sexta-feira, 27 de setembro de 2024

Frágil forte

o açoite da artilharia do tempo
contra as sólidas muralhas do eu
tenta o sequestro 
do que existe frágil na pedra
o desterro 
dos soterrados da queda
forte que desmorona em esplendor e treva

a força da pedra que dura
está naquele sopro de ternura
no âmago
da própria substância
sob a fustiga do vento no tempo
esgarçado de uma dor

o alarde da gente
oculto no silêncio dos dias

     Mar- 2021

Gênese

sêmen ou susto
intuito infenso à luz
sopro indefeso
gérmen élan
ovário que ovula óvulo 
presa de estigmas
alarde da vida em silêncios

o devir da flor
é quando toca a retina
-ou existe vácuo
áspero ser- 
qualquer receio
tácito beijo do rocio
à pétala detida 
nos nós do âmago
apenas frio

não sei de aragem
que não censure o silêncio
no seu trânsito
entre seca folhagem

nascer é ruído
na estagnação da luz em ruínas
ou sombra que paira
paz e parto

     Mar- 2021
 

Poema para Cristina

 A orquídea que você cultivou em seu apartamento

com carinho de mãe, a mesma que calada e
distante exalou segredos na manhã, que beijou
a noite com sua aparência de virgem e amou o
dia apaixonada e perdida, hoje é testemunha das
palavras ao pé do ouvido, dos ardentes beijos de loucuras
no verão, dos teus apaixonados suspiros em meus braços...
De tudo enfim o mais que somos nós.

Composto por volta de 2013, 2014.

quarta-feira, 25 de setembro de 2024

...Ela

pelas bordas da cidade atarantada
deságua e cresce favela
em avenidas de esperança e mágoas
a favela sofre a esperar que brote
no árido ar da metrópole
a sua aposta
de melhores dias
dias de bonança a seus filhos pretos
quilombo que nascido
de coletivo sonho
é refúgio e lar e gueto
a favela se expande em tentáculos
de resistência
não mero espetáculo
da elite rancorosa
que destila ódio a quem deve 
muito mais que cota
e ignora escarnece e não paga
mas a favela trabalha
estuda e sobrevive no fio 
da navalha
e não se entrega às sujas regras
do jogo inimigo

e segue em mar revolto ela
tal como eu versando dores sigo

                 Fev- 2024

quarta-feira, 18 de setembro de 2024

Pedaços da fome

                   Poema em homenagem à Carolina Maria de Jesus

a vida agora é de alvenaria,
os objetos, os filhos, as flores...
a casa talhada a lápis com palavras de dor.
filhos adotados dos teus braços pela miséria.
o prego, a madeira, a fome, o silêncio,
o trabalho e a solidão.
o ódio de deus sobre os ombros dos teus,
sobre os ombros
dos que não têm que querer,
cuja escolha é não ter escolha.
nada conterá a força das tuas palavras
ainda que as águas das chuvas tenham contido
teu corpo franzino, anônima de papel,
estrela sem hora
nas ruas avessas da cidade.
cidade hostil, afeto de pedra, flores sobre a sepultura.
nuvens de África, ares de África, sois de África.
sopa de vento, poeira de terra no prato,
está no pasto este gado,
ou nos finos pratos de louça fina.
qual a cor da fome, Carolina?
dos pedaços da fome?
despejada de cada quarto, de todo canto,
preterida da vida.
zela da veste granfina,
desdobra-se a cuidar deste chão,
e sonha, Carolina!
escreve e sonha, Carolina!

           Maio- 2020

500...

a úlcera do ser estagnado
destila o cianureto meias verdades
a sociedade doente
as academias mutiladas
o cânone envesgado dos costumes

o ópio-ódio burguês
excrementos 
de míopes cogitações
petrificados pitacos letra-morta:
88 aboliu os poderosos da culpa
eis a excrecência
(o poder de eximir
à régia canetada histórica)

à goela empobrecida
a baba espessa do cão sem raça
a gente engolindo miséria
vivendo de sonhos extintos
vinho tinto 
de sangue vomitado à nossa boca
e mais injúrias e hospício
e o vício por alimento

o ensino ensina chacina
despótica gramática das ruas
complexa pedagogia dos excluídos
e o rebanho 
de negras ovelhas -destino e pele-
amarga a sintaxe suburbana
engrenagens de aço 
e vestígios de munição
a violência escandalosamente 
armada de carência-criança

nas feiras encarceradas
das periferias
bandejas de desdém 
dúzias de fatalidade
pencas de mágoa no olhar
o desenlatado extrato antissocial
brasileiro marinado em caos
no topo etc e tal, no meio isto e aquilo
na base, versada em revés
nem isso, e jazem os ratos classe E
esfomeados nas sarjetas
à margem 
destes regalos
os indigentes à margem

agressões nos subterrâneos
cotidianos do lar
amor por argumento
a negra pele roxa de ternura
não há primavera pra criança órfã de amor
esmolando gorjeta
pra sua fome de afeto
as balas que nada têm de perdidas
e encontram a infância 
perdida
grande contingente negro
implicado em "masmorras medievais"
nem uma réstia de liberdade
a sociedade pelo racismo
combalida definha
Zumbi expira no quilombo do peito
vencido pela impotência

o protesto burguês 
bate panela vazia com a mesa farta
no conforto dos apartamentos
o protesto proletário
almoça poeira de obra
a miséria sem miséria das marmitas
faxina por negras mãos
de fadas sem conto
ventre colado às costas
o mármore das mansões de pedra

seus deveres cívicos
resguardados pela constituição
seus direitos
engavetados no parlamento
parlamento branco e burguês
como todos os poderes
e poderosos 
da nossa república esgarçada 
em egoísmo.

