terça-feira, 31 de dezembro de 2024

A sorte do homem negro

o homem negro 
corre mais risco de ser 
baleado 
por arma de fogo
de ser implicado pela polícia
de ter a moral abalada
de ter o corpo violado, ferido
e uma série
de violências crueis
enquanto o homem branco
tem a proteção
dos braços da pessoa 
amada
e toda uma sorte
de privilégios incontáveis
sobre o homem
negro

              Dez- 2024

quinta-feira, 26 de dezembro de 2024

in my life not no else more but you. Strong hug my love!

poema para você
que no meio da noite alta
ganha meus cobertores
e que num beijo apaixonado
faz dos meus sonhos
os mais lindos
que já sonhei em toda vida
e renasço vida plena
e amor

poem for you
who in the middle of the night
wins my blankets
and who in a passionate kiss
makes my dreams
the most beautiful
that I have ever dreamed in my entire life
and I am reborn full of life
and love

         Dez- 2024

segunda-feira, 23 de dezembro de 2024

Parlamentos

o brasileiro recebe de bom grado
o tapa na cara dos nobres parlamentos
senadores, deputados
e vereadores
fazem farra com dinheiro público
e o povo sorri com regozijo
à vida de miséria a que está submetido
sem saber ao certo deste destino
como gado para o abate
seguindo.

                     Dez- 2024

Lembrando Patativa

articulei no cérebro poeta
com carinho de mãe que gesta o feto
três palavras breves
para lançar com todo afeto
dos meus lábios aos teus ouvidos
então tê-la em meus 
braços entregue
vivendo os sonhos mais lindos
poeta em bibliotecas públicas formado
que não tem casa de alvanaria
não tem sobrado
mas apenas um trôpego barraco
de madeira na beira 
do córrego
córrego este que vive alagado
o que oferecer a tão formosa dama
se não tenho estante
geladeira ou sofá confortável
mas apenas humilde cama
e um carinho imenso e constante
o poeta de todo pobre
mais que pobre é miserável
mas não pode viver sem aquela que ama
e cultiva sentimento nobre
um sentir de todo agradável
poeta que sabe rimar
apenas
dono do seu viver miserável
autor de pobres poemas
que confecciona seja na cidade tamanha
seja à beira do mar salgado
e rima tudo a duras penas
com a mais modesta artimanha
trabalho de quem só
sabe amar
da pele ao ar exposta
à menbrana interna do peito
apenas este fazer que sabe e gosta
poeta sem cura nem jeito
o que dizer doce amada
das três palavras breves que dizer-te penso
são três palavras famosas
que traduzem um sentimento

Inconcluso por poblemas técnicos Dez- 2024




domingo, 22 de dezembro de 2024

Um sonho

o pâncreas o rim o pulmão
estavam ausentes
de mim nenhum pedaço havia
havia apenas um corpo autômato
os livros a cadeira as paredes
o que havia de fato
depois do sobressalto

e você nos meus braços
exibia um sorriso lindo e largo

fora um sonho no meio da noite
o mais belo que tive na vida 
esta pele mais que cansada de açoite
pedia a fustiga do vento
você inteira e viva
mulher víceras e secreções
fato naquele momento

no despertar abrupto
a mesma avenida o mesmo muro
o mesmo vazio estúpido
a ordem possível no ambiente escuro
nada que eu queira no peito
um olhar disperço
para a vida que poderia ter sido
meu corpo imóvel no leito
como se houvesse 
morrido

                        Dez- 2024

quarta-feira, 18 de dezembro de 2024

Medo do dia

andar pelas ruas arruinadas da grande cidade
desbravar a vida em ruínas de parte dessa gente
dessa grande parte perdida nas próprias dores
dos que aqui nasceram ou migraram
dessa grande diáspora de contrastes
dessa gente mendigando o pão de cada dia
é sofrer do que não pediu
do que nem sequer esperava sofrer
 
gente misturada aos carros, e praças
e construções suntuosas a serviço da riqueza alheia
estamos todos sorvendo gás dos escapes
comendo pó das necrópoles e, 
tentando o nosso mínimo pedaço do bolo

por que dessa infeliz gente de rua?
por que dessa massa de algozes e condenados sumários?
por que desse contigente de mais iguais
e miseráveis?

andar pelas ruas da grande cidade arruinada
é desbravar o lado mau da humanidade
sofrer de desesperada esperança
como último ramo a se agarrar antes do precipício
um nocivo esperar pelo pior
para ver se colhemos algo parecido com o melhor 
na próxima esquina

tentar a poesia possível sem medo do dia
para constar na imensa biografia dum ínfimo ser...

