quinta-feira, 29 de fevereiro de 2024

Dossel de sonhos

entorno de revolução
opera a palavra acolhida
colhida página adentro das horas
sentido em signos
grafado 
no lábaro da esperança
dossel de sonhos

plasma-se
porém o impasse em nó
na indústria da treva 
ou sabotagem

esconsos 
no abraço agem apartheids
corrosão nas veias abertas da vontade
chama que resiste  
emula o luar

flor que aspira 
rebela-se
contra a opressão da rocha
e exibe seu mais intenso
azul

entanto cada fenda
traz uma peçonha incrustada 
no sorriso
abismos de pedra

    Mar- 2021

quarta-feira, 28 de fevereiro de 2024

Comarca de absurdos

brancos desvalidos e negros 
açoitados
agonizam misérias 
sobre palafitas
nas encostas íngrimes dos morros
sob a idiferença de todos

barões e senhores 
endinheirados
caviar, filé-mignon e mesa farta
a usura da posse e do lucro
no país esfacelado
e morre-se de bala morre-se de frio
crianças famélicas mínguam
o medo do invisível diante 
dos olhos

uísques e charutos de mando
na boca torta do sistema
lupas de egoísmo 
nos olhos míopes do sistema
escandalosamente
o sistema
comarca de absurdos

ainda o mando sobre o dorso 
oprimido
ainda o mando sobre o dorso d'África
sobre a tinta das peles e o sangue 
derramado nas terras
herdeiras das capitanias

pode o poeta e sua voz 
de frágil timbre
combater com palavras evidências
documentadas em cartórios
papéis timbrados que guardam
a corrupção dos homens
vis de nossa pátria alheia

cada poema chaga
é um chega para os perversos atos
que atam o ontem e o hoje
tempos estranhos esses do poeta
o povo ignorante
amargando cachaça barata
e vícios e nocivos hábitos 
com as algibeiras cheias de pedra
o prato cheio de terra

o poeta sofre
versos amargos sobram
o poema chora em vez de sorrir
e dorme
com seu povo
no seio da pátria amarga

     Agos- 2021

Eu tenho orgulho

eu não sou o presidente 
daquela empresa
não leciono naquela universidade
e não cumpro expediente naquela repartição
pública
mas eu tenho orgulho

jamais defendi tese de doutorado 
e sequer tenho graduação 
em qualquer 
disciplina 
de qualquer universidade
mas eu tenho orgulho

estorvam-me 
o linho da minha roupa 
o couro do meu sapato
a lã da minha blusa
a felpa 
do meu cobertor
o gosto da minha comida

quando recebo salário
geralmente desfruto desemprego
ele é entorno 
de 50% mais baixo
que o de um homem branco
mas eu tenho orgulho

tenho amado bastante
mas o amor tem os seus senões
e tenho recebido as costas
para amar
as deslumbrantes costas 
da pessoa amada
mas eu tenho orgulho

perdi a conta dos ultrajes
conto nos dedos os afetos
mas eu tenho orgulho

eu tenho orgulho
dessa negra pele preta retinta

      Mar- 2021

terça-feira, 27 de fevereiro de 2024

Pra inglês ver

filhos nascem condenados
das barrigas pretas de barro
castigados de lonjuras

quanto de pálpebras tristes há em distâncias
que a política ignora
que a estrutura acolhe no racismo
em contornos de sociedade acostumada aos crimes
do pescoço branco

mais criminoso
é quem já nasce cerceado da liberdade
condenado no ventre
vítima do vento contrário
no seio oprimido do muito sofrer

dá de sofrer aos que só lucram
e tudo se ajusta
o jugo vira a direção e a justiça moda
mas deixa transcorrer a regra
que o frágil fragiliza
e a violêcia
não passa de mero acaso
pra inglês ver

a matemática é mais que exata
não resta dúvida
nesta pátria de prática criminosa
criminaliza toda raíz inocente ancestral
que depois de gerações a fio
implicada
dos que depois rebentam
a chaga

