domingo, 31 de março de 2024

Por meu sangue ainda passam

por meu sangue ainda passam 
os ventos dos mares necrópoles
e o hálito amargo das ondas
brindam mistérios antepassados
sofridos nas vagas de oceanos hostis
ante os olhos das nações

ainda passam por meu sangue
quintais de antepassadas lidas
as brincadeiras 
dos moleques a furtarem frutas
das goiabeiras antigas
a fome nos trópicos

por meu sangue ainda passam
quilombos vencidos pela guerra
vozes de atrozes banzos
marcando com seus brasões as minhas veias
remetendo a dores ainda vivas
sob as cicatrizes

ainda passam por meu sangue
velhas lavadeiras com seus lamentos
e as roupas imundas do passado
rumo aos rios das angústias
quarar as queixas 
vivendo sempre dias iguais

por meu sangue ainda passam
os olhos vítreos das senzalas
acomodando desesperos nas noites intermináveis
curando expostas chagas com sussurros
a liberdade estupefata
com os horrores do cárcere

por meu sangue ainda passam
ainda passam por meu sangue

      Fev. 2021

sexta-feira, 22 de março de 2024

O barro transborda

o barro da minha cidade está nas bordas.
o negro está nas bordas, está no barro das bordas da minha cidade. 
cifrado no barro o negro está, no longe onde se extravia a vida, onde há vida que se nega a negra cor do meu país.
o asfalto chegou (para alguns lugares, às bordas das bordas não).
carnaval sem adereço, lágrima clara sobre pele escura, o negro chora, não é mais dono do estandarte. a passista hoje tem endereço nobre, a favela sobra.
o barro está nas bordas, nada muda, tudo muda numa metamorfose trágica, no geográfico apogeu do abandono desprezo descaso. o investimento do estado é parco, exceto o cinza de barcas sombrias onipotentes onipresentes com seus radares discriminatórios.
quase sempre o alvo é negro, dos disparos deflagrados. a farda a patente o coturno sobre o pescoço da negritude sufoca diversidade, os soldados são negros, treinados para ignorar. 
o poder pelo dinheiro aniquila com os sonhos das gentes, antes mesmo que pudessem sonhar.
ninguém está sozinho afundando na lama, almeja-se a cauda duma estrela, dum cometa que irá resgatar a todos dos confins.
o barro está nas bordas, estende-se infinito de cidade em cidade até a próxima capital, a conurbação, megalópole do desespero.
quanto de barro há nos edifícios cobertos de luxo? que braços são os verdadeiros donos do progresso?
os pais são os pés e os braços do meu país, os filhos a cara cara da fome, onde todos trabalham e ninguém come. nestes cantos lamentos mudos mudam a cara da cidade de alegre em triste, onde tudo existe à margem, nas margens de regatos podres, de magros ratos e esquálidos destinos. o muro o mudo olhar a ponte em escombro escondem a parcela condenada dos que habitam vielas barracos ruelas morros com cheiro de morte, onde todos improvisam um sol que não existe, um céu nublado toda vida. os cães fazem a festa no lixo amontoado em fins de ruas.
nas bordas da minha cidade existe vida, existe olhares suplicantes que ninguém vê, ninguém quer ver. o natal passado levou beatriz muito cedo, cedo demais para que se entenda, no dia que nasceu o menino deus, o presente de uma tonelada na cabeça do seio familiar, na cabeça de toda a comunidade acostumada ao barro ao berro, à boneca branca da menina negra sob escombros.
nos terreiros apenas os orixás são os mesmos, as mãos nos tambores são outras, as bocas que entoam as litanias são outras, os corpos que recebem os santos são outros.
a história se repete, o barro das cidades do meu país transborda.