                       Dez- 2024

quarta-feira, 11 de dezembro de 2024

O crime do negro

era negro retinto, forte e desimportante
embrutecido pelo eito excessivo no sol a pino
como quase totalidade dos negros da província
cruzava o beco no meio do dia
sinhazinha sapeca em sentido oposto deu de correr
e gritar: tarado tarado tarado
entorpecido foi capturado, linchado e amarrado ao tronco
o couro da chibata cortou-lhe a carne
lanhou-lhe a alma irreversivelmente
ele que era homem mas que a turba enfurecida
gritava-lhe: animal animal animal
na noite anterior o senhor deste mesmo negro
homem de engenho e proprietário de terras
tirava aos tapas da senzala uma negrinha muito jovem
banhou-a no pátio à água fria do poço
estuprando-a ali mesmo sob a luz das estrelas
observado pelas janelas perplexas da casa grande
do pobre negro restou o cadáver 
sob o céu de um azul limpo
no pelourinho silencioso e ensanguentado
a multidão dispersa e apascentada pelas ruas
calmas da "próspera" província
seguiu a vida ordinária e despreocupada
de cidadãos honestos e justos.

                                Dez- 2024

segunda-feira, 9 de dezembro de 2024

Cais de Porto Valongo

esse esgar seco é de negro?
esse chorar sem lágrimas
esse fedor de sangue coagulado nos logradouros

existe um cais de porto 
onde jaz milhões de almas pretas
expulsas de seus corpos pálidos
corpos quase brancos
onde jaz esgotadas
as últimas gotas de sangue

existe um cais de porto
onde atrocidades bárbaras tisnaram
a tez do dia que seria azul
mas que hora é negra

este cais de porto despresível
onde avaliavam-se homens por suas arcadas
onde mãos vis estiravam bocas
para precificar a carga chegada de mar além

cais de porto imundo
onde porcos chafurdavam 
restos de merda ainda nos corpos
estirados na lama podre da morte

existe um cais de porto
uma história que se deu há pouco
história esquecida por historiadores
ignoradas por livros e acadêmicos
mas cobrada pelos poetas desse povo
capturado trazido torturado
chacinado

cais de porto olhando o mar
no coração desta terra castigada 
existe nesse solo marcado por obscuro pretérito
um cais de porto de nome Valongo

cais de porto atravessado
pela lança cruel da atrocidade humana
cais de porto de nome Valongo

               Dez- 2024

sábado, 23 de novembro de 2024

sob a égide da humanidade

os mendigos das cidades festejaram
o mundo fez-se comunista
economias planificaram-se
poderiam ascender à classe média
haveria essa única classe social
o mais negro dos mendigos
o mais sujo dos mendigos tomou champanhe
uns morreram de tanto porre
outros conceberam filhos ainda bêbados
houve os que dançaram
toda a noite
e ainda os que andaram de montanha russa
no estacionamento d'algum Shopping 
com um sorriso de êxtase na cara
tudo aos sons festivos de uma orquestra
de negros livres da bestialidade
e da humilhação

            Nov- 2024

quarta-feira, 30 de outubro de 2024

No ônibus

meus castigados sentidos ainda captam,
os olhos ousam distinguir detalhes, 
as narinas teimam absolver o sensível no ar,
o cérebro equaciona o submundo das incógnitas 
mais covardemente mascaradas:
não é só o cabelo que dá, 
a veste pobre que pode,
o trabalho implorado que resta,
a angústia desesperada do desemprego,
a assistência do governo,
a pessoa física tristemente empobrecida,
o amor que nem sabe o que seja,
o agasalho dum colo
que ficou para trás na infância,
os olhos resignados de quem assiste à tragédia de cada um
e a cara de quem sangrou a noite toda por cada poro.
é a consciência pressentida que tudo segue
amargamente o curso do abismo.
o homem bombardeou covardemente 
a cidade dos meus sonhos.

              Out- 2024

sábado, 5 de outubro de 2024

Entre as flores do jardim

trabalhadores de tabaco nos dentes
ruminam vida e amassam mágoas sob as solas
enlameadas dos sapatos rotos.
enquanto uma tristeza turva os contornos
dos meus olhos com um pranto lento.

não viram meus olhos,
exaustos de tanto horizonte desperdiçado,
outras marcas do destino além das avarias
nos espectros de toda uma sociedade.
enquanto eu andava entre os presos da Sibéria,
e vi partir, pensei que para nunca mais,
a nau com os olhos de minha amada.

nasceu o poeta depois da guerra,
mutilado da sua dignidade:
flores germinaram no jardim de minha mãe,
rios serpentearam entre as pedras até o mar,
passaram nuvens ocultando a nudez do poente
sob os dedos ainda atônitos com a beleza destes versos.

testemunhei meu irmão caminhar
para morrer adiante sob a tristeza de meus olhos,
entre as flores do jardim de minha mãe,
ou mesmo alguém com semelhantes feições,
já não me lembro de quase nada.
eu mesmo pereci no estio entre as flores de minha mãe.

e quando a madrugada era apenas uma fresta
que eu perseguia na trégua dos anos
quando não esperava mais nada da vida,
surgiu entre a brisa que embotava meu olhar cansado
a silhueta que pensei ser minha mãe a cuidar do jardim,
mas era, novamente, a imagem da mulher que amei.

                             Julho- 2017

Madrigal para uma senhora

O fino cetim que cinge seu corpo claro,
Mais que sua pele macia não é fino.
O diamante do anel no dedo seu de brilho raro,
Mais que seus olhos não brilha, senhora do meu destino.

