo

              Jan- 2024

sábado, 15 de fevereiro de 2025

Sem Fantasia- Chico Buarque e Maria Bethânia, obra-prima da música popular brasileira, vale muito a pena pela sensibilidade. Letra de Eliane Elias. No youtube.

Memórias

havia portão árvores e a rua
um danado cão divertindo-se em urinar
aos teus pés
assuntos delicados
nos quais eu não podia tocar
tua boca
teus olhos
teus braços
você mulher e intelecto
eu homem e todo coragem

(a repressão disfarçada 
na noite
do meu saber
o opressor oculto no opaco da juventude
de quase toda a juventude
eu era livre e prisioneiro no mesmo homem)

e o desesperado desejo
de teus lábios

mais futuro que passado
lua vento tecendo outonos e céu estrelado
a percorrer ainda vasto chão 
de perdas e ganhos
e o apaixonado coração

                        Jan- 2024

Intempérie duma dama

não sou fantoche
de um amor perfeito
mas tento
enquadrar-me ao teu jeito

bolei no pensamento uma boa
estrateja
agora se tu trovejas
transindo-me d'espanto

sereno uma brisa leve
e no silêncio da minha aragem
esperarei que abrande

tua imensa tempestade

            Fev- 2024

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2025

Um nome

                                            à Eliane Pereira da Silva

ostensiva a boca chama um nome
talvez tenha sido sonho ou um torpor matutino com restos de sono
e este nome está em meu sangue como a chama está no fogo
irreversivelmente parte que não segrega
este nome está grafado em cadernos perdidos nesta estante em desordem
um nome que trago estação após estação por entre escritos
esquecidos em folhas ao vento entregues
são letras tatuadas na memória cuja boca jamais esquecerá a pronúncia
e ratos e baratas não levarão pelos vãos estreitos da noite para as trevas
nome que não cabe nos sonhos de qualquer poeta desgraçado
que está apenas no grito do galo tecendo manhã com outros galos como diz o poema
nome que perdeu-se no cartório ante tantos nomes em papéis escritos
e que na desordem dos dias vai ficando assim na poeira do tempo
nos arquivos do meu peito esfacelado
soterrado sob um coração de pedra pra eternidade da carne que apodrecerá sob a terra 
e levará esta palavra no seu cerne mas que o verme não saberá dizer ao certo 
a quem pertence aquela perfeita junção de sílabas 
que te obstrui as entranhas

                  Mar- 2024


quarta-feira, 12 de fevereiro de 2025

Farsa

nos meandros de nós uma farsa
essa avenida que aproxima 
e afasta
pois
em todo caso
melhor que um são dois

              Fev- 2024

terça-feira, 28 de janeiro de 2025

Cervantes em São Paulo

olhando da janela do ônibus
cervantes talvez imaginasse quixote em batalha
contra os arranha-céus
mas vendo a cidade despida
coberta apenas por tanto gás e ruído
espantar-se-ia o grande mestre com as gentes da metrópole
e destacado das pessoas por suas roupas esfarrapadas
sua cor escura e aspecto medonho um bicho:
um mendigo esfaimado revirando o lixo
o que para muitos é processo natural das grandes urbes
para o poeta pareceria menos a mão da natureza que a do homem
e tudo que visse era ouropel ubíquo e frágil
quixote talvez voltasse para casa
sem batalha sem cavalo sem espada apenas resignado
com uma dor imensa no peito

                     Jan- 2025

segunda-feira, 27 de janeiro de 2025

Catedral da Sé

o prefeito da cidade tomou uma medida disparatada
varreu das escadarias da catedral os bêbados e os vagabundos
cobriu o câncer com a mortalha de turim
só que a cidade está desprezada
as gentes que vivem na cidade estão desprezadas
mendigos, moradores de rua e usuários de droga
são a nova confuguração do povo do centro
as escadarias das catedrais são do povo
são dos bêbados e dos vagabundos que precisam mais de deus
que os burgueses que ouvem os sermões do arcebispo

