terça-feira, 4 de junho de 2024

Enganos prescritos

ainda trago estas mãos incompletas
teu corpo ignorado em qualquer parte do globo
mãos de amores brancos
que não aprenderam pisar no solo 
das próprias dores

o matiz banto 
deste meu miscigenado espanto 
reclama teu chão legítimo
tua força autêntica de mulher astuta
senhora do seu destino
empoderada da sua história
e identidade

saberes tão definitivos nos cegam
com seus vieses de verdades absolutas
que somos sem o ser
e feito naus de saqueadores
cavalos de tróia de nós mesmos
vagamos senhores por águas perigosas

contra a própria vidraça
arremecei pedras de desamor
cego que estava para as cores esquecidas
e apenas tarde
descobri o mundo depois do crepúsculo
quando já era tarde
conheci o que me pintaram turvo
desde o jardim

o crime está cometido
mesuras e desculpas não restituem
o membro mutilado
o estrago é grande e grave
as raízes foram podadas e o fruto apodreceu
a árvore pendeu e dissipou-se
em plena vida
vida de enganos prescritos
esvaída

que é feito de nosso amor
mulher que eu desconheço mas amo
e que a ausência me dói nos ossos
que é feito de nós depois de tudo passado
agora que a neve caiu
que o vento carregou os sonhos
que estilhaçaram o espelho
de nossa alma

adeus!

           Agos- 2021

segunda-feira, 20 de maio de 2024

Assunção

nessa selva povoada de feras
onde o fruto que alimenta 
é também o que mata,
não me quero menos que fera,
contemporâneo afortunado 
desta gente negra,
deste contingente humano de peso.

meu verso é um compilado 
de muitas vozes, 
influência dessa miríade
de voz poética brasílica.
eu sou apenas um 
e todo mundo
neste mundo de Silveiras,
Colinas, Venturas, Camargos.

o fruto verde desta 
complexa fronde, deste robusto
arbusto, desta árvore áfrica 
brasileira que afronta
no front da palavra
a violenta frota do sistema,
a rota que nos quer 
cordeiros, carne morta, 
nas vielas, nas favelas, nos canteiros
de obra, nos quer derrota.

mas empunho a pena
e pena de quem não pensa,
de quem quer a recompensa 
por minha pele,
de quem odeia a minha negra cor.
sei de cor 
o que querem
os que me querem pó,
os que me querem só o nó 
da minha etnia.
mas é com alegria 
que sigo a assunção 
dos caminhos
de um Carlos de Assumpção,
de uma Geni Guimarães.
e é com muito orgulho
que assumo a alma que aflora
da minha ilustre 
gente negra 
na minha própria alma.

       Dez- 2020

sexta-feira, 17 de maio de 2024

Lapso

tenho um cálice letal 
de saliva
abstenho-me da vida
pago com lapso o seu hiato
do teatro sagrado renuncio ao palco

no beijo detido 
por teu ato insano
às trevas me cedo cadáver em húmus
paciente do ímpeto inumano
entrego-te meu túmulo

a nossa hóstia curtida 
em vinho
jaz em estilhaço
resta o jazigo vizinho
ao sepulcro do meu abraço

     Mar- 2021




Autópsia

quando partir fosse sensato
investigar nos olhos teus
momento exato
qualquer fagulha de bem-querer
desejo oculto
em cotidianos gestos
que revele e releve
qualquer contrário vento
que tempestade se fez
no passar do tempo
entregar-me ao silencioso culto
dos teus lábios
dizendo: - toma esta flor
que cresce...
é amor é amor

              Fev- 2024

quarta-feira, 15 de maio de 2024

Capoeira

no embuste da resistência tramada
a dança luta do negro frente à senzala
num golpe ginga a força da raça
e atravessando o tempo 

                  reverbera a sua graça 
                  história de libertação
                  onde impera o inimigo

rabo de arraia
rasteira
maculelê
benção
                         tanta dança e tambor
                         capitão do mato e senhor
                         nem desconfiam porquê

capoeira é revolução
a glória do destino de um povo
himeneu do negro com seu irmão

           Fev. 2021

terça-feira, 14 de maio de 2024

Súplica

deus, uma esmolinha
por misericórdia:
um livrinho aos cinquenta
pra eu ler um pouco.
- e a vida fodida?
depois conserta ou reencarna
pra outra vida
novinha em folha...