              Set- 2021

domingo, 25 de fevereiro de 2024

Senzalas

de senzala em senzala
rugi nas mentes o som das águas sangrentas
do banquete dos tubarões famintos
o hálito da necrópole dos mares
cristalizados nos olhos violados da escravidão

de senzala em senzala
a força bruta contra as inteligências
pelas maquinações da usura
a resistência nos olhos vazados a ferro
nas peles em lanhos despidas
os jugos correntes e máscaras
a tortura à ternura fuzilada

de senzala em senzala
fome frio medo e a podridão da carne
os vergões dos açoites nos dorsos
o gosto podre dos alimentos nas bocas
as almas tomadas pelos engenhos
a posse dos braços explorados

de senzala em senzala
o estupro o choro contido no desespero
o filho bastardo no ventre violado
o esfumaçar das identidades
os estilhaços dos corpos esgotados
os inféctos odores das moléstias
dos excrementos e dos sonhos esfacelados

de senzala em senzala
as dignidades aos poucos usurpadas
a imagem dantesca de todas as perdas
amontoadas pelos gélidos cantos
a incompreenção nas palavras
os inascessíveis horizontes do Continente

o resultado destes crimes de lesa
são as descendências atoladas
no lamaçal do menosprezo
a dívida jamais ressarcida e negada
cada gota de sangue dos homicídios

       Jul- 2021

Agosto

na tua pele arde
qualquer coisa de fruta
talvez o cheiro talvez o sabor
que na boca 
fica depois do amor

os lençóis falam
de nossa pele indefesa
da chama que não se apaga
nossa fome
nossa orgia negra

ainda que durma
o corpo que se esgota
a noite teima e nos reclama
mesmo nas dores
que esconde a cama

amar ensina
a sina de viver o outro
o que a vida fustiga e fere
sepultamos na cinza
face de agosto

    Agos- 2021

sábado, 24 de fevereiro de 2024

Teus olhos II

                                        à Eliane a verdadeira dona desses olhos

             mar de cristais sob o sol
deposto
reflexo insigne do azul
                         no colo da noite
             brisa 
de inócuo sal e húmus
                       de algas virgens
                                          no lago
utópico
   cindindo pedra
e treva
           
teus olhos

auge do ímpeto
               da neve austral
de invernos
coroados de pássaros
               e ventos
                        ao largo da dor

vieram assim

prisma de nítidas cores
                  de náufragos velames
carregados de sonhos
                     fora da voragem
do fluir das eras

vieram assim
arder o fogo aceso do opaco
espelho das íris do poeta
           -sem poesia-
                    ária de leve melodia
do poema
desfeito no espectro
                             do verso

vieram como foram
flores no silêncio do bosque
sepultando 
          esperanças
                    vieram como foram
chuva de estio
em folhas de outono
         estórias de infância
                   vieram como foram
acordes de viola boêmia
sob os astros

               Set- 2021

Laço que não desata

réu no tribunal do teu ser
implica-me grave delito: amo!

quando não quis 
senão o beijo tinha um arsenal
de gestos que te escapava
vestígios de mulher
inevitável minha captura

na cela de ardentes 
desejos trancado nego a liberdade
condena-me e submeta 
à perpétua pena 
deste apego, acato!

não me furte porém
da urgência do calor do teu corpo
do hálito úmido do teu sexo
a desvairar-me o tino

quero os laços 
dos teus cabelos a dissipar-me o ar
a fustiga dos teus pelos
tatuando a carne nua do meu peito
apenas morrer 
de afeto no teu sangue

     Mar- 2021

terça-feira, 20 de fevereiro de 2024

Guerras

eles matam mulheres e crianças 
numa guerra fria
fria e sangrenta guerra
sem sentido ou justificativa
diante dos olhos atônitos do mundo
eles se matam uns aos outros nas periferias
por qualquer detalhe ou absurdo
derramam sangue aos jorros
como numa guerra intensa e permanente 
sem trégua ou remorso
guerra no campo
cidade e em toda parte guerra
enquanto eu que sofro por amar demais
mato-me a mim mesmo
um pouco cada dia
na minha guerra comigo
jogo-me bombas e granadas
dou-me tiros de fuzil e metralhadoras
e até planto minas explosivas
em meu peito cansado de guerra
sou o meu próprio inimigo e me saboto
com exércitos e artilharia pesada
tropas e tropas entrincheiradas 
dentro de mim
causando o meu extermínio
um pouco cada dia
na minha guerra comigo
tentando compreender
esta noite escura
escura e fria noite
noite infinita
sem o teu abrigo

