segunda-feira, 19 de fevereiro de 2024

Tambores

os tambores estão tocando
nos meandros da noite 
eu escuto
estão tocando
e são os filhos d'áfrica que tocam
eu reconheço o toque
são mãos negras
eu reconheço o som
estão tocando
estão tocando 
vamos sair pra noite amor
que áfrica está aqui
vamos amor
juntar-se a nossos irmãos
áfrica está aqui
irremediavelmente 
dentro de nós
somos áfrica amor
e os tambores estão chamando
eu reconheço o timbre
vamos amor
vamos amor

                  Fev- 2024

Nevoeiro

quando madrugada 
baixa nevoeiro sobre as casas
meu olhar embota lágrima
porque um tempo desperta súbito
a memória
de um mar sem fim
de obscuras embarcações com carga humana
partindo d'áfrica pra nunca mais
se baixa nevoeiro
é lamento de negro cativo nos porões 
dos negreiros
por séculos
se baixa nevoeiro sobre as casas
meu olhar embota lágrima
e sou um pouco nada
sou lástima

                    Fev- 2024

domingo, 18 de fevereiro de 2024

Guerra perdida

lutar pelo amor é guerra perdida
quando ele se esconde sob a terra estéril
de um peito indiferente
antes que germine bulbo e broto
a semente mofa
e não adianta levante ou tempestade
apenas entregar as armas
antes mais cedo 
que tarde

                    Fev- 2024

O sino da igreja

o sino da igreja é tão pobre
tão pobre que a gente quase não escuta
(a igreja é pobre coitada)
um som cansado 
de latão
cansado e desengonçado
trôpego como o andar do poeta
e o poeta é mais pobre que a igreja coitado
mas quando eu ganhar dinheiro com meus poemas
vou doar um sino novo à igreja
de bronze
do bronze mais nobre que houver
que soe como música
para todo o bairro
quero ouvir nitidamente 
as badaladas
das seis

                   Fev- 2024

Amicão

amigo cão
agora que tu partiste
é que dou-me por mim sozinho
sozinho e apatetado sem tua amizade
sei que estas em boa companhia 
perto de deus
brincando de anjo
bem canino
que é a tua agridoce sina
enquanto cumpro minha sina amarga
que tua festa abrandava
eras a própria festa
apenas tu sem a festa que fazias
festa aprontando divertimento pro amigo humano
e não tenho mais de quem arrancar um carinho
nas horas vagas
vagas e tristes horas
ficou a tristeza mordendo a carne
o que nunca foi teu feitio
quando for possível
pegue uma nave
rompa ligeiro o infinito espaço
e retorne para um último
abraço

                Fev- 2024

sábado, 17 de fevereiro de 2024

Sacerdócio

o padre showman
o padre altruísta
que sacerdócio me irrita?
mais alguma pista?!

               Fev- 2024

A palavra negro

a palavra negro 
quando queima na boca do negro
ou é vergonha de quem
ignora a negritude
ou é negro 
traidor da causa

a palavra negro 
quando queima na boca do branco
ou é ignorância de quem
desconhece o negro
ou é branco
racista pronto pra dar
o bote

falar de raça não deve ser tabu

a palavra negro
não é zona de risco pra queimar na boca
é orgulho e confiança
pra quem assume o crespo solto
ou na trança
pra quem assume o preto
da pele sem receio
ou medo

                      Fev- 2024

sexta-feira, 16 de fevereiro de 2024

Catedrais

quando vou pela são paulo antiga
tenho em mim catedrais de nosso senhor
não as que celebram em seus cultos dominicais
um deus branco apartado do homem comum que vêm nos trens
nas vias sujas de urina e excremento
nas esquinas perigosas
da cidade infelizmente abandonada
trago em mim as catedrais
que abrigam os desgraçados negros
nas suas escadarias
último refúgio
de quem não tem mais nada
em degraus 
aquilombados


                 Fev- 2024

Pauta

se uma pauta se faz apenas de pausa
não tem música ou músico
ou regência
ensurdecedor silêncio
sem espetáculo nem público
                           nem vida

a sedutora noite
sem os teus suspiros
              sem o sons do teu gozo
é pentagrama em branco
                 apenas possibilidade de amor
flor germinando na rocha
na solidão de inóspito deserto

                      Fev- 2024

O que é isso, companheiro?