                              Jan- 2025

domingo, 26 de janeiro de 2025

Fagulha

o amor que dorme
soterrado dentro do peito
está sujeito a vir à tona e incendiar
o corpo de quem ama
sorver o ar
queimar a cama
e não há oceano que debele as labaredas
que vão lamber tudo em volta
até que soçobre a casa
e tudo vire cinzas hulha
brasa
por conta duma
fagulha

                       Fev- 2024


Nossa terra

enquanto tardo a vida de escravidões
quando minha filha foi levada pela mão ao reino das sombras 
e minha esposa repousa um sono perpétuo sob as pálpebras
a cidade vazia sob o rigor do inverno espanta
os mendigos mortos aguardam algum calor dos sobreviventes da guerra
horas que escorrem em clepsidras
meu passo é lento minha esperança perdida
nos donos de nossa terra

                       Jan- 2025

quinta-feira, 23 de janeiro de 2025

O meu amor é maior que eu

o meu amor é maior que eu
se eu pudesse falar com você...
se eu pudesse beijar teu rosto inteiro
beijar teus olhos, tua testa, teu nariz, tua boca
beijar teus cabelos, teus braços, teus seios, teu sexo
se eu pudesse te abraçar muito
abraçar bem apertado
abraçar sem fim
abraçar abraçar abraçar até te sufocar
ler nos teus olhos a história da tua vida
eu a amo sem medida
amo desde sempre e por toda minha existência
já não sei mais o que fazer para viver sem você ao lado
sem você olhando nos meus olhos
sem você conversando comigo longamente
e sobre todos os assuntos por toda a noite
sem você pronunciando meu nome
sem você sorrindo ou chorando
sem teu cheiro
sem a tua saliva alimentando meu amor
a falta que você me faz
também é maior que eu, é maior que o mar
que o céu, que todas as galáxias
não queria estar em todos os momentos com você
pois apenas uma hora do seu dia
far-me-ia transbordar você por todos os poros
e a nossa conviência seria leve
mesmo intensa
saber do seu dia e contar do meu
calcular nossas dívidas e despesas
pois as coisas extremamentes chatas com você seriam alegrias para mim
eu a amo de um jeito profundo e infinito
dum jeito que excede os limites de uma vida
e vai por outras vidas
assim como acredito que veio de outras
extravasar este amor seria necessário muitos universos 
e muitas vidas
expandir ao infinito um sentimento que não cabe em mim
como o universo se expande sempre
se eu pudesse te falar um minuto...

             Jan- 2025

sexta-feira, 17 de janeiro de 2025

Dentro da noite

mergulhar nos teus mistérios
banhar-me no teu corpo de tuas lágrimas teu gozo teu suor
e sair isento de tua drástica ausência que me fere
na tua verve me alargar e te conhecer por dentro 
tomá-la nos braços e te proteger do mundo
ver nascer a noite nos teus olhos a noite mais intensa 
que nos abrigará nas horas remotas
no seu âmago todo escuro

                      Jan- 2025

Nada além de sombra

não sou gama 
nem machado nem barreto
não passo de sombra desprezada
na sociedade que deglute
como podre alimento
a cor que me distingue
bibelô das elites
sambo minha sorte de coisa
e carrego nas andanças
o fardo que esgota
peso imenso de ser anônimo negro
inserido no império intacto
da branquitude

                  Jan- 2025

Um negro nos teus braços

um negro nos teus braços
esta cor tão viva que destoa da paisagem
um negro da bahia de alagoas de nova york do congo do haiti
leão selvagem com destroços dentro do peito
infenso de todo à violência que o persegue
um negro dos quilombos em guerra com uma flecha no peito
tomado por estes espectros de correntes e estas grades fantasmas
teus braços tão delicados assustar-se-ão com a brutalidade
que tem sofrido este homem tão estranho à sociedade
este marginalizado ser que entoa paz
que persegue a justiça e a liberdade embora tão encarcerado
neste mundo onde o branco tudo pode e seu dever é servi-lo
um negro de corpo e alma negros nos teus braços brancos 
intactos braços de tantos privilégios
na tua pele tão livre de avessos
acaso tisnarias a história tão imaculada
da tua sorte?