                Fev- 2024

segunda-feira, 19 de fevereiro de 2024

Tambores

os tambores estão tocando
nos meandros da noite 
eu escuto
estão tocando
e são os filhos d'áfrica que tocam
eu reconheço o toque
são mãos negras
eu reconheço o som
estão tocando
estão tocando 
vamos sair pra noite amor
que áfrica está aqui
vamos amor
juntar-se a nossos irmãos
áfrica está aqui
irremediavelmente 
dentro de nós
somos áfrica amor
e os tambores estão chamando
eu reconheço o timbre
vamos amor
vamos amor

                  Fev- 2024

Nevoeiro

quando madrugada 
baixa nevoeiro sobre as casas
meu olhar embota lágrima
porque um tempo desperta súbito
a memória
de um mar sem fim
de obscuras embarcações com carga humana
partindo d'áfrica pra nunca mais
se baixa nevoeiro
é lamento de negro cativo nos porões 
dos negreiros
por séculos
se baixa nevoeiro sobre as casas
meu olhar embota lágrima
e sou um pouco nada
sou lástima

                    Fev- 2024

domingo, 18 de fevereiro de 2024

Guerra perdida

lutar pelo amor é guerra perdida
quando ele se esconde sob a terra estéril
de um peito indiferente
antes que germine bulbo e broto
a semente mofa
e não adianta levante ou tempestade
apenas entregar as armas
antes mais cedo 
que tarde

                    Fev- 2024

O sino da igreja

o sino da igreja é tão pobre
tão pobre que a gente quase não escuta
(a igreja é pobre coitada)
um som cansado 
de latão
cansado e desengonçado
trôpego como o andar do poeta
e o poeta é mais pobre que a igreja coitado
mas quando eu ganhar dinheiro com meus poemas
vou doar um sino novo à igreja
de bronze
do bronze mais nobre que houver
que soe como música
para todo o bairro
quero ouvir nitidamente 
as badaladas
das seis

                   Fev- 2024

Amicão

amigo cão
agora que tu partiste
é que dou-me por mim sozinho
sozinho e apatetado sem tua amizade
sei que estas em boa companhia 
perto de deus
brincando de anjo
bem canino
que é a tua agridoce sina
enquanto cumpro minha sina amarga
que tua festa abrandava
eras a própria festa
apenas tu sem a festa que fazias
festa aprontando divertimento pro amigo humano
e não tenho mais de quem arrancar um carinho
nas horas vagas
vagas e tristes horas
ficou a tristeza mordendo a carne
o que nunca foi teu feitio
quando for possível
pegue uma nave
rompa ligeiro o infinito espaço
e retorne para um último
abraço

                Fev- 2024

sábado, 17 de fevereiro de 2024

Sacerdócio

o padre showman
o padre altruísta
que sacerdócio me irrita?
mais alguma pista?!

               Fev- 2024

A palavra negro

a palavra negro 
quando queima na boca do negro
ou é vergonha de quem
ignora a negritude
ou é negro 
traidor da causa

a palavra negro 
quando queima na boca do branco
ou é ignorância de quem
desconhece o negro
ou é branco
racista pronto pra dar
o bote

falar de raça não deve ser tabu

a palavra negro
não é zona de risco pra queimar na boca
é orgulho e confiança
pra quem assume o crespo solto
ou na trança
pra quem assume o preto
da pele sem receio
ou medo

                      Fev- 2024

sexta-feira, 16 de fevereiro de 2024

Catedrais

quando vou pela são paulo antiga
tenho em mim catedrais de nosso senhor
não as que celebram em seus cultos dominicais
um deus branco apartado do homem comum que vêm nos trens
nas vias sujas de urina e excremento
nas esquinas perigosas
da cidade infelizmente abandonada
trago em mim as catedrais
que abrigam os desgraçados negros
nas suas escadarias
último refúgio
de quem não tem mais nada
em degraus 
aquilombados