           Fev- 2024

quarta-feira, 8 de maio de 2024

Sou negro

se às vezes meu ego é frouxo
é que sou esboço
à semelhança de um deus
que retratam branco

negro
muito negro de pele
e alma me traço me tranço
na vida 
em que me lanço
de lança em punho danço
meus ritos
escrevo meu enredo

se me querem branco
de alma e pele
fracassam sou negro
até nas entranhas
sou negro
das pontas dos dedos
aos pelos 
do crânio

                Fev- 2024

Água não lava

água não lava este sangue
aos jorros na terra das lavouras
derramado
sangue de há séculos
por séculos
dos vendidos
sangue tataravô
deste sangue das cidades
que na terra
ainda coagula
sangue das costas lanhadas
e do suor
sangue negro
escravo
        
              Fev- 2024

terça-feira, 7 de maio de 2024

Preto fede

ao promotor Avelino Grota, e, infelizmente, esse é o pensamento 
de muitos da elite deste país, é de uma tristeza tremenda, 
consegue mensurar?

preto fede
fede?
no cu todo mundo fede
se o preto fede
o branco
cheira.

Out- 2021

segunda-feira, 6 de maio de 2024

Artigo 1.305

                             delataram o poema negro
inocente dos crimes que o acusam
pesam-lhe apenas
                                os "delitos"
                                                 de informar
conscientizar
            desalienar
                       encantar 
                              orientar

conduzido à sala do censor
                              verteu metáforas dos versos
exausto do preconceito
                     proferiu estrofes de amor

implicaram-no no artigo 1.305
condenado e preso sem julgamento
nem direito à fiança 
 
                           ou habeas corpus

submetido às seguintes penas:

reclusão na cabeça do poeta
sem poder estampar folha em branco
com o agravo do silêncio absoluto

             nada dizem os críticos e acadêmicos
da injustiça contra o poema

os versos negros não são mais livres
os livros desbotam-se de tédio
                            nas estantes ariânicas
          a literatura brasileira agoniza sem matizes

o poeta negro é ser estranho do público
                           que pra comer 
não come do que escreve
                        esmola outro ofício que o sustente
desde que delito tornou-se a arte negra

ainda que objeto dos crimes
                        onde o branco é o sujeito
o negro paga

                              pobre cultura dos trópicos!

                   Agos- 2021

quinta-feira, 2 de maio de 2024

Numa tela

como posso ver-te 
em tablets e celulares
quando o desejo te quer
cada vez mais carne e osso
e meu ócio te reclama
cada vez mais próxima
cada vez mais boca e vulva 
pele pelo e íntegra
concreta âmago e víceras
ser de glórias e ruínas
cada vez mais fêmea
que mente chora e ama
dentro dos meus braços
nas dores da cama
não essa forma efêmera
fria forma em regra
que não sangra ou transpira
encerrada numa tela?

             Mar- 2024

Trilhas dispersas

às vezes me frequento
e encontro em mim mil portas trancadas
pelo receio de topar 
os desafetos 
com as mesmas máscaras
que às vezes envergo

outras me frequento
e encontro em mim um árido terreno
saturado por deglutir os restos
e estampar no rosto um ar
de naturalidade

então me frequento
e encontro em mim um estranho
dando a cara à tapa resignado
sempre que o ultraje
insiste que tenho dívidas 
em atraso

me frequento
e às vezes sou um palhaço no circo
das circunstâncias diárias
abandonando por cumprir 
o combate

às vezes dobro os joelhos
e balbucio desculpas ao agressor
em feitio de oração
eu que por mim não sei pedir

tenho frequentado
o âmago deste ser que amarga
a tíbia atitude de amar
à míngua de si
quem lhe oferece as costas

às vezes me frequento
e não reconheço o caminho de volta
perco-me nas minhas curvas
nas minhas retas
e nessas trilhas dispersas
sou poeta

        Fev. 2021

segunda-feira, 15 de abril de 2024

Exata medida

quando este meu amor cresce
meu coração padece
de um querer que não se esgota
que brota da tua pele negra

e ruem-se os estigmas
sujeitos à tua força de mulher
tua fala negra é regra
é orgulho tua negra alma
que sejam inspiração
as calosas mãos ancestrais
na luta nossa pelo pão
que força não falte aos lares

força que eu chamo vida
esta exata medida da paixão
transformada em amor
da luta convertida em resistência

             Nov. 2019

Retrato

o que o Fabrício comia
eu queria perguntar
São Cosme São Damião
divindade ou ciência
que saiba explicar
talvez algum orixá
o que o Fabrício comia
eu fiquei a pensar
o que o Fabrício comia?

              Jul/ 2019

Mulheres da minha vida

Na sociedade ideal que construiremos
as mulheres da minha vida
provarão sempre do melhor alimento,
e jamais lavarão a louça depois das refeições,
nem as da nossa família, nem as alheias,
as louças das famílias brancas.
Na sociedade ideal que construiremos
as mulheres da minha vida
vestirão sempre dos melhores trajes,
sem jamais encostarem o ventre no tanque
para lavarem as nossas roupas,
nem as alheias,
as roupas das famílias brancas.
Na sociedade ideal que construiremos
as mulheres da minha vida
pisarão sempre os chãos de salas amplas,
sem jamais limparem os chãos
de nossas casas, nem de casas alheias,
os chãos das casas das famílias brancas.

Chibata cantará nas costas de quem se opor!

                Nov. 2019