                       Jan- 2025

quinta-feira, 16 de janeiro de 2025

Os espelhos

os espelhos estão cobertos 
minha mãe legou-me a mania de cobrir os espelhos quando chove
mania que herdou de minha avó
mas nos espelhos vejo apenas meu rosto aprendendo ser velho
tua imagem que me alegra o dia vejo apenas em fotografia
aprendi a te amar olhando tuas fotos
em que esquina exatamente vou ver teus olhos de novo?
medindo o chão talvez por uma timidez congênita
quando me extasiarei olhando minha imagem no espelho de tua íris?
deixastes tanta vida para um incerto depois
quando agora eu queria o teu calor
quando agora eu queria descobrir teu cheiro
deixar minha tatuagem no teu sangue
estes espelhos cobertos refletem minha vergonha agora
de haver deixado você partir nos braços de um vento de outono
de haver deixado você alheia de mim
de tê-la apenas nos versos

                           Jan- 2025

quarta-feira, 15 de janeiro de 2025

Assalariados da fome

moluscos do mangue eclodidos do ermo
formigas operárias da caatinga social, inóspita e árida terra 
dos sem-sorte implicados na lida do pão
assalariados de modestas estirpes
desaguam nas obras e fábricas das cidades
desafortunados empregam a força do braço na feitura da nação 
que os despreza
e máquinas humanas desdobram-se multidão saciando a sanha de progresso
dos patrões endinheirados
sob os uniformes e macacões que os distinguem fabricam fortunas
para gerações e gerações alheias 
enquanto estabelecem a miséria dos seus
por força ou em troca de uma códea
mirrada de existência

                             Jan- 2025

Mãos de operário

estas mãos que já foram humanas
e hoje sãos duros cascos de mãos operárias
embargadas mãos de ogro, infenso instrumento 
ao carinho de amor
mãos precificadas de irreversível brutalidade
obscuro sargaço em superfícies sensíveis
prólogo e epílogo das minhas vergonhas mais fundas
e expressão do progresso inacessível
lamentam seu destino de trevas 
condenadas às sombras do ostracismo na cela escura 
da íntima masmorra do meu ser medieval

            Jan- 2025

terça-feira, 14 de janeiro de 2025

Filhos da mesma mãe

vivemos alheios ao parentesco
ávaros, vivemos indiferentes
enquanto gira o globo e tudo volta
o alimento nos chega à mesa num passe de mágica
nós que comemos, e desperdissamos alheios ainda
depois de haverem-se perdido toneladas do mesmo alimento no transporte
e ainda alheios nos regalamos com fartura
mas na lama escura e podre do completo anonimato
nos escombros duros de anseios bombardeados
subexistem filhos da mesma mãe
irmãos de pátria e sangue derramado no campo de batalha
são esses seres que tropeçamos nas ruas
andarilhos da grande cidade
órfãos d'áfrica, grande mãe da humanidade
os enigmas obscuros das urbes
vitimados das tiranias com que forjou-se a nação
os destroços humanos de nossos atos
eu falo dos indigentes que povoam as ruas sob nosso desprezo
falo de gente que transpira fome
sob nossa arrogância

                          Jan- 2025

segunda-feira, 13 de janeiro de 2025

Origem

o mendigo vem de um ventre castigado
que por sua vez vem de outro ventre castigado
que vem de outro e de outro e de outro
até às savanas d'áfrica a captura a tortura os porões dos negreiros
que desaguam em terras brasileiras

para o eito forçado o tronco a chibata e outras crueldades
enfim a "liberdade" as ruas a exploração
as favelas a fome o álcool as drogas a doença mental a indigência
é essa a origem de muitos mendigos que vês diariamente nas ruas
a história brasileira omitida