A madressilva que exala perfume sem fim,
Perfume mais doce que o seu não tem.
A lã de que é feita sua pala carmesim,
Mais macia que seus cabelos não é também.

E nesse brilho sem igual de sua natureza
Vai passando sem igual sua mulher
E nos deixando, nós homens, assim atônitos:

Em uma criatura só tamanha beleza,
É leve, do seu jeito faz o que quer.
Senhora, como a tenho no pensamento com clareza.

Poema composto por volta de 2013, 2014

Não há vaga

a universidade é pública
mas atende aos filhos
da alta classe
de pública tornou-se privada
e para o filho
do pobre não há vaga

o diagnóstico é triste
a sobrevivência
possível
o sentido fragilizado da vida
o osso do banquete
no prato
a liberdade abolida
e do que se precisa nem mesmo resto

a conta que nunca fecha
o ministério
da estatística adverte
a balança
não pende, (de)pende
poder perpétuo, justiça
a exata medida entre a vastidão
e o corpo inerte

as faces estranhas
de uma moeda
a posse usurpada da terra
um oceano
de negras angústias
o desfalque,
a apropriação indébita
a cínica farsa do mérito

em vez de extinguir
o abismo, multiplica-se
o burguês
regala-se sempre
abastado
e mais fome pra quem não tem nome
o feto indigente, coitado
já nasce com fome

a história revisitada
quanto maior a exposição dos fatos
mais a litania é comprovada
a universidade é pública
mas para o filho
do pobre NÃO HÁ VAGA!

       Jun- 2020


Formiga

o cartório não lavrou seu rebento
mais um parto negro apartado da vida
filho autêntico da má sorte
de pai escravo do álcool
e mãe que sucumbiu a sucessivos partos
(suspeita-se que desconhece
a paternidade).
herdeiro da alcunha do menosprezo
violado pelo relento diário
Formiga esmola no semáforo
a fraude da favela acolhedora
refúgio dos miseráveis, dos nascidos sem sorte
o estupro da inocência na aurora da vida.
vítima do despudor social
da sociopatia racista da sociedade doente
da higiene pública da cidade
à sua inadequada presença
da evolução da fome, do medo,
da ausência de dignidade,
da supressão dos direitos fundamentais.
Formiga depende exclusivamente da caridade
eximiu-se o Estado de responsabilidade
por esta vida que berra
osso e pele
do seu perfil mais esguio
que o próprio retrato da fome
por este corpo indigente perambulando a cidade
da herança racista, do imaginário racista
do estereótipo racista de todo dia
a cola é o alimento
a maconha a fuga, o recreio
únicos proventos de que dispõe
este é Formiga
o parto preto e pobre
sem trocado, proteção ou alimento
tão recorrente entre a gente
este é Formiga sem lenço sem documento.

             Jun- 2020

O operário

agradece da gorjeta o operário ao patrão
o conforto que este desfruta permite,
e aquele não tem a pele branca que este ostenta.
a família do operário não é feliz,
tampouco estruturada.
ela não come, não veste, não mora,
necessita do mínimo
para uma manutenção de vida digna.
o menino recebe a precária
educação do estado,
a menina é mãe adolescente e abandonada
e a esposa lava sempre a veste
fina de ontem do patrão.
até aqui o alimento do operário foi gotas de orvalho
com partículas de monóxido de carbono.
e almoçará tijolo, cimento,
areia e pedra com gotas de suor.
para jantar está contando as moedas
deste ofício que o patrão o remunera,
e certamente não chegará, não chegará!

            Jun- 2020

Subversiva pele

subversiva pele que me cobre a carne
o homem colonizou, escravizou e destruiu
reputações e direitos,
mas tua força resistiu a batalhas atrozes
depois do estupro, da tortura e do assassinato.
os desmandos devastaram
povos, garantias e legados sob a perplexidade
de olhos oprimidos.
exposta às crueldades mais perversas
não se dobrou às ferozes ações contra a tua honra,
usurpada das tuas necessidades
fundamentais, e lutou em guerras tremendas,
embates desgastantes, cruciantes batalhas.
ansiaram em dizimar
teus conceitos, teus valores, teu caráter,
mas os ombros que envergam tua dignidade
não entregaram-se aos açoites covardes do opressor
e tu resistiu à chuva e ao sol das lavouras,
ao trabalho constante
sob mais torturas, mais açoites e crueldades.
subversiva pele que me cobre a carne
a carga imposta à tua linhagem
tem lhe deixado sequelas difíceis de curar,
cicatrizes de uma vida de desgastes.
mas tua capacidade de indignar-se,
de rebelar-se contra
as atrocidades todas de que é capaz o homem
enche de orgulho estes peitos
marcados pela dor e pela bravura
que tu proteges,
esta tua índole para recomeços e conquistas.
apenas a este povo
de grande destemor, valentia e audácia,
de brios inomináveis és tu capaz de servir.