Jan- 22

quinta-feira, 21 de março de 2024

Pedra rara

é nas primeiras horas do dia
que fala aos meus sentidos tua essência
amiga da textura das rosas
da etérea força 
do amor

e com a delicadeza das pétalas
vem tocar meu peito
ávido por qualquer carinho
a manhã está plena e eu não me farto

na insuficiência do tempo
nem a noite me rebela
caindo como o rocio na grama
mas me faz dormir 
na tua luz

como estes olhos tão recentes
atravessam minhas pupilas
e dormem na memória do meu sangue?

o cheiro campestre da tua pele
a boca virgem dos meus lábios
os cabelos de prata que te enfeitam
tudo tudo me espera dentro 
do tempo

espera o toque delicado dos meus dedos
como um anjo espera por deus
dentro de um sonho prestes a brotar
como brota da terra o milho

         Agosto- 2022

terça-feira, 19 de março de 2024

História concisa do negro na terra brasilis

no princípio o verbo era no peito
era a senzala, a fome, o tronco
o engenho, a moenda
nas lavouras havia o eito
e não havia salário
depois veio a indústria
a construção, a favela, o torno
a fome, o martelo
o macacão operário
então veio o progresso
e ainda a panela vazia
a escola, o livro, a universidade
e a muito custo então o verso
por fim, já não havia utopia

               Dez- 2023

Mensagem

esperei pelos correios um telegrama
mas o carteiro desconhece meu endereço
a internet suplantou os telégrafos
tudo mais fácil à urgência que é a vida
minha sorte talvez mude
e transforme o meu destino
mas nem por e-mail a mensagem não veio
inútil qualquer espera
não há advento possível à dor 
de amor ausente
sepulto no silêncio meu drama
e teço mais um poema
de tantos esquecidos
na noite repleta de solidão
noite amena

             Mar- 2024

Esse jeito de amar

tanta bela forma de descrever uma mulher
e eu a descrevo carne osso pele pelo que transpira e sangra
o amor transcende a matéria
mas eu só consigo e quero te ver concreta
coisa que se vê e toca e experimenta

               Mar- 2024

quinta-feira, 14 de março de 2024

Tem gente com fome

engajo tremendo sorriso
ao contato da luz amena da manhã
amena e doce manhã
mas logo desfalece
esvai-se todo entusiasmo
tem gente com fome
e é pornográfico um sorriso
talvez eu fosse feliz
não fosse tanta gente com fome
e eu tão pequeno poeta
fosse grande
também não sanaria a fome do mundo
poeta pode apenas o verso
e a angústia do povo não espera
renasce a cada manhã
a barriga colada às costas
e o olhar perdidamente triste
famélico olhar
constrange um riso rasgado
de orelha à orelha
mesmo para o espetáculo
da luz amena de uma doce manhã
devia constranger todos os homens
mas tem gente rindo à toa
no conforto de suas posses
e se tem criança sem pão
paciência
o destino quis que assim fosse
eu conquistei minha manhã ensolarada
à beira desta piscina
saboreando este uísque caro
trabalhei muito para degustar esta manhã
e até se aborrece
se alguém lembra das misérias do mundo
mas ali ninguém lembra
ninguém vai lembrar

                  Jan- 2024

Equilibrista

equilibrando demandas
domo dilúvios das águas anímicas
pela intuição de atávicos
saberes

na dor a gente 
cresce pra dentro
o coração 
duro feito pedra
estrela 
a extraviar-se 
no esplendor de galáxias
e amplidão

seguro ao cais 
da coragem libertária
desvencilho da âncora do medo
emerjo do naufrágio
atado à vida sou o argumento contido 
no enredo

      Mar- 2021

quarta-feira, 13 de março de 2024

A palavra amor

amor é palavra chave
que nos persegue dentro da noite
empregada 
com arte
abre qualquer porta

           Jan- 2024

Estrelas no verso

enquanto os tiranos
atiram corpos 
no mar e o desterro
dilacera o peito até dos fortes
atiro estrelas
que voam 
no espaço do verso
luzindo o poema protesto

e os lamentos 
dos porões fétidos
agora são vozes de muitas vozes
pois irmanando
a ginga que nasce
do encontro da língua
que nasce o verso
com as línguas que o declamam
faz-se a liberdade

e o que se escreve
reverbera 
ao som dos tambores
(que ainda percutem
sob a mão negra da ancestralidade)
na astúcia e coragem
contra os algozes
de um povo
que venceu os males
atrozes