                   Jan- 2025

sábado, 11 de janeiro de 2025

Sob as barbas de deus

a féria é pouca pro mês
o catado da feira não sobra pra semana
as sinfônicas do rádio dão lições de delicadeza
e vou-me embrutecendo com a árdua lida
tuas mãos suaves de docente
extranharão a calosidade grosseira das minhas
o intelecto desenrolando assim assim
estalado de sol tamanho
o patrão mais quer explorar
a sociedade mais oprime arrogante sob as barbas de deus
os sonhos todos de vida a dois definham como nuvens
dispersas na abóboda do céu
este negócio de amor escolhe cor e condição
sem que não sofra ninguém
nesta sociedade que destrói com requintes de crueldade 
a pessoa física de quem ganha o pão com a força dos braços
e os humildes planos de família satisfeitos
vêm com prazo de validade vencido de fábrica
do ventre materno ao inferno
desta vida de silvas

                       Jan- 2025

A grande noite

entre a desordem das gavetas
e os livros empoeirados a noite galopa seu trote lento
tentando talvez seduzir-me a embrenhar seus segredos
jovem destemida propõe jogos perigosos
jogos de embriaguez, vadiagens e inconsequências
mas quero aprender da noite o poder sedutor de sua escuridão
a força de comportar o peso da beleza de tanta estrela
apenas uma estrela brilha na noite de minha pele
amor que excede o peso que suporta meu corpo
a noite silenciosa me olha e aconselha:
"olhe pra dentro de si, encontre no âmago a força"
e nos braços da amada descubro força suficiente
para sustentar sua luz

                       Jan- 2025

Amar esta mulher

amar esta mulher é um pouco liberdade,
ambíguo como uma alforria num país escravagista.
um pouco prisão, estar restrito aos limites do corpo
e não dispor do poder de pássaro que enxerga de cima a savana.

mas é meu vento de outono
aquela brisa leve que refresca e dilui a tara abrasadora do sol
é meu rio manso em pleno estio
quando posso despir-me e mergulhar o corpo
nas águas frescas do seu leito

é enfim sentir-se vivendo estações
e suas mais íntimas características e peculiaridades
detendo-se na intensa experiência de experimentar
a vida no que ela oferece de mais saboroso
o espetáculo das sensações

alimento-me deste amor sem conforto ou luxo
como faminto mendigo alimentando-se do que conseguiu perambulando a cidade, 
com a mesma voracidade e urgência
num canto de rua entre as gentes passando indiferentes.

ignoro a fronteira entre o querer e o poder
pois a entrega deste amor é como devaneio de poeta
diamante indescoberto no fundo da terra
entre a distância e o estar no corpo.

                              Jan- 2025

Esfarrapados

a sociedade tolera os esfarrapados
infectada pelo racismo e a indiferença
doença corrosiva e terminal
e a criança negra, a criança pobre reconhece no branco o seu ídolo
libertando-se às vezes apenas depois de adulto
trauma instalado, crime consumado estamos todos doentes
a infecção alastra-se por todo o corpo social
as elites intactas gozam o seu sucesso
os esfarrapados perecem sem direitos
a sociedade então rui em escombros de ignorância
jazem indivíduo e humanidade
vazia a terra segue seu distino 
de globo inabitado