               Maio- 2020

segunda-feira, 30 de setembro de 2024

Mendigos

perambulam sem rumo certo
atormentados de tráfego e fuligem
possuídos da inceteza
do que virá na próxima esquina
bem raciocinam no avesso da razão
a lucidez da loucura
famintos ratos das ruas da cidade
loucos alucinados
de gás e buzina
caminham pelas sombras
do que já foram
seres de pele escura de sebo e melanina
sequer sabem de onde veio a sina
(o homem que arvora-se a explicar o homem 
quase nega um passado que condena
passado de tronco senzala e algema)
e espectros das próprias
sombras
insenssíveis os passantes 
nem os notam
invisíveis são a própria chaga exposta
chafurdando restos dos restaurantes
acomodando-se sobre as próprias
                                              bostas
 
                  Jan- 2024

sexta-feira, 27 de setembro de 2024

De que falou o poeta

                     Ao poeta Abdias Nascimento

minh'alma atada à noite gerou o verso improvável
assimilado por minha pele porosa de estrelas
que estendeu na extensão de meu corpo
a percepção do que falou o poeta em eras diversas
e que ora toca a superfície das retinas calcinadas

e escalei montes, transpus as alturas das montanhas
até que avistasse no ermo das horas perdidas
os tempos de espantos memoráveis,
de hostilidades vãs,

mas meus olhos sob as pálpebras
não verteram lágrimas ao espetáculo deplorável
e a poesia me disse tudo o que eu precisava saber

como o sêmen da chuva fecunda a terra
e faz germinar o grão que alimenta o corpo faminto
nasce do ventre da palavra o grão de que precisa o homem
para alimentar o diamante bruto da alma

permitir que a amplidão sobre nossas cabeças
perpasse o instante de um sonho
e que este instante seja definitivamente as nossas vidas
a fonte perdida das palavras extremamente grandes

                       Mar. 2020

Hoje não tem quilombo

Hoje não tem quilombo,
onde agora estancar o sangue,
mitigar do conflito, curar as feridas?
O efúgio talvez fosse uns braços
de mulher,
mas o ódio é substância nociva
que asfixia com mãos
de aço o amor,
e a opressão maltrata
o sentimento e o desejo se esvai
entre balas de borracha
e bombas de gás lacrimogênio.
Estamos obrigados a submetermo-nos
às regras e às leis do opressor,
mas aquele negro que não luta
pelo fim do racismo,
que não protesta por cota,
que não protesta por terra
e por bem estar social,
garantias usurpadas de nós,
tem que despir-se
da pele negra
feito serpente que faz a troca,
e vestir-se com a pele do opressor,
tem que vestir-se da pele branca.

               Nov. 2019

De leituras e ciências

cada vez que fecho um livro me abro,
multiplico a capacidade de me ler, com olhos isentos,
transcendidos de ambição, depois
de tanto horizonte.
e neste olhar para dentro me vasto, despido
de vaidades, me sei do avesso.
exposto a mim, as páginas escritas do tempo,
norte das outonais aragens, cumprem a ordem estável,
mesmo que algum desejo
de transforma-las agite uma cobiça
adormecida, um interesse além do possível.
vem daí a paz do meu sono, da ciência de poder me ver,
elucidar as obscuridades
entranhadas no inconsciente, penetrar no insabido,
no negado aos sentidos,
no oculto sob a casca que nos veste.
isto me põe satisfeito, humano radicado na vida.
por isso abro os livros
cada vez mais,
matuto o lodo sob as palavras.
antes que sepulte-me a noite, derroto distâncias,
conquisto páginas, conheço seus finais
e venço a guerra cada vez que os fecho, depois de lidos.

                       Abr- 2020

Tarde

teus olhos no poema
aquela província dos gestos
ainda jovens
os dias curtos dos afagos
e o silêncio cumplice
das flores

lembrar é ainda ter
mesmo que a posse seja nuvem
que não cabe no abraço
e eu não esqueci teu nome
grafado na pele
na razão

mitigar as horas
encasteladas no teu beijo
que não se apaga 

Poema sem data

Ofensa abolida

ninguém te deve nada irmão,
e este teu dano mental
que a palavra
nem escoa bem da tua boca
e tu vacilas, tartamudeias,
e entre outras coisas,
constrangido, isola-te?
e este teu saber escasso
que te põe à margem dos fatos
e tolhe teu entendimento
das coisas até as mais banais,
e ainda envergonha-te?
e esta tua relação com os ratos
que frequentam teu catre
enquanto doas o sangue na labuta
braçal de todo dia?
e os dentes que te faltam
e as moléstias que te sobram
e o alimento que te falta
e as ilusões que te sobram
e os afetos que te faltam
e as injúrias que te sobram
e este pouco morar,
este pouco vestir.
e este pouco amar,
este pouco dormir.
e este pouco prosperar,
este pouco ir e vir.
e este pouco divertir, divertir?
ninguém te deve nada irmão?