                 Fev- 2024

Pauta

se uma pauta se faz apenas de pausa
não tem música ou músico
ou regência
ensurdecedor silêncio
sem espetáculo nem público
                           nem vida

a sedutora noite
sem os teus suspiros
              sem o sons do teu gozo
é pentagrama em branco
                 apenas possibilidade de amor
flor germinando na rocha
na solidão de inóspito deserto

                      Fev- 2024

O que é isso, companheiro?

não há mais as reuniões do partido
perdera-se na poeira o afinco
o engajamento ativo de nossas forças
a verve militante foi tomada de ferrugem
as reivindicações por justiça
injustamente esqueceu-se no fundo das gavetas
e nossa juventude escoou no turbilhão
fleumático do cotidiano
sem causa
sem objeto ou objetivo
num silêncio de necrópole esquecida
como não houvesse por que lutar
como não houvesse existido um sonho
nos apequenamos sem conquista
no sofá da sala
aos afagos inúteis de um jogo
de bola ou novela
com o intelecto amordaçado
em lastimoso silêncio
mofando

                    Fev- 2024

Folha

uma folha corria o jardim
sem galho sem viço amputada

               errava às ordens do vento
nos socavos fundos
de uma tarde perdida no tempo

               abandonada
                         ca
                              í
                                da

diante do meu nariz altivo
velho monarca egoísta

                    Fev- 2024

Sensação

uma sensação de pássaro sem ninho
no meio da tarde opaca
e seus meandros
como algo que faltasse profundamente...
sem resgate ou ou volta
um ente que de repente falta
um trocado de moeda sem valor
no fundo das algibeiras
um vazio de cidade fantasma
exterminada pela guerra
feito bosque sem arbusto ou árvore
ou jardim sem folha que erra
orquestra sem flauta
seria a falta dos teus braços alvos
ou qualque outra desgraça?

                    Fev- 2024

Dante negro

vi nos teus olhos uma luz intensa
réstia de sol estilhaçando o vidro do peito
feito cristal que se parte em pedaços
ao cumprir sua sina de pedra
porque sou homem frágil
que sucumbe à luz de um olhar apaixonado

e teria sucumbido a outros olhos
não fosse o momento em que chegaste
atingindo-me em cheio no âmago
indefeso à tanta graça

hoje tua luz habita o horizonte
de onde diviso de sobre o monte de neve fosca
como habitasse as gélidas cordilheiras chilenas
teus braços implorando um pouco do calor
de meu corpo exausto de tanta guerra

como eu não fosse espectro
apagada estrela sem vida perambulando o universo
feito mendigo sem rumo na metrópole
e não fosse sequer mera recordação do que floresce
não fosse messe que apenas se espera abundande
se sou apenas esfacelado dante negro
chorando o amor de beatriz

                  Fev- 2024

São Paulo

queria cantar-te num poema
extraordinariamente
simple são paulo
mas você é complexa
as tuas formas o teu temperamento
não cabem num poema
e desdobro-me em palavras
pra dizer-te
em alguns poucos versos
cidade-chave
point de tantas tribos
que nem sei dizer quantas
rica mãe de pobres filhos
mas uma palavra
define meu sentimento
cinza flor de todas as flores
e esta palavra é amor