                 Jan- 2025

quarta-feira, 8 de janeiro de 2025

O amor é um direito

os anos vão passando
e a gente vai passando com eles.
indigno-me ainda com coisas que não podemos mudar de imediato,
coisas como o racismo, a desigualdade social e as injustiças.
ainda há poucos com conciência das coisas com as quais me indigno.
mas o tempo encarregar-se-a delas certamente.
quem dorme, acordará! quem luta, vencerá!
dedico meus versos, muitas vezes ácidos,
a quem não se cansa dessa luta árdua por justiça.
o coração da gente é feito criança acreditando sempre numa utopia.
chegará um tempo que hão de poder brincar
livres como brincam as crianças.
o tempo também carrega nossos dentes, nossos cabelos e o viço de nossa pele.
carrega numa avalanche as pessoas que amamos, as coisas que adquirimos
ao longo da vida e vai deixando um vazio nunca preenchido.
e se existe uma fórmula que faz valer à pena tanta luta, 
tanta perda e tanto vazio essa fórmula é o amor.
um dia o grande Nelson Mandela disse:
"ninguém nasce odiando, e se ensinamos a odiar, podemos ensinar a amar."
aprender amar, saber amar é fundamental, ninguém pode nos tirar isso.
a sociedade há de amar um dia,
quando este dia chegar teremos uma terra onde viver.
hoje temos um lugar estranho onde o homem pisa no homem, mais que pisa,
escarra na cara, tortura, mata.
quem tem o poder quer mais poder e oprime, humilha, explora.
o oprimido é cada vez mais oprimido e, o direito é tirado com violência, 
de muitos o direito foi tirado gerações e gerações anteriores.
a maior violência está neste ponto, o pobre, o injustiçado, 
o maltratado muitas vezes sofre sem saber
o ponto de partida de tanta angústia, de tanto sofrer.
mas com poesia, com livros, com conhecimento
vamos construir uma sociedade sã para todos, de todos.
hoje este direito de viver num lugar saudável é para quem come, para quem veste,
para quem tem axcesso ao amor,
à cultura, ao conhecimento, à informação, ao conforto.
hoje o lugar saudável pra se viver
é para poucos.
 
                     Jan- 2025

domingo, 5 de janeiro de 2025

Primeiro poema

este livro não começa aqui
vem mesmo de antes
da primeira visão que tive de ti
que ainda guardo
bem viva na memória
antes mesmo que eu soubesse
organizar as palavras
compor as letras
e não haverá cabo
isso mesmo não haverá final
tudo o que eu escrever
até a última palavra
será dedicado a você
mesmo os poemas mais duros
que não falem de amor
não falem da proeza
que é amar-te minha musa
amor que eu jamais soube igual

              Fev- 2024

Colóquio com a mulher amada

quanto não ficou apertado
este coração menino num quarto escuro
esperando um sinal
um indício ou qualquer outra alegria efêmera
mas com a poeira do tempo
aprendeu libertar-se e tomar o ar
dum dia azul
e brincar na grama como fosse ainda
um jovem menino encantado
com as belezas da vida
madurei dum jeito gente não fruta
aos trancos e barrancos
e isso tranquiliza a gente dum jeito...
sei seu endereço
e sei que posso encontrar-te na rua
por estes meros acasos
que a vida proporciona
e sabe que de maduro isso me basta
não direi que não conto
com a possibilidade de um abraço prolongado
de um beijo nos lábios
ou de uma história pra contar ou ouvir
dentro duma noite branda
tudo isso me assalta ainda o peito e eu aceito
como possibilidade que se realize
mas não brigo mais com deus e o mundo
pra tornar realidade uma coisa
que cabe quietinha
no canto dum coração que ainda bate
quando deixar de bater não sei
ninguém sabe
mas ainda não deixou
e este cantinho é teu
amor que não acabou
que ainda arde
vivo feito você e eu
dentro duma tarde

                  Fev- 2024

Lugar de negro

mau destino sabido
mesmo antes da concepção.
de quantos maus destinos sabidos 
o estarrecimento?

pelourinho é pouco
chibata é pouco
o tronco é pouco
ainda tem a pinga barata, 
intragável, goela abaixo.
eu que gosto de livros e conhecimento,
mas tenho cicatrizes.

o mijo nas vestes, o sebo, 
a comida podre, o intelecto esfacelado.

o cigarro, a droga, o homicídio, 
o estupro, a indigência, a exclusão,
tudo sobre meus ombros.
quando abolir-se-ão das máscaras, do cepo,
das grades, das algemas?
e o orgulho de ser negro, quando fato?

não estou pela misericórdia divina, 
a dívida é do homem.
credor rigoroso, 
meu verso é centavo.
 