             Out- 2019

Ascendência

daquela robusta árvore
eis o ínfimo ramo que somos
as raízes e a planta
a progênie o que tentamos
na origem à dor suplanta

arejar a névoa espessa
trazer do berço a lúcida aragem
história e nação
o ímpeto da luta e coragem
reaver o avito torrão

      Fev. 2021

Descendência

mira a flor que rebenta
é fruto do fruto e semente
raiz folhagem botão
a imensa estrutura
da extensa estirpe da gente

do sêmen ao ventre
brota um ser de todo ameno
ramo da vasta linhagem
gigante mesmo pequeno
etnia e coragem

    Fev. 2021

Frágil forte

o açoite da artilharia do tempo
contra as sólidas muralhas do eu
tenta o sequestro 
do que existe frágil na pedra
o desterro 
dos soterrados da queda
forte que desmorona em esplendor e treva

a força da pedra que dura
está naquele sopro de ternura
no âmago
da própria substância
sob a fustiga do vento no tempo
esgarçado de uma dor

o alarde da gente
oculto no silêncio dos dias

     Mar- 2021

Gênese

sêmen ou susto
intuito infenso à luz
sopro indefeso
gérmen élan
ovário que ovula óvulo 
presa de estigmas
alarde da vida em silêncios

o devir da flor
é quando toca a retina
-ou existe vácuo
áspero ser- 
qualquer receio
tácito beijo do rocio
à pétala detida 
nos nós do âmago
apenas frio

não sei de aragem
que não censure o silêncio
no seu trânsito
entre seca folhagem

nascer é ruído
na estagnação da luz em ruínas
ou sombra que paira
paz e parto

     Mar- 2021
 

Poema para Cristina

 A orquídea que você cultivou em seu apartamento

com carinho de mãe, a mesma que calada e
distante exalou segredos na manhã, que beijou
a noite com sua aparência de virgem e amou o
dia apaixonada e perdida, hoje é testemunha das
palavras ao pé do ouvido, dos ardentes beijos de loucuras
no verão, dos teus apaixonados suspiros em meus braços...
De tudo enfim o mais que somos nós.

Composto por volta de 2013, 2014.

quarta-feira, 25 de setembro de 2024

...Ela

pelas bordas da cidade atarantada
deságua e cresce favela
em avenidas de esperança e mágoas
a favela sofre a esperar que brote
no árido ar da metrópole
a sua aposta
de melhores dias
dias de bonança a seus filhos pretos
quilombo que nascido
de coletivo sonho
é refúgio e lar e gueto
a favela se expande em tentáculos
de resistência
não mero espetáculo
da elite rancorosa
que destila ódio a quem deve 
muito mais que cota
e ignora escarnece e não paga
mas a favela trabalha
estuda e sobrevive no fio 
da navalha
e não se entrega às sujas regras
do jogo inimigo

e segue em mar revolto ela
tal como eu versando dores sigo

                 Fev- 2024

quarta-feira, 18 de setembro de 2024

Pedaços da fome

                   Poema em homenagem à Carolina Maria de Jesus

a vida agora é de alvenaria,
os objetos, os filhos, as flores...
a casa talhada a lápis com palavras de dor.
filhos adotados dos teus braços pela miséria.
o prego, a madeira, a fome, o silêncio,
o trabalho e a solidão.
o ódio de deus sobre os ombros dos teus,
sobre os ombros
dos que não têm que querer,
cuja escolha é não ter escolha.
nada conterá a força das tuas palavras
ainda que as águas das chuvas tenham contido
teu corpo franzino, anônima de papel,
estrela sem hora
nas ruas avessas da cidade.
cidade hostil, afeto de pedra, flores sobre a sepultura.
nuvens de África, ares de África, sois de África.
sopa de vento, poeira de terra no prato,
está no pasto este gado,
ou nos finos pratos de louça fina.
qual a cor da fome, Carolina?
dos pedaços da fome?
despejada de cada quarto, de todo canto,
preterida da vida.
zela da veste granfina,
desdobra-se a cuidar deste chão,
e sonha, Carolina!
escreve e sonha, Carolina!

           Maio- 2020

500...

a úlcera do ser estagnado
destila o cianureto meias verdades
a sociedade doente
as academias mutiladas
o cânone envesgado dos costumes

o ópio-ódio burguês
excrementos 
de míopes cogitações
petrificados pitacos letra-morta:
88 aboliu os poderosos da culpa
eis a excrecência
(o poder de eximir
à régia canetada histórica)

à goela empobrecida
a baba espessa do cão sem raça
a gente engolindo miséria
vivendo de sonhos extintos
vinho tinto 
de sangue vomitado à nossa boca
e mais injúrias e hospício
e o vício por alimento

o ensino ensina chacina
despótica gramática das ruas
complexa pedagogia dos excluídos
e o rebanho 
de negras ovelhas -destino e pele-
amarga a sintaxe suburbana
engrenagens de aço 
e vestígios de munição
a violência escandalosamente 
armada de carência-criança

nas feiras encarceradas
das periferias
bandejas de desdém 
dúzias de fatalidade
pencas de mágoa no olhar
o desenlatado extrato antissocial
brasileiro marinado em caos
no topo etc e tal, no meio isto e aquilo
na base, versada em revés
nem isso, e jazem os ratos classe E
esfomeados nas sarjetas
à margem 
destes regalos
os indigentes à margem

agressões nos subterrâneos
cotidianos do lar
amor por argumento
a negra pele roxa de ternura
não há primavera pra criança órfã de amor
esmolando gorjeta
pra sua fome de afeto
as balas que nada têm de perdidas
e encontram a infância 
perdida
grande contingente negro
implicado em "masmorras medievais"
nem uma réstia de liberdade
a sociedade pelo racismo
combalida definha
Zumbi expira no quilombo do peito
vencido pela impotência

o protesto burguês 
bate panela vazia com a mesa farta
no conforto dos apartamentos
o protesto proletário
almoça poeira de obra
a miséria sem miséria das marmitas
faxina por negras mãos
de fadas sem conto
ventre colado às costas
o mármore das mansões de pedra

seus deveres cívicos
resguardados pela constituição
seus direitos
engavetados no parlamento
parlamento branco e burguês
como todos os poderes
e poderosos 
da nossa república esgarçada 
em egoísmo.