    
               Fev- 2024

São Paulo

enterrar a cara nos meandros
da cidade dura
desaparecer entre os traseuntes
e os edifícios
na carnadura de tuas vias congestionadas
respirar os gases que saem
dos escapamentos
escapolir por tuas ladeiras
cidade de papel
onde desenhamos nossas vidas
garatujamos nossa história
traçando sonhos
esquecidos
a mais bela mensagem de amor
chova-me cidade de pedra
que eu floreço
no teu aço no teu concreto duro
cidade dos negócios
cinza como teu céu de outono
cidade industrial financeira
quero adquirir uma porção pequena
de teus subúrbios
dormir e acordar na tua carne
de pedra bruta
criaria filhos sob teus decretos
se os tivesse
quanto de você mora em mim
é inconcebível
e gosto de fechar teus bares
chorando no copo as mágoas de amor
não correspondido
embora seja portador do amor que transpiras
por teus poros de pedra
são paulo
nem sempre tens a saúde
necessária para abrigar os filhos
que nasceram da tua placenta
e que vivem no solo do teu ventre democrático
quando muitos deles
perecem nas desgraças
emanadas de teus seios mãe amada
amei aqui
esqueci aqui
trabalhei aqui
e vou descansar meus ossos na tua terra
cidade de contrastes
tão violentos às vezes que angustia
mas teu nome
tua vivência muitas vezes cheia de defeitos
tua estrutura rija feito aço
tuas matas teus mangues
tuas entranhas inesploradas
já têm registro reconhecido em cartório
caos urbano
rica arquitetura
grã-fina e miserável cidade
que não dorme

                            Fev- 2024

Aqueles tristes dias

quando te fizeste fera perdendo 
as estribeiras
quando me atiraste pedra e crucificaste
como um jesus negro
não entendi muito bem a tua tempestade

e como um comunista doei 
até o que não tinha
pela causa de um amor que nascia

mas tu choveste tanto
que me alagou me inundou de tua ira
que eu não entendia

depois de tanta incompreenção
incerteza e guerra
rendi-me e dei por perdida a causa

entreguei as armas
e chorei as mágoas até secar as águas
de todo o corpo abatido e cansado

tu não sabes
mas como chorei tantos dias
e tantas noites ao amor

que ainda ao brotar sem folha
sem fruto todo frágil e pequeno morria

                           Fev- 2024

                  

quarta-feira, 14 de fevereiro de 2024

Uns braços

não quero complexidade
muito menos poemas herméticos
quero a liberdade
cravada em pedra simples
sequer quero diamantes lapidados
se me faço em rocha
de minerais
habitado

nem quero
ruminar passadas mágoas
se me deságuo rio
e sou feito de águas
confrontando
estios

sou mais longo abraço
inteiramente afeto
daquela a quem me entrego
a quem não nego o laço
do mais puro
sentimento

e fica dentro desses braços
meu quilombo
é lá que renasço
que me faço e me desfaço
regenero-me
de todos os tombos
desembaraço
encontro minhas raízes
e sou angola nigéria congo
sou banto
apesar das cicatrizes

                 Fev- 2024

Fragrância

esta lenta sedução que somos
esta interminável dança
expõe meu ponto fraco
tua úmida fragrância

e no lusco-fusco vermelho
de tarde chuvosa
nos teus rubros lábios
ensaio um beijo

e mesmo que tu incógnita
eu ainda mais desejo

               Fev- 2024

Ensaio

você me suscita o estro
sussurrando pétalas de promessas
e eu desdobro em versos
todo meu ser

para te ver em festa
correndo os olhos atentos
nos meus textos

e no fim da conversa
reescrevo com fel e mel o traço
do que somos distância
então nos vejo um
e renasço

nas brumas sutis da nossa dança
em silêncio me desfaço

                  Fev- 2024

Carnavalizando 4

as palavras estão inquietas
dentro da metáfora
figuram em estado de rebeldia
a liberdade de folha que do calho
desprende-se querem
quarta de cinzas
o momo tranca a cidade indgnado
cidade sem saneamento
e coisa e tal
mas o que é carnaval?
preto no branco
carnaval é negócio e do branco
não é mais do preto que inalgurou
desceu pro asfalto
mudou
passista agora é socialite
ou filha de doutor
preto se esfola pra pagar fantasia
e o lucro da festa não é 
da favela
o que mais nos resta
pobres coitados se não a folia
acordar quinta-feira
à ressaca
de todo dia

                  Fev- 2024

terça-feira, 13 de fevereiro de 2024

Carnavalizando 3

a comissão de frente
abria o desfile
introduzindo o enredo
que trazia à avenida
o mestre-sala dos mares
o almirante negro
joão cândido
era o samba mais lindo
que falava da nossa história
mas faltou a rainha
na tua bateria
que seria a tua glória
paraíso do tuiuti
aquela do meu coração
que à essa hora dormia

          Fev- 2024

Carnavalizando 2

apoteose na avenida
o mestre-sala da minha escola
negro de samba no pé
performava certa tristeza
que no pensamento
cobriu de adereço
certa porta-bandeira
mas não esperava o avesso:

esquecera seu endereço!...