            Jan- 2024

segunda-feira, 11 de março de 2024

Por milagre de Oxalá, por milagre de Olorum

por milagre de Oxalá
por milagre de Olorum
hoje eu escrevo a minha dor
desde tempos remotos eu só sentia
desde tempos remotos eu nem sentia
da prole da mãe negra
mãe que trouxe o barro no ventre
tão acostumada a desmandos
sou a ovelha desgarrada
ovelha que pode tingir o papel de negro
que escapou e escapa na prece
que fizeram aos santos
na encruzilhada no meio do mato
os negros analfabetos
os negros sábios
os negros marcados das senzalas
essa ovelha que ouviu dizer
que ouviu e ouve as vozes dos livros
os lanhos na carne
o sangue coagulado na poeira
os ferros dizimando a dignidade
coisas difíceis ouviu e ouve
ovelha teimosa de olhos e ouvidos bem abertos
ovelha milagre de Oxalá
que escapou e escapa às armadilhas
às armadilhas dos senhores de escravos
senhores que pagam barato por negro capturado
que multiplicam as suas riquezas
ovelha milagre de Olorum
tentando resgatar o rebanho
às vezes em vão que a luta é cruel
que ovelhas desgarradas que virão
por milagre de Oxalá
por milagre de Olorum
ouçam a minha voz
ouçam as vozes dos livros
ouçam do sangue das correntes das lutas
por prece dos negros sábios no meio da mata
por milagre de Oxalá
por milagre de Olorum

               Dez- 2023

domingo, 10 de março de 2024

Não é lícito

ainda que fosse hoje
o tempo das lavouras e o engenho
do trabalho sob o açoite
e da opressão contra um povo
não seria lícito

ainda que fosse hoje
o comércio de gente nas praças
navios com carga humana
e capturas sangrentas 
não seria lícito

ainda que fosse hoje
o sangue coagulado na terra
senzalas da dor e do desespero
e a insígnia na pele
não seria lícito

ainda que fosse hoje
o eito extenuante e forçado
os desmandos do nobre senhor
e as máscaras de ferro
não seria lícito

ainda que fosse hoje
o bafo podre da boca do feitor
bacamartes contra o peito
dignidades roubadas
não seria lícito

o tempo hoje é outro
reconstruímos o desconstruído
somos o saber autêntico
de quem sofreu e sofre injúrias
somos universidade

o tempo hoje é outro
é tempo de livro e conhecimento
os séculos curvaram-se à luta
e somos viva consciência
somos verdade

não é lícito o seu racismo
sob a máscara da boa convivência
e se escancara é indecência
se é estrutura ruirá
porque somos inteligência

        Agos- 2021

Retrato preto e branco

água corre podre sob a pinguela
a paz nas ruas vastas
e nas vitrines
chics das butiques finas
manequins
desbotados exibem
a última moda outono/inverno.

o negro distinto
produz literatura que ninguém lê
o negro faminto sequer sabe escrever.

fulano fundou isso e aquilo
sicrano é partícipe da história
beltrano esteve aqui e além

o morro definha sob
chuva de chumbo grosso
e a criança indigente
refém da apatia nossa nem veste
nem calça,
come fogo pela culatra,
enquanto o poema, fracassa.

         Jul- 2020

sábado, 9 de março de 2024

De/negrir

preceitos arcaicos não nos acertam 
não negociamos liberdades
no nosso quintal
violência enverga bege não pele negra
em cinzas de carnaval

no céu do preconceito
enegrecemos estrelas no auge da luz
e o ágio cobrado por esta audácia
não reverbera 
no existir de quem resiste e não cai na armadilha
do de/negrir o já negro

deter a indecência
do seu legado de palavras tortas
é reinventar a escrita atenta
para a artimanha perversa do seu conceito
com asas negras
e livres escreve-se livros
de respeito

suas regras e normas
não seduzem a autêntica força da nossa sintaxe
e nosso verso cresce honesto e filosófico
com artilharia de orixás em ori
e a poesia se refaz
com a bandeira NEGRA da paz
nem branca
nem tanto faz
 