       Fev. 2021

terça-feira, 4 de junho de 2024

Enganos prescritos

ainda trago estas mãos incompletas
teu corpo ignorado em qualquer parte do globo
mãos de amores brancos
que não aprenderam pisar no solo 
das próprias dores

o matiz banto 
deste meu miscigenado espanto 
reclama teu chão legítimo
tua força autêntica de mulher astuta
senhora do seu destino
empoderada da sua história
e identidade

saberes tão definitivos nos cegam
com seus vieses de verdades absolutas
que somos sem o ser
e feito naus de saqueadores
cavalos de tróia de nós mesmos
vagamos senhores por águas perigosas

contra a própria vidraça
arremecei pedras de desamor
cego que estava para as cores esquecidas
e apenas tarde
descobri o mundo depois do crepúsculo
quando já era tarde
conheci o que me pintaram turvo
desde o jardim

o crime está cometido
mesuras e desculpas não restituem
o membro mutilado
o estrago é grande e grave
as raízes foram podadas e o fruto apodreceu
a árvore pendeu e dissipou-se
em plena vida
vida de enganos prescritos
esvaída

que é feito de nosso amor
mulher que eu desconheço mas amo
e que a ausência me dói nos ossos
que é feito de nós depois de tudo passado
agora que a neve caiu
que o vento carregou os sonhos
que estilhaçaram o espelho
de nossa alma

adeus!

           Agos- 2021

segunda-feira, 20 de maio de 2024

Assunção

nessa selva povoada de feras
onde o fruto que alimenta 
é também o que mata,
não me quero menos que fera,
contemporâneo afortunado 
desta gente negra,
deste contingente humano de peso.

meu verso é um compilado 
de muitas vozes, 
influência dessa miríade
de voz poética brasílica.
eu sou apenas um 
e todo mundo
neste mundo de Silveiras,
Colinas, Venturas, Camargos.

o fruto verde desta 
complexa fronde, deste robusto
arbusto, desta árvore áfrica 
brasileira que afronta
no front da palavra
a violenta frota do sistema,
a rota que nos quer 
cordeiros, carne morta, 
nas vielas, nas favelas, nos canteiros
de obra, nos quer derrota.

mas empunho a pena
e pena de quem não pensa,
de quem quer a recompensa 
por minha pele,
de quem odeia a minha negra cor.
sei de cor 
o que querem
os que me querem pó,
os que me querem só o nó 
da minha etnia.
mas é com alegria 
que sigo a assunção 
dos caminhos
de um Carlos de Assumpção,
de uma Geni Guimarães.
e é com muito orgulho
que assumo a alma que aflora
da minha ilustre 
gente negra 
na minha própria alma.

       Dez- 2020

sexta-feira, 17 de maio de 2024

Lapso

tenho um cálice letal 
de saliva
abstenho-me da vida
pago com lapso o seu hiato
do teatro sagrado renuncio ao palco

no beijo detido 
por teu ato insano
às trevas me cedo cadáver em húmus
paciente do ímpeto inumano
entrego-te meu túmulo

a nossa hóstia curtida 
em vinho
jaz em estilhaço
resta o jazigo vizinho
ao sepulcro do meu abraço

     Mar- 2021




Autópsia

quando partir fosse sensato
investigar nos olhos teus
momento exato
qualquer fagulha de bem-querer
desejo oculto
em cotidianos gestos
que revele e releve
qualquer contrário vento
que tempestade se fez
no passar do tempo
entregar-me ao silencioso culto
dos teus lábios
dizendo: - toma esta flor
que cresce...
é amor é amor

              Fev- 2024

quarta-feira, 15 de maio de 2024

Capoeira

no embuste da resistência tramada
a dança luta do negro frente à senzala
num golpe ginga a força da raça
e atravessando o tempo 

                  reverbera a sua graça 
                  história de libertação
                  onde impera o inimigo

rabo de arraia
rasteira
maculelê
benção
                         tanta dança e tambor
                         capitão do mato e senhor
                         nem desconfiam porquê

capoeira é revolução
a glória do destino de um povo
himeneu do negro com seu irmão

           Fev. 2021

terça-feira, 14 de maio de 2024

Súplica

deus, uma esmolinha
por misericórdia:
um livrinho aos cinquenta
pra eu ler um pouco.
- e a vida fodida?
depois conserta ou reencarna
pra outra vida
novinha em folha...

           Fev- 2024

quarta-feira, 8 de maio de 2024

Sou negro

se às vezes meu ego é frouxo
é que sou esboço
à semelhança de um deus
que retratam branco

negro
muito negro de pele
e alma me traço me tranço
na vida 
em que me lanço
de lança em punho danço
meus ritos
escrevo meu enredo

se me querem branco
de alma e pele
fracassam sou negro
até nas entranhas
sou negro
das pontas dos dedos
aos pelos 
do crânio

                Fev- 2024

Água não lava

água não lava este sangue
aos jorros na terra das lavouras
derramado
sangue de há séculos
por séculos
dos vendidos
sangue tataravô
deste sangue das cidades
que na terra
ainda coagula
sangue das costas lanhadas
e do suor
sangue negro
escravo
        
              Fev- 2024

terça-feira, 7 de maio de 2024

Preto fede

ao promotor Avelino Grota, e, infelizmente, esse é o pensamento 
de muitos da elite deste país, é de uma tristeza tremenda, 
consegue mensurar?

preto fede
fede?
no cu todo mundo fede
se o preto fede
o branco
cheira.

Out- 2021