não há mais as reuniões do partido
perdera-se na poeira o afinco
o engajamento ativo de nossas forças
a verve militante foi tomada de ferrugem
as reivindicações por justiça
injustamente esqueceu-se no fundo das gavetas
e nossa juventude escoou no turbilhão
fleumático do cotidiano
sem causa
sem objeto ou objetivo
num silêncio de necrópole esquecida
como não houvesse por que lutar
como não houvesse existido um sonho
nos apequenamos sem conquista
no sofá da sala
aos afagos inúteis de um jogo
de bola ou novela
com o intelecto amordaçado
em lastimoso silêncio
mofando

                    Fev- 2024

Folha

uma folha corria o jardim
sem galho sem viço amputada

               errava às ordens do vento
nos socavos fundos
de uma tarde perdida no tempo

               abandonada
                         ca
                              í
                                da

diante do meu nariz altivo
velho monarca egoísta

                    Fev- 2024

Sensação

uma sensação de pássaro sem ninho
no meio da tarde opaca
e seus meandros
como algo que faltasse profundamente...
sem resgate ou ou volta
um ente que de repente falta
um trocado de moeda sem valor
no fundo das algibeiras
um vazio de cidade fantasma
exterminada pela guerra
feito bosque sem arbusto ou árvore
ou jardim sem folha que erra
orquestra sem flauta
seria a falta dos teus braços alvos
ou qualque outra desgraça?

                    Fev- 2024

Dante negro

vi nos teus olhos uma luz intensa
réstia de sol estilhaçando o vidro do peito
feito cristal que se parte em pedaços
ao cumprir sua sina de pedra
porque sou homem frágil
que sucumbe à luz de um olhar apaixonado

e teria sucumbido a outros olhos
não fosse o momento em que chegaste
atingindo-me em cheio no âmago
indefeso à tanta graça

hoje tua luz habita o horizonte
de onde diviso de sobre o monte de neve fosca
como habitasse as gélidas cordilheiras chilenas
teus braços implorando um pouco do calor
de meu corpo exausto de tanta guerra

como eu não fosse espectro
apagada estrela sem vida perambulando o universo
feito mendigo sem rumo na metrópole
e não fosse sequer mera recordação do que floresce
não fosse messe que apenas se espera abundande
se sou apenas esfacelado dante negro
chorando o amor de beatriz

                  Fev- 2024

São Paulo

queria cantar-te num poema
extraordinariamente
simple são paulo
mas você é complexa
as tuas formas o teu temperamento
não cabem num poema
e desdobro-me em palavras
pra dizer-te
em alguns poucos versos
cidade-chave
point de tantas tribos
que nem sei dizer quantas
rica mãe de pobres filhos
mas uma palavra
define meu sentimento
cinza flor de todas as flores
e esta palavra é amor

    
               Fev- 2024

São Paulo

enterrar a cara nos meandros
da cidade dura
desaparecer entre os traseuntes
e os edifícios
na carnadura de tuas vias congestionadas
respirar os gases que saem
dos escapamentos
escapolir por tuas ladeiras
cidade de papel
onde desenhamos nossas vidas
garatujamos nossa história
traçando sonhos
esquecidos
a mais bela mensagem de amor
chova-me cidade de pedra
que eu floreço
no teu aço no teu concreto duro
cidade dos negócios
cinza como teu céu de outono
cidade industrial financeira
quero adquirir uma porção pequena
de teus subúrbios
dormir e acordar na tua carne
de pedra bruta
criaria filhos sob teus decretos
se os tivesse
quanto de você mora em mim
é inconcebível
e gosto de fechar teus bares
chorando no copo as mágoas de amor
não correspondido
embora seja portador do amor que transpiras
por teus poros de pedra
são paulo
nem sempre tens a saúde
necessária para abrigar os filhos
que nasceram da tua placenta
e que vivem no solo do teu ventre democrático
quando muitos deles
perecem nas desgraças
emanadas de teus seios mãe amada
amei aqui
esqueci aqui
trabalhei aqui
e vou descansar meus ossos na tua terra
cidade de contrastes
tão violentos às vezes que angustia
mas teu nome
tua vivência muitas vezes cheia de defeitos
tua estrutura rija feito aço
tuas matas teus mangues
tuas entranhas inesploradas
já têm registro reconhecido em cartório
caos urbano
rica arquitetura
grã-fina e miserável cidade
que não dorme

                            Fev- 2024