       Fev. 2021

terça-feira, 4 de junho de 2024

Enganos prescritos

ainda trago estas mãos incompletas
teu corpo ignorado em qualquer parte do globo
mãos de amores brancos
que não aprenderam pisar no solo 
das próprias dores

o matiz banto 
deste meu miscigenado espanto 
reclama teu chão legítimo
tua força autêntica de mulher astuta
senhora do seu destino
empoderada da sua história
e identidade

saberes tão definitivos nos cegam
com seus vieses de verdades absolutas
que somos sem o ser
e feito naus de saqueadores
cavalos de tróia de nós mesmos
vagamos senhores por águas perigosas

contra a própria vidraça
arremecei pedras de desamor
cego que estava para as cores esquecidas
e apenas tarde
descobri o mundo depois do crepúsculo
quando já era tarde
conheci o que me pintaram turvo
desde o jardim

o crime está cometido
mesuras e desculpas não restituem
o membro mutilado
o estrago é grande e grave
as raízes foram podadas e o fruto apodreceu
a árvore pendeu e dissipou-se
em plena vida
vida de enganos prescritos
esvaída

que é feito de nosso amor
mulher que eu desconheço mas amo
e que a ausência me dói nos ossos
que é feito de nós depois de tudo passado
agora que a neve caiu
que o vento carregou os sonhos
que estilhaçaram o espelho
de nossa alma

adeus!

           Agos- 2021

segunda-feira, 20 de maio de 2024

Assunção

nessa selva povoada de feras
onde o fruto que alimenta 
é também o que mata,
não me quero menos que fera,
contemporâneo afortunado 
desta gente negra,
deste contingente humano de peso.

meu verso é um compilado 
de muitas vozes, 
influência dessa miríade
de voz poética brasílica.
eu sou apenas um 
e todo mundo
neste mundo de Silveiras,
Colinas, Venturas, Camargos.

o fruto verde desta 
complexa fronde, deste robusto
arbusto, desta árvore áfrica 
brasileira que afronta
no front da palavra
a violenta frota do sistema,
a rota que nos quer 
cordeiros, carne morta, 
nas vielas, nas favelas, nos canteiros
de obra, nos quer derrota.

mas empunho a pena
e pena de quem não pensa,
de quem quer a recompensa 
por minha pele,
de quem odeia a minha negra cor.
sei de cor 
o que querem
os que me querem pó,
os que me querem só o nó 
da minha etnia.
mas é com alegria 
que sigo a assunção 
dos caminhos
de um Carlos de Assumpção,
de uma Geni Guimarães.
e é com muito orgulho
que assumo a alma que aflora
da minha ilustre 
gente negra 
na minha própria alma.

       Dez- 2020

sexta-feira, 17 de maio de 2024

Lapso

tenho um cálice letal 
de saliva
abstenho-me da vida
pago com lapso o seu hiato
do teatro sagrado renuncio ao palco

no beijo detido 
por teu ato insano
às trevas me cedo cadáver em húmus
paciente do ímpeto inumano
entrego-te meu túmulo

a nossa hóstia curtida 
em vinho
jaz em estilhaço
resta o jazigo vizinho
ao sepulcro do meu abraço

     Mar- 2021




Autópsia

quando partir fosse sensato
investigar nos olhos teus
momento exato
qualquer fagulha de bem-querer
desejo oculto
em cotidianos gestos
que revele e releve
qualquer contrário vento
que tempestade se fez
no passar do tempo
entregar-me ao silencioso culto
dos teus lábios
dizendo: - toma esta flor
que cresce...
é amor é amor

              Fev- 2024

quarta-feira, 15 de maio de 2024

Capoeira

no embuste da resistência tramada
a dança luta do negro frente à senzala
num golpe ginga a força da raça
e atravessando o tempo 

                  reverbera a sua graça 
                  história de libertação
                  onde impera o inimigo

rabo de arraia
rasteira
maculelê
benção
                         tanta dança e tambor
                         capitão do mato e senhor
                         nem desconfiam porquê

capoeira é revolução
a glória do destino de um povo
himeneu do negro com seu irmão

           Fev. 2021

terça-feira, 14 de maio de 2024

Súplica

deus, uma esmolinha
por misericórdia:
um livrinho aos cinquenta
pra eu ler um pouco.
- e a vida fodida?
depois conserta ou reencarna
pra outra vida
novinha em folha...

