terça-feira, 5 de março de 2024

Um fenômeno de amor

fecho os olhos e você é a água que me mata a sede
vou à rua e você é a praia em que me banho e refresco
o ar que respiro tem teu cheiro natural de flor
a fruta que como tem o sabor dos teus lábios que nunca beijei
o vento leve que toca meu rosto tem a textura de tuas mãos macias
e a água a comida a praia o ar o vento compõem o que sou
um ser inteiramente impregnado da tua presença

                   Mar- 2024

Poder público

a britadeira da prefeitura 
me desperta antes do relógio
no exato momento 
em que as bocas uniriam-se
num beijo apaixonado
como odeio o poder público
e suas obras em ano de eleições
inúteis obras eleitorais
ó incompetente prefeito
leve saneamento a quem 
precisa com urgência
e deixe-me sonhar com a boca
de minha amada
meu voto não é de cabresto
é antes voto de oposição
ao seu desgoverno
maldito alcaide empata foda

             Mar- 2024

A renúncia do poeta

grafar teu nome no atropelo
das obrigações diárias no outono poluído 
da metrópole de pedra
escrever entre ruído e fuligem 
o enredo dum amor 
que não se desgaste feito engrenagem
na grave inércia do mármore exista

o tempo é credor dos corpos
hábitos e costumes
com o amor coexiste na órbita do indizível
é frágil o verbo
rica a poesia que há na vida

então quero existir
noite adentro da intimidade nossa
na fortaleza dum apartamento
tratar de boletos e despesas no café da manhã
averiguar nos jornais algum alento concreto 
contra a violência

vez em quando evadir pro campo

      Mar- 2021

segunda-feira, 4 de março de 2024

Medusa

revolução é a noite indecifrável e muda
neste quarto de paredes de gelo
onde eu imagino a tua imagem mulher
que havia perdido n'alguma manhã de outono

porque é mulher está nos meus pensamentos
cravada como rocha sobre outra rocha
e te encontro entre palavras e livros
fechados no silêncio da madrugada fria

e te vejo sempre assim medusa implacável
que me fez pedra quando eu era todo afeto
disponível a teus braços de neve que ofusca

                        Mar- 2024

Escrevendo o ocaso

faliram-me os olhos
a maior das ilusões do homem
como mister que me fosse o sustento
a vista deu-me o mundo e tirou
friamente

os dentes 
foram triturados pelo tempo
como ironia machadiana
fina e corrosiva

o beijo vou guardar na lembrança 
como o gesto mais terno 
de que fui capaz
com o abraço

palavras fundamentais
para mim
que lhes estudei até as origens
já não lembro o significado
como por exemplo: 
alteridade

meu pau é um mito
o nosso imenso paradoxo
espectro de todas as glórias
e dramas
outra grande ilusão

a gente perde o que nunca teve
apenas imaginou que tivesse
como uma certeza traída
resta-nos a ignorância de tudo

    Mar- 2021

Homem negro

não se ama além da própria utopia
pedaços de um homem, 
                          partes inteiras de mágoa,
o coração rubro de um homem negro.

o estio vence os braços, vence a boca,
vence o pênis
               -imenso de solidão-

enquanto os olhos têm os olhos
                          esquecidos noutros olhos.

eu quero a centelha no feno
                 muito além do fla flu casual
     sem ausência ou apatia
eu quero a ousadia profana de um corpo
                      imperfeito
difusa qual artérias nas grades do peito.

hediondas paredes de pedra
                à minha volta                                 
                   -mais um emparedado destino-
o amor deflagrado 
       que não violenta.
mas não brincarei no carnaval sem passista
da avenida do tempo,
                a vida escorrendo em suores.

       eu quero mais que o amor alheio,
amor que morde e assopra
               -tirano e frio-
eu quero o amor que volta,
    a felicidade de uma boca, 
                 de uma buceta, de uns seios.