                    Jan- 2024

poema inconcluso e sem data

menino negro na favela
todos diziam de sua inteligência
havia céu e estrada
potencial de voo e tempo
mas mais perto
do álcool e das drogas
entrou 
para estatística

A mulher que eu amo

a mulher que eu amo é diferente
é doce, leve, incapaz de qualquer absurdo
e muito inteligente
eu estava achando estranho
mas estou feliz
eu nunca ouvi ela dizer meu nome
e faz eternidade que ela
dirigiu a palavra 
a mim, a voz doce 
que não sai do meu pensamento
o riso discreto
que um dia soou 
aos meus ouvidos
enfim, tudo que se chama amor
e que vivemos
que a mulher que eu amo
é a mulher que eu amo
e pronto

          28/03/1997

Poema sem correção e inconcluso

o brasil nasceu dos braços dessa gente preta
nos engenhos, nas lavouras, na extração das riquezas












enquanto houver um oprimido
sob o macacão operário
enquanto houver um mendigo
comendo os restos dos endinheirados
não posso enfeitar o discurso com palavras amenas
e meu verso áspero permeia o poema

meu olhar treinado reconhece a pele negra
sob o macacão operário
reconhece ainda a pele negra
na pele do mendigo revirando os restos no lixo
muita gente passa e nem vê

não vê nas novelas, nos filmes, nas propagandas
a ausência do protagonismo de minha gente
não vê nos livros em suas estantes
nos jornais que leem
nos bancos das universidades onde estudam seus filhos
a ausência do protagonismo de minha gente preta

os milicos largaram o osso
depois de grossa pancadaria e protesto
mas entra governo sai governo
e minha gente negra ainda é o alvo da opressão
ainda engole a pinga forçada goela abaixo
e fuma a bomba h dos excluídos

o best seller ainda é *********
e suas referências brancas, seus romances vazios
enquanto provavelmente meus versos
morrerão esquecidos nas páginas desse blog
e escaparão à análise dos críticos, pesquisadores e historiadores

a indiferença do mundo contra um povo
contra sua cultura, sua arte, sua etnia e sua cor
os assassinatos covardes de luther king, steve biko, malcolm x
dos amarildos e genivaldos nos becos escuros das favelas
e muita gente passa e nem vê

mas esse povo existe
como existe sua cultura, sua arte, sua etnia e sua cor
e a chaga exposta da indiferença permanecerá em meus versos
sem pretenção nemhuma além da denúncia
meu dedo está na ferida

                            Dez- 2023

Uma vírgula 2

toda uma história de avessos
destino traçado antes da concepção
ainda em tempos bem distantes
e este inferno fora do útero
pra negro retinto estava por uma vírgula
de agressões trazia um tratado
palavras que lhe corriam nas veias
não que as cultivasse
mas como ervas daninhas
brotavam no jardim de suas lutas
maltrapilho maltratado humilhado
bebeu fogo comeu vidro abraçou espinhos
banhou-se no sangue da íra alheia
e só queria uma fresta
mas o barro sujou-lhe os sapatos
lhe emporcalhou as vestes
penetrou-lhe a pele
no lugar de um coração
uma escultura escarlate percutia
e todas doces glórias que almeja um homem
na mão contrária seguiam
uns olhos de abismo em suas retinas
seguro porto de atraque vislumbra
nada mais que a morte segura
e queda-se sob uns cabelos de medusa
para sempre perdia-se