           Fev- 2024

quarta-feira, 8 de maio de 2024

Sou negro

se às vezes meu ego é frouxo
é que sou esboço
à semelhança de um deus
que retratam branco

negro
muito negro de pele
e alma me traço me tranço
na vida 
em que me lanço
de lança em punho danço
meus ritos
escrevo meu enredo

se me querem branco
de alma e pele
fracassam sou negro
até nas entranhas
sou negro
das pontas dos dedos
aos pelos 
do crânio

                Fev- 2024

Água não lava

água não lava este sangue
aos jorros na terra das lavouras
derramado
sangue de há séculos
por séculos
dos vendidos
sangue tataravô
deste sangue das cidades
que na terra
ainda coagula
sangue das costas lanhadas
e do suor
sangue negro
escravo
        
              Fev- 2024

terça-feira, 7 de maio de 2024

Preto fede

ao promotor Avelino Grota, e, infelizmente, esse é o pensamento 
de muitos da elite deste país, é de uma tristeza tremenda, 
consegue mensurar?

preto fede
fede?
no cu todo mundo fede
se o preto fede
o branco
cheira.

Out- 2021

segunda-feira, 6 de maio de 2024

Artigo 1.305

                             delataram o poema negro
inocente dos crimes que o acusam
pesam-lhe apenas
                                os "delitos"
                                                 de informar
conscientizar
            desalienar
                       encantar 
                              orientar

conduzido à sala do censor
                              verteu metáforas dos versos
exausto do preconceito
                     proferiu estrofes de amor

implicaram-no no artigo 1.305
condenado e preso sem julgamento
nem direito à fiança 
 
                           ou habeas corpus

submetido às seguintes penas:

reclusão na cabeça do poeta
sem poder estampar folha em branco
com o agravo do silêncio absoluto

             nada dizem os críticos e acadêmicos
da injustiça contra o poema

os versos negros não são mais livres
os livros desbotam-se de tédio
                            nas estantes ariânicas
          a literatura brasileira agoniza sem matizes

o poeta negro é ser estranho do público
                           que pra comer 
não come do que escreve
                        esmola outro ofício que o sustente
desde que delito tornou-se a arte negra

ainda que objeto dos crimes
                        onde o branco é o sujeito
o negro paga

                              pobre cultura dos trópicos!

                   Agos- 2021

quinta-feira, 2 de maio de 2024

Numa tela

como posso ver-te 
em tablets e celulares
quando o desejo te quer
cada vez mais carne e osso
e meu ócio te reclama
cada vez mais próxima
cada vez mais boca e vulva 
pele pelo e íntegra
concreta âmago e víceras
ser de glórias e ruínas
cada vez mais fêmea
que mente chora e ama
dentro dos meus braços
nas dores da cama
não essa forma efêmera
fria forma em regra
que não sangra ou transpira
encerrada numa tela?

             Mar- 2024

Trilhas dispersas

às vezes me frequento
e encontro em mim mil portas trancadas
pelo receio de topar 
os desafetos 
com as mesmas máscaras
que às vezes envergo

outras me frequento
e encontro em mim um árido terreno
saturado por deglutir os restos
e estampar no rosto um ar
de naturalidade

então me frequento
e encontro em mim um estranho
dando a cara à tapa resignado
sempre que o ultraje
insiste que tenho dívidas 
em atraso

me frequento
e às vezes sou um palhaço no circo
das circunstâncias diárias
abandonando por cumprir 
o combate

às vezes dobro os joelhos
e balbucio desculpas ao agressor
em feitio de oração
eu que por mim não sei pedir

tenho frequentado
o âmago deste ser que amarga
a tíbia atitude de amar
à míngua de si
quem lhe oferece as costas

às vezes me frequento
e não reconheço o caminho de volta
perco-me nas minhas curvas
nas minhas retas
e nessas trilhas dispersas
sou poeta

        Fev. 2021

segunda-feira, 15 de abril de 2024

Exata medida

quando este meu amor cresce
meu coração padece
de um querer que não se esgota
que brota da tua pele negra

e ruem-se os estigmas
sujeitos à tua força de mulher
tua fala negra é regra
é orgulho tua negra alma
que sejam inspiração
as calosas mãos ancestrais
na luta nossa pelo pão
que força não falte aos lares

força que eu chamo vida
esta exata medida da paixão
transformada em amor
da luta convertida em resistência

             Nov. 2019

Retrato

o que o Fabrício comia
eu queria perguntar
São Cosme São Damião
divindade ou ciência
que saiba explicar
talvez algum orixá
o que o Fabrício comia
eu fiquei a pensar
o que o Fabrício comia?

              Jul/ 2019

Mulheres da minha vida

Na sociedade ideal que construiremos
as mulheres da minha vida
provarão sempre do melhor alimento,
e jamais lavarão a louça depois das refeições,
nem as da nossa família, nem as alheias,
as louças das famílias brancas.
Na sociedade ideal que construiremos
as mulheres da minha vida
vestirão sempre dos melhores trajes,
sem jamais encostarem o ventre no tanque
para lavarem as nossas roupas,
nem as alheias,
as roupas das famílias brancas.
Na sociedade ideal que construiremos
as mulheres da minha vida
pisarão sempre os chãos de salas amplas,
sem jamais limparem os chãos
de nossas casas, nem de casas alheias,
os chãos das casas das famílias brancas.