          Fev- 2024

Carnavalizando

tenho o samba no peito
da minha escola você é destaque
faz desfile perfeito
a mais elegante sambista
na cadência bamba da bateria
só dá você na avenida
podia ser todo dia
desfile de carnaval
mas então eu desperto do sono
e está tudo igual
entre mim e minha passista
este abismo abissal

           Fev- 2024

Estrada

tanto ardor 
em querer-te bem
que no meu peito 
afogado
sou eu mesmo e ninguém

tanto empenho
em esperar-te na caminhada
que minha vida poeta
é mais vida 
sonhada

e enquanto
espero-te e me proponho
uma vida abnegada
vejo escoar-se 
os sonhos
por toda estrada

         Fev- 2024

segunda-feira, 12 de fevereiro de 2024

Terra do meu amor

terra seca que não germina
exausta terra rachada
terra nordestina 
do meu país
terra da caatinga e do sertão
houve escravidão na tua jurisdição
mas o teu condão
é de liberdade
terra que perdeu fertilidade
tantas vezes violada
que enriqueceu iaiá e nhonhô
velha terra castigada
de vovó e de vovô
e de toda uma linhagem de escravos
tantos crimes sob teus domínios
terra sagrada do meu amor
e de vovó e de vovô
deixo aqui este poema
terra que tantas vezes sangrou
onde coagulou o sangue ancestral
gigante terra menina
terra que não dá pasto nem cana
terra que não germina
minha terra nordestina

              Fev- 2024

domingo, 11 de fevereiro de 2024

Carnaval 2

o circo sem o pão
um cisco no olho do momo

              Fev- 2024

Carnaval

carnaval na avenida
plumas requinte luxo e apoteose
na goela da madrugada
blocos de foleões
gastando reservas de ânimo para o ano
que se inicia
fantasiados mascarados
embriagados de festa fugindo às obrigações
por três dias
todos incinerados de folia
renascendo das cinzas na quarta-feira
para realidade de todo dia
e recomeça fevereiro
seguinte
para mais um ano
tudo igual
fome miséria descaso
e carnaval

                Fev- 2024
o crack é feito bala perdida
encontra sempre os mais pobres

                Fev- 2024

sexta-feira, 9 de fevereiro de 2024

Preto no branco

pego-me estupefato 
numa reflexão:
que negro ver como escravo:
o que nutre o ódio
de negro ser
ou o que carregou pedra
na escravidão:
este foi esteio da nação
aquele cabe na palma 
de minha mão.

                 Fev- 2024

quinta-feira, 8 de fevereiro de 2024

Desdobro

sem nenhum vestígio de voo
sigo que resvalo na lama
mas se é o horizonte que almejo
o desdobro em mais de mim mesmo
não me entrego à lastimosa trama
de ser só homem de ser só negro de ser só drama

                 Fev- 2024

Constatação

quantas vezes jovem desorientado
não fui ultrajado ao extremo
diante dum ato de explícito racismo
e não trazia nenhum argumento
na algibeira comigo
eram muitos os intrumentos 
de opressão contra minha cor negra
hoje já homem feito constato
de fato não há lei ou regra
que desfaça este silencioso pacto
da branquitude
e seguimos na mesma merda!

               Fev- 2024

A bordo negro

mãos contra o muro
horário de pico
em plena avenida paulista
como viesse escrito
no meio da testa:
"eu sou bandido!"

esmiuçam os bolsos
como argumento o instinto
horário de almoço
quantas vezes o branco
sofreu este acinte

nenhum flagrante delito
mas o mal está feito
constrageram mais um preto
e no peito um grito:
"é proibido sair do gueto?"

e tem gente que insiste
no brasil não há preconceito

                 Fev- 2024

quarta-feira, 7 de fevereiro de 2024

Autópsia

esgarçar o peito aflito 
de poeta negro
investigar fibra por fibra
algum poema 
que nasce
feito cão sem dono
d'algum desastre
de abandono 
ou desenlace
e antes que se alastre
raiz no corpo
lançá-lo 
à cruz
como 
a um 
mártir