                     14.02.2021       

domingo, 3 de março de 2024

Mendigo Pedro

cediço ranço estorva 
a metrópole
respira e traga gás carbônico
posto come o que não come
produto odioso 
da distinção do homem
enjeitado louco do manicômio
já não é mais homem
já não é mais homo
é o inumano retrato da fome
obsceno ser dos esgotos
criatura abjeta das sarjetas
destino esfacelado
banido espectro pele e osso
privado até das gorjetas
é um fato é um feto
nem nasceu por ter nascido
evento trapo que andeja
o oposto mito de Narciso
que de tanto ver
sem ser visto
agoniza todo desgosto
misto de homem e bicho
rejeita a efigie do próprio rosto

        Fev. 2021

Dizeres do Mendigo Pedro

ando a vagar vagar vagar sem rumo certo
nas ruas desta metrópole desgovernada,
no meio de toda esta gente, neste deserto.
com a sutil diferença, salvo a ironia,
que não tenho sequer um barraco na favela.
pequeno, pra mim mesmo,
ou um catre sob o viaduto, que seja.
que o que me pertence apenas são meus trapos velhos,
e o meu corpo cansado, quase nada.
quem tem rumo certo nesta vida desvairada?

de mim sei quase nada, de onde venho,
não quero lembrar,
sei apenas que aqui vim parar,
que sou de qualquer lugar.
que a fé eu perdi dobrando uma esquina, perto;
os sonhos todos,
numa noite gelada de inverno aberto.
vez em quando esqueço minha condição
e sonho mais que posso,
às vezes, muito às vezes até tenho fé, mas logo volto.

mas o que eu sei de verdade
é que não sei o que mais me transtorna,
no correr dos dias, no passar das horas:
se meu ventre que me consome, que me devora,
ou se meu coração que lamenta e chora:
o ventre consome e devora por não ter comida,
o coração lamenta e chora, pela dor desta vida.

                    Junho- 2016

sábado, 2 de março de 2024

De repente

de repente não ousamos nada
esta preguiça é coisa desde o ancestral 
enlouquecemos de cachaça e drogas
somos todos tribos no canto esquecido do mapa

de repente somos inferior
afeitos ao crime e à violência
ainda assim as estatísticas mentem
mas é destino de cada

de repente não crescemos por gosto
nosso irmão doutor é prova incontestável
somos bem-vindos nesta pátria
ainda que banho não nos apeteça

de repente gostamos da fome
te será mais útil o leite de nossa mãe
e universidade não nos é mais útil
nossa escrita é blá blá blá

de repente o racismo é nosso
consciência é humana não negra
somos mesmo é vitimistas
amam tanto nossa preta pele

                                               de repente!...

       Agos- 2021

sexta-feira, 1 de março de 2024

Confissão

amigo
tem sido dura a vida
e pode piorar
nenhuma fresta no céu chumbado
nenhuma palavra amena dos lábios que se quer
nenhum afeto ou chamego
de mulher
nenhum pão que se possa
dividir com os miseráveis
em face da própria
miséria que sou
nenhuma cama confortável
onde se possa
adormecer das dores que atravessam
o peito sem pedir licença
nenhuma poesia
que me limpe a lama dos sapatos
e das vestes
na minha pobre poesia
nenhum sorriso que suplante
esta perene tristeza
que atravessa meus dias
até os mais azuis
sequer uma lágrima que corra a face e me faça 
sentir o gosto de um pranto elaborado 
no silêncio do peito
não tenho a força necessária 
para chorar
tem sido dura 
                               amigo
a vida

                               Jan- 2024

quinta-feira, 29 de fevereiro de 2024

Dossel de sonhos

entorno de revolução
opera a palavra acolhida
colhida página adentro das horas
sentido em signos
grafado 
no lábaro da esperança
dossel de sonhos

plasma-se
porém o impasse em nó
na indústria da treva 
ou sabotagem

esconsos 
no abraço agem apartheids
corrosão nas veias abertas da vontade
chama que resiste  
emula o luar

flor que aspira 
rebela-se
contra a opressão da rocha
e exibe seu mais intenso
azul

entanto cada fenda
traz uma peçonha incrustada 
no sorriso
abismos de pedra

    Mar- 2021

quarta-feira, 28 de fevereiro de 2024

Comarca de absurdos

brancos desvalidos e negros 
açoitados
agonizam misérias 
sobre palafitas
nas encostas íngrimes dos morros
sob a idiferença de todos

barões e senhores 
endinheirados
caviar, filé-mignon e mesa farta
a usura da posse e do lucro
no país esfacelado
e morre-se de bala morre-se de frio
crianças famélicas mínguam
o medo do invisível diante 
dos olhos