    Set- 2021

sexta-feira, 8 de março de 2024

Teus olhos

                                       à Eliane

uns olhos cheios de abismos
cactos feridos sob pedras
olvidos e névoa espessa
que me ver já não podem

estrelas no sótão de ilusões
aos esplendores da vida dedicadas
sem que a réstia de luz
ofereça o norte que não encontram
e vagam horizontes 
perdidos no crepúsculo que não há
não pode haver no tempo

no tempo dilatado de outonos
passeavam em desespero
nas mesmas ruas
nas mesmas temidas órbitas
no adejar de silênciosas batalhas
em fragosos campos de pedra
sonhos e distâncias remotas

passaram por mim uns olhos
flores inacessíveis 
na fotossíntase das manhãs
e com viés de sepulcro
como as cores de um arco-íris
não deixaram vetígios

        Jul- 2021

quinta-feira, 7 de março de 2024

O valor do voto

- a inflação come meu salário
e eu não visto não calço não como
reclama o operário

mas o que mais pesa no bolso
é o embolso do erário
que não vai pra escola creche ou hospital

e de volta eu digo:

- o olhar mais atento ao voto
é solução única pra tal escárnio!

            Mar- 2024

Gueto

nos becos escuros das favelas todo gato é pardo e preto
do que adianta não sair do gueto se no cair de cada crepúsculo
é no "confronto" com a polícia o caminho pro sepulcro?

                 Mar- 2024

As baratas não envelhecem

em que esquina pulou do bolso 
o meu dinheiro escasso 
enquanto me distraio a pegar o trem pro trabalho?
os gabinetes da administração pública recendem a carne podre.
por que desta fome de golias, este estômago dilatado ao extremo?
tua cara larga já não cabe mais nos espelhos da tua casa.
teus retratos na parede não correspondem mais ao teu aspecto endinheirado.
tua mobília de jacarandá não suporta mais o peso da tua bolsa.
o fisco me tirou até o último centavo que evaporou sob o seu cuidado.
as baratas estão roendo até os ossos do banquete do erário.
mas as baratas não envelhecem e, 
até os engenheiros de babel sucubiram à ira do tempo.

                       Mar- 2024


Artigo de luxo

forro nunca foi livre
mas escravo do mesmo dono
nas duras engrenagens do progresso
não conta a história
não contará

ventre livre foi prisão
na miséria encarcerou seus filhos
e o leite da mãe negra engordou 
muita cria dos engenhos
gordos bezerros 
da prospera pátria

negro foi artigo de luxo
carne exposta à venda nos mercados 
em praça pública
animal de boa tração gerador
da riqueza alheia

não aceito a utopia
da falsa liberdade concedida
depor-se-á o rei da barriga do homem
cedo ou tarde
alimenta-nos a certeza
que não fomos feitos
para o açoite
ou para o cárcere

não à canetada del-rei
à bondade esperta de qualquer princesa
à hipocrisia do riso branco
negro é artigo de luxo
porque veste
a roupa da batalha
e com ela vai atrás da real
liberdade

         Agos- 2021

quarta-feira, 6 de março de 2024

Sala de aula

ele era o único pretinho da sala
nem ele nem a professora o sabiam
mas os demais pretinhos e inhas à hora da aula
na mais otimista alternativa
ralavam nos lixões nos faróis ou ociosos nas favelas
ou com suas caixas de engraxate lustravam os sapatos 
dos executivos sovinas em plena faria lima

                     Mar- 2024

Um pedido

palmares e outros quilombos
que venceram guerras contra o colonizador
ensinai resistência aos filhos periféricos
desta nacão de contrastes
contai a história de zumbi e demais guerreiros
para que o povo preto orgulhe-se de de onde veio
e o destino seja próspero no nosso meio

                   Mar- 2024

Sociedade enferma

num país corroído pelas bases por regime escravocrata,
onde abolição meia-boca jogou os negros na sarjeta.

nada de novo no front:

cadeias apinhadas de pessoas pretas e pardas.
universidade formando doutores brancos para sociedade enferma.