                         Dez- 2023

Uma vírgula

pra negro retinto 
estava por uma vírgula
o destino cobraria o preço caro
até os 15 tinha tudo
e tudo era nada
queria amor, carinho e tudo o mais

vintém não tinha, um esfregão
sua universidade
e as paralelas do barro
subúrbio, marmita, remela 
e trem lotado, e ainda queria amar

era cego posto não queria ver
sonhava pernas, duros peitos, buceta
a mais linda sonhava
pra retinto faltava uma vírgula

por fim achou quem amasse
quem alto sonhava pro seu parco defunto
envesgaram-te os olhos
onde passava era um canto de olho
um escárnio

depois de pancada, polícia
e escarros na cara andou percebendo
a mais linda não tem parecença
sua pele é pra outros voos, não este quase retinto

que a bala persegue
e muitas vezes encontra já com cicatrizes
andou percebendo que ascender
nesta sociedade é restrito
à aparência mais "amena", outro tom

a mais linda formou-se
e já tinha um bem, um ouro, um euro
e ele afro
fruto fraco pro jogo franco daquelas regras 
quedou-se inconformado

veio-lhe a prata tempora
os sonhos todos vencidos, pisados
nuvem nos olhos
calos nas mãos de tanto estudo
já não esperava mais da vida
eis tudo

                               Dez- 2023

Ponte

a ponte que separa 
nossas bocas
e nossos abismos
liga irremediavalmente nossos eus
                        e nosso destino
percorreremos!

mas como todas as pontes
há mendigos
sob ela
e eu não estou afim
             agora
enquanto você dorme

de fazer a remoção necessária

             Jan- 2024

Poema sem correção e inconcluso

corroída da base ao topo
por dissimulado racismo
sorri satisfeita a sociedade
mas o que tem é dívida
contraída e não paga
com substanciosa parcela
de seus cidadão
que não anda distribuindo
sorriso de pai joão
quer com urgência pelos males 
causados reparação
não existe aqui bobo da corte
pra levar chibatada
e reagir com afeição
ao déspota que nos fere
seja tenente major capitão
sobretudo quem deu o sangue
no fazimento da nação
queremos nossa parte do bolo
essa é nossa condição
se você branco tem consciência
e já escolheu o lado irmão
seja bem-vindo à nossa luta
agora você que menospreza cidadão
vamos à guerra franca
peito aberto e coragem porque não
como está não fica
digo na certeza e com disposição
cota apenas já não serve
é apenas meia obrigação
chega de servilhismo
de não e sim senhores pois não
queremos integralidade
não apenas ínfima porção
acho que bem me explico
negritude hoje é coletivo união
ou vale pra todos ordem e progresso
ou instauramos revolução
fica impresso este poema
como de recordação
do tempo que ainda negociava
as chaves da prisão
daqui não muito tempo não cumprido 
o exigido vai haver agressão
mas somos povo de paz
ainda somos por negociação
é bem melhor assim
ou não?

                     Jan- 2024


trabalhei mas não deu poema

indignado descubro-me 
num sonho 
e era o mundo empoeirado da minha 
estante de livros
qual o que o amor nos meus braços
aquela que amo entregue
o sorriso laço
num gesto todo breve 
de mais doce afeto 
de milagre

como traduzir em verso
aquele mais que breve momento exato
que mais que devaneio incerto
podia bem ser fato

a mulher que amo
na trama dum beijo apaixonado
o quarto todo escuro
pôs-me de imediato em sobressalto
onde observei que o muro
que se faz presente
no último ato de nosso interminável drama
era mesmo muro
com o meu olhar ausente
meu corpo e a cama

mas há de haver o tempo
que este sonho de todo lindo
chegará nos braços de augusto vento









quanto protagonismo incerto
de todos os sonhos lindos que tive
neste porém era exato
mais que mero devaneio mas fato

Dez- 2024