uísques e charutos de mando
na boca torta do sistema
lupas de egoísmo 
nos olhos míopes do sistema
escandalosamente
o sistema
comarca de absurdos

ainda o mando sobre o dorso 
oprimido
ainda o mando sobre o dorso d'África
sobre a tinta das peles e o sangue 
derramado nas terras
herdeiras das capitanias

pode o poeta e sua voz 
de frágil timbre
combater com palavras evidências
documentadas em cartórios
papéis timbrados que guardam
a corrupção dos homens
vis de nossa pátria alheia

cada poema chaga
é um chega para os perversos atos
que atam o ontem e o hoje
tempos estranhos esses do poeta
o povo ignorante
amargando cachaça barata
e vícios e nocivos hábitos 
com as algibeiras cheias de pedra
o prato cheio de terra

o poeta sofre
versos amargos sobram
o poema chora em vez de sorrir
e dorme
com seu povo
no seio da pátria amarga

     Agos- 2021

Eu tenho orgulho

eu não sou o presidente 
daquela empresa
não leciono naquela universidade
e não cumpro expediente naquela repartição
pública
mas eu tenho orgulho

jamais defendi tese de doutorado 
e sequer tenho graduação 
em qualquer 
disciplina 
de qualquer universidade
mas eu tenho orgulho

estorvam-me 
o linho da minha roupa 
o couro do meu sapato
a lã da minha blusa
a felpa 
do meu cobertor
o gosto da minha comida

quando recebo salário
geralmente desfruto desemprego
ele é entorno 
de 50% mais baixo
que o de um homem branco
mas eu tenho orgulho

tenho amado bastante
mas o amor tem os seus senões
e tenho recebido as costas
para amar
as deslumbrantes costas 
da pessoa amada
mas eu tenho orgulho

perdi a conta dos ultrajes
conto nos dedos os afetos
mas eu tenho orgulho

eu tenho orgulho
dessa negra pele preta retinta

      Mar- 2021

terça-feira, 27 de fevereiro de 2024

Pra inglês ver

filhos nascem condenados
das barrigas pretas de barro
castigados de lonjuras

quanto de pálpebras tristes há em distâncias
que a política ignora
que a estrutura acolhe no racismo
em contornos de sociedade acostumada aos crimes
do pescoço branco

mais criminoso
é quem já nasce cerceado da liberdade
condenado no ventre
vítima do vento contrário
no seio oprimido do muito sofrer

dá de sofrer aos que só lucram
e tudo se ajusta
o jugo vira a direção e a justiça moda
mas deixa transcorrer a regra
que o frágil fragiliza
e a violêcia
não passa de mero acaso
pra inglês ver

a matemática é mais que exata
não resta dúvida
nesta pátria de prática criminosa
criminaliza toda raíz inocente ancestral
que depois de gerações a fio
implicada
dos que depois rebentam
a chaga

              Set- 2021

domingo, 25 de fevereiro de 2024

Senzalas

de senzala em senzala
rugi nas mentes o som das águas sangrentas
do banquete dos tubarões famintos
o hálito da necrópole dos mares
cristalizados nos olhos violados da escravidão

de senzala em senzala
a força bruta contra as inteligências
pelas maquinações da usura
a resistência nos olhos vazados a ferro
nas peles em lanhos despidas
os jugos correntes e máscaras
a tortura à ternura fuzilada

de senzala em senzala
fome frio medo e a podridão da carne
os vergões dos açoites nos dorsos
o gosto podre dos alimentos nas bocas
as almas tomadas pelos engenhos
a posse dos braços explorados

de senzala em senzala
o estupro o choro contido no desespero
o filho bastardo no ventre violado
o esfumaçar das identidades
os estilhaços dos corpos esgotados
os inféctos odores das moléstias
dos excrementos e dos sonhos esfacelados

de senzala em senzala
as dignidades aos poucos usurpadas
a imagem dantesca de todas as perdas
amontoadas pelos gélidos cantos
a incompreenção nas palavras
os inascessíveis horizontes do Continente

o resultado destes crimes de lesa
são as descendências atoladas
no lamaçal do menosprezo
a dívida jamais ressarcida e negada
cada gota de sangue dos homicídios

       Jul- 2021