               Mar- 2024

As grandes chagas

guerras agem contra a vida no mundo
revoluções tentam um pouco de bom senso em nações dispersas
golpes instauram ditaduras em países indefesos
muros caem unindo expectativas

outros erguem-se apartando sonhos já falidos
e como pano de fundo a tragédia da fome apartheids extermínios
e na áfrica um tanto de cada chaga
de cada espectro maléfico que o homem cria

                         Mar- 2024

Um copo de veneno

o agrotóxico está na mesa
a mãe serve o alimento a seus filhos
um copo de veneno com amor
entanto a mãe não sabe
quem pode e sabe paga pelo orgânico
inclusive o deputado
que defende enfático o uso de tais defensivos
e faz lobby e é amigo do produtor
enquanto o pobre
alimenta-se da própria morte
e tudo segue como ordem natural 
das coisas
e foi reeleito o hipócrita
locupleta-se
da miséria olheia

            Mar- 2024

Ofício do verso

ao cabo tudo é dor
pássaros sem a posse 
do espaço estamos
o poema 
que morre aos olhos
e tenta no âmago a essência
pequenas glórias
que o céu almejam no mar da vida

ecoa a palavra 
que não sustenta o verso 
na trágica metáfora da tarde
desatar os fios da lavra
tece o tempo

(o novelo mais se ata)

rompem os elos
explode arte-vida 
em musgo
tudo nos escapa
restam ranhuras n'espanto 

o poeta é um egoísta
tentando o belo por ruínas
no instante fatal

   Mar- 2021

terça-feira, 5 de março de 2024

Um fenômeno de amor

fecho os olhos e você é a água que me mata a sede
vou à rua e você é a praia em que me banho e refresco
o ar que respiro tem teu cheiro natural de flor
a fruta que como tem o sabor dos teus lábios que nunca beijei
o vento leve que toca meu rosto tem a textura de tuas mãos macias
e a água a comida a praia o ar o vento compõem o que sou
um ser inteiramente impregnado da tua presença

                   Mar- 2024

Poder público

a britadeira da prefeitura 
me desperta antes do relógio
no exato momento 
em que as bocas uniriam-se
num beijo apaixonado
como odeio o poder público
e suas obras em ano de eleições
inúteis obras eleitorais
ó incompetente prefeito
leve saneamento a quem 
precisa com urgência
e deixe-me sonhar com a boca
de minha amada
meu voto não é de cabresto
é antes voto de oposição
ao seu desgoverno
maldito alcaide empata foda

             Mar- 2024

A renúncia do poeta

grafar teu nome no atropelo
das obrigações diárias no outono poluído 
da metrópole de pedra
escrever entre ruído e fuligem 
o enredo dum amor 
que não se desgaste feito engrenagem
na grave inércia do mármore exista

o tempo é credor dos corpos
hábitos e costumes
com o amor coexiste na órbita do indizível
é frágil o verbo
rica a poesia que há na vida

então quero existir
noite adentro da intimidade nossa
na fortaleza dum apartamento
tratar de boletos e despesas no café da manhã
averiguar nos jornais algum alento concreto 
contra a violência

vez em quando evadir pro campo

      Mar- 2021

segunda-feira, 4 de março de 2024

Medusa

revolução é a noite indecifrável e muda
neste quarto de paredes de gelo
onde eu imagino a tua imagem mulher
que havia perdido n'alguma manhã de outono

porque é mulher está nos meus pensamentos
cravada como rocha sobre outra rocha
e te encontro entre palavras e livros
fechados no silêncio da madrugada fria

e te vejo sempre assim medusa implacável
que me fez pedra quando eu era todo afeto
disponível a teus braços de neve que ofusca

                        Mar- 2024

Escrevendo o ocaso

faliram-me os olhos
a maior das ilusões do homem
como mister que me fosse o sustento
a vista deu-me o mundo e tirou
friamente

os dentes 
foram triturados pelo tempo
como ironia machadiana
fina e corrosiva

o beijo vou guardar na lembrança 
como o gesto mais terno 
de que fui capaz
com o abraço

palavras fundamentais
para mim
que lhes estudei até as origens
já não lembro o significado
como por exemplo: 
alteridade

meu pau é um mito
o nosso imenso paradoxo
espectro de todas as glórias
e dramas
outra grande ilusão

a gente perde o que nunca teve
apenas imaginou que tivesse
como uma certeza traída
resta-nos a ignorância de tudo

    Mar- 2021

Homem negro

não se ama além da própria utopia
pedaços de um homem, 
                          partes inteiras de mágoa,
o coração rubro de um homem negro.

o estio vence os braços, vence a boca,
vence o pênis
               -imenso de solidão-

enquanto os olhos têm os olhos
                          esquecidos noutros olhos.