            Fev- 2024

Poema para a branca manhã

perdoe branca manhã
se busco refúgio na noite
por não 
compreende-la 
muito bem
mas a dor de ser homem
frágil em tudo
persegue-me como a um criminoso
persegue a polícia
a dor de ser negro me toma
invade o peito
estrangulado de mágoa
mas um dia
no regaço quente da amada
onde posso aliviar-me
das angústias
compreenderei-te como compreendo
minhas próprias dores
e te abraçarei com ternura
como à uma irmã
branca
e doce manhã

             Fev- 2024

terça-feira, 6 de fevereiro de 2024

Diploma

não fosse 
o tempo perdido
nas lavouras de café e cana
nos engenhos e garimpos
torrando ao sol
o miolo
talvez houvesse
doutor

não fosse
o sangue vertido nas secas terras
dos insalubres logradouros
coagulando na poeira
dos séculos
talvez houvesse
doutor

não fosse
toda perpetrada tortura
gargalheiras golilhas grilhetas
e cepos
os bárbaros assassinatos 
na densa selva
da história
talvez houvesse
doutor

mas tenho apenas versos 
sepultados nas frestas do tempo

                Jan- 2024

Existe uma dívida

onde foi que cortou
o perverso chicote do feitor
no dorço negro escravo
ou nas costas 
brancas 
do senhor?

                Fev- 2024

segunda-feira, 5 de fevereiro de 2024

Meritofarsa

fala meritocrata
se aquele branco que levou a disputa
contra o preto favela
em condição desigual e injusta
foi mérito próprio 
ou pura farsa

mérito é vencer um igual
é levar a disputa
em condição equânime
justa
não é quem já de largada 
tem a vantagem 
e vence 
a parada

meritocracia 
não mede competência
em realidade desigual
expõe diferença

nela a elite branca
ganha de bandeja melhores cargos
melhores vagas em concursos
e universidades

e aos que vêm de baixo
resta amargar a mágoa do fracasso

                 Fev- 2024

Versutopia

o engajado verso
que com esmero se escreve
se esquece
e vira cinzas nas páginas amareladas
dum livro 
vira fosco vidro
que se estilhaça em fragmento
de invisível nódoa
no pensamento
de quem lê
e goza

                    Fev- 2024

comia a bola nos campos das favelas da cidade. não tinha com o que nem como. quê de craque meio pelé meio garrincha seu livro era a bola. ainda que não quisesse outra coisa que não ela apenas bola tudo bola andou entortando as linhas do gramado os perímetros da área. sem igual craque da pelota passou da noite para dia a cachimbar seus sonhos o cachimbo que a boca entorta entortou seus voos. consumia e consumia-se crack nos desvãos da favela nos matos atrás dos campos era já consagrado craque não mais da bola mas do crack.

domingo, 4 de fevereiro de 2024

Reflexão

infância preta na favela
perto do álccol e das drogas e longe da escola
diz muito ao olhar agudo 
e nada à vista rasa
ou à vesga visão dos hipócritas
lembra senzala
ou às leis que enojam
qual ventre livre de escrava
ou tetas secas que engordam
o robusto fruto da sinhá
que mais há de vir
desta equação amarga?
o inesperado astro da bola
ou o ordinário
cargo subalterno
n'alguma empresa ou fábrica?
ou a gaveta fria do IML
sem mais nem identidade
sem mais nada?

enquanto reflito
mais um grã-fino esnoba
o favelado pretinho que esmola

               Jan- 2024

quinta-feira, 1 de fevereiro de 2024

Crespitude

meu crespo dito ruim
é que me fortalece na caminhada
cresce força e negritude
mas na sua boca
é vergonha descarada
enquanto não passa
de atitude
e mais nada

             Fev- 2024

Lapso de cor

no papel o branco
é cor igual a qualquer outra
inclusive ao preto
por que na gente os brancos são mais
e os pretos 
cercados de preconceitos
são vistos 
como animais?

              Fev- 2024