eu quero a centelha no feno
                 muito além do fla flu casual
     sem ausência ou apatia
eu quero a ousadia profana de um corpo
                      imperfeito
difusa qual artérias nas grades do peito.

hediondas paredes de pedra
                à minha volta                                 
                   -mais um emparedado destino-
o amor deflagrado 
       que não violenta.
mas não brincarei no carnaval sem passista
da avenida do tempo,
                a vida escorrendo em suores.

       eu quero mais que o amor alheio,
amor que morde e assopra
               -tirano e frio-
eu quero o amor que volta,
    a felicidade de uma boca, 
                 de uma buceta, de uns seios.

                     14.02.2021       

domingo, 3 de março de 2024

Mendigo Pedro

cediço ranço estorva 
a metrópole
respira e traga gás carbônico
posto come o que não come
produto odioso 
da distinção do homem
enjeitado louco do manicômio
já não é mais homem
já não é mais homo
é o inumano retrato da fome
obsceno ser dos esgotos
criatura abjeta das sarjetas
destino esfacelado
banido espectro pele e osso
privado até das gorjetas
é um fato é um feto
nem nasceu por ter nascido
evento trapo que andeja
o oposto mito de Narciso
que de tanto ver
sem ser visto
agoniza todo desgosto
misto de homem e bicho
rejeita a efigie do próprio rosto

        Fev. 2021

Dizeres do Mendigo Pedro

ando a vagar vagar vagar sem rumo certo
nas ruas desta metrópole desgovernada,
no meio de toda esta gente, neste deserto.
com a sutil diferença, salvo a ironia,
que não tenho sequer um barraco na favela.
pequeno, pra mim mesmo,
ou um catre sob o viaduto, que seja.
que o que me pertence apenas são meus trapos velhos,
e o meu corpo cansado, quase nada.
quem tem rumo certo nesta vida desvairada?

de mim sei quase nada, de onde venho,
não quero lembrar,
sei apenas que aqui vim parar,
que sou de qualquer lugar.
que a fé eu perdi dobrando uma esquina, perto;
os sonhos todos,
numa noite gelada de inverno aberto.
vez em quando esqueço minha condição
e sonho mais que posso,
às vezes, muito às vezes até tenho fé, mas logo volto.

mas o que eu sei de verdade
é que não sei o que mais me transtorna,
no correr dos dias, no passar das horas:
se meu ventre que me consome, que me devora,
ou se meu coração que lamenta e chora:
o ventre consome e devora por não ter comida,
o coração lamenta e chora, pela dor desta vida.

                    Junho- 2016

sábado, 2 de março de 2024

De repente

de repente não ousamos nada
esta preguiça é coisa desde o ancestral 
enlouquecemos de cachaça e drogas
somos todos tribos no canto esquecido do mapa

de repente somos inferior
afeitos ao crime e à violência
ainda assim as estatísticas mentem
mas é destino de cada

de repente não crescemos por gosto
nosso irmão doutor é prova incontestável
somos bem-vindos nesta pátria
ainda que banho não nos apeteça

de repente gostamos da fome
te será mais útil o leite de nossa mãe
e universidade não nos é mais útil
nossa escrita é blá blá blá

de repente o racismo é nosso
consciência é humana não negra
somos mesmo é vitimistas
amam tanto nossa preta pele

                                               de repente!...

       Agos- 2021

sexta-feira, 1 de março de 2024

Confissão

amigo
tem sido dura a vida
e pode piorar
nenhuma fresta no céu chumbado
nenhuma palavra amena dos lábios que se quer
nenhum afeto ou chamego
de mulher
nenhum pão que se possa
dividir com os miseráveis
em face da própria
miséria que sou
nenhuma cama confortável
onde se possa
adormecer das dores que atravessam
o peito sem pedir licença
nenhuma poesia
que me limpe a lama dos sapatos
e das vestes
na minha pobre poesia
nenhum sorriso que suplante
esta perene tristeza
que atravessa meus dias
até os mais azuis
sequer uma lágrima que corra a face e me faça 
sentir o gosto de um pranto elaborado 
no silêncio do peito
não tenho a força necessária 
para chorar
tem sido dura 
                               amigo
a vida

                               Jan- 2024