Chibata cantará nas costas de quem se opor!

                Nov. 2019

Fênix negra

o feitor levou-te-me dos braços
tolheu o exercício do nosso arbítrio
restringiu nossos movimentos
porém não pôde quebrar nossas asas

quero que perdoe-me as metáforas
é que o inimigo não descansa, invadiu a cidade
saqueou, estuprou e degolou muito irmão
perdoe também as más palavras

mas é que com a força do intelecto
em silêncio, a gente parte as correntes
põe abaixo estas paredes de pedra
depois faz amor sob a luz das estrelas

                       Set- 2019

domingo, 14 de abril de 2024

Manicômio

O manicômio me espera
depois de palmilhar a terra
dos donos de meu sangue
O manicômio me espera
depois de descarnar o crânio
como exemplo em praça pública
O manicômio me espera
depois de polir o ouro e o diamante
com a água de meu sangue
O manicômio me espera
depois do estupro da inocência
nos recônditos da mata virgem
O manicômio me espera
depois das peles marcadas
com a insígnia de meu dono
O manicômio me espera
depois de forjar uma nação
apenas com a força do braço
O legado pra tal abnegação
não são mais que as portas
escancaradas do manicômio

              Nov. 2019

sexta-feira, 12 de abril de 2024

Estrelas dançam no poema envergonhado

as estrelas dançam no céu mas o negro não vê
proscrito da terra vem nos porões
minha angústia carrega o seu olhar de medo
e tenho apenas o poema
saltando no peito
que será de nós depois da tempestade
depois da memória
dos tempos de barbárie
o que diremos aos filhos dos filhos
e aos próprios filhos
o que diremos às esposas
às mães e aos irmãos
o que diremos a nós mesmos no escuro da noite
que uma constelação de estrelas 
se perdeu no mar
que não foi possível saltar para liberdade
no mar em fúria do mau destino
que a liberdade fracassou diante da violência
que precisamos reinventar o enredo
duma história distorcida
e o poema se cala envergonhado da própria impotência
o céu de chumbo chora a nossa dor

             Jan- 2024

quinta-feira, 11 de abril de 2024

O poder da poesia

a poesia é um gesto de paz
sentindo as agonias da guerra
arte e enigma
fêmea que gesta, pare 
e enterra

lance de harmonia
embora se utilize da tempestade
sopro de compaixão
a envolver num abraço a humanidade

traz na metáfora
palavras de esperança
alento num verso de justiça e bonança
sobre a aflição dos desesperados
o flagelo dos miseráveis

que não corrompa a planta
afogando com o pesar a semente
quem pode suplantar
a audácia da injustiça com poesia simplesmente
compor e semear o verso
corpo e mente

transbordar das pálpebras
o oceano das mágoas
que separe o grão, prepare o chão
e a mão que plante 
e colha o trigo
tenha força pra fazer o pão
e sanar a fome
de todo e qualquer irmão

soprará ao justo o vento brando
refrescando as feridas
e o tornado devastará o coração tirano

       Mar- 2021

quarta-feira, 10 de abril de 2024

Poeta Suburbano

flor rompendo o asfalto, nasceu um poeta suburbano,
poeta assim meio inquieto, meio discreto, meio engano.
versado no seu dialeto, compõe seu verso meio profano.
morreu na cruz, morreu, morreu Jesus enquanto humano,
quem morre no SUS, à margem morre, morre subumano.
o céu que vejo é uma nuvem de monóxido de carbono,
se o céu não vejo, estrelas vejo, mas apenas em sonho.
concebi um lindo verso, assim meio com cara de aborto,
bem semelhante ao feto que um dia vi no meio do esgoto:
saiu um poema torto, um poema coto, um poema morto,
então, ando meio bronco, meio bronca, assim meio pouco.

                            Junho- 2016

domingo, 7 de abril de 2024

Faça valer à pena

Jesus Cristo

Jesus Cristo é crioulo
tição verdadeiro
nasceu em morro carioca
feito Noel Rosa
Cartola
Machado de Assis

descende de orixá
filho estimado do pai Oxalá
prega a paz embora pregado na cruz
mas o coração de Jesus
sangrando
perdoou e perdoará

Ele é carapinha
falsa é a imagem atribuída
lutou por liberdade
sendo feito Gama abolicionista
há de haver
perdidos registros
que estas palavras ratificam

dois mil anos
que se sabe transformaram-te a cor
do pixaim 
nasceram escorridas madeixas
e o olho azulou
o que fizeran Santo Pai
da Tua imagem

Tua prole descende 
d'África
nosso eterno Pai é brasileiro
se provar não posso
o que peremptório assevero
também provar
ninguém pode esta cor
tão desbotada
que envergam nos templos
Tuas imagens

tanta incerteza sobre 
Tua história
me faz acreditar reclamando
Tua nacionalidade
digam toda a verdade
sobre Teu cabelo
sobre Teus olhos, sobre Tua pele
que renuncio minhas certezas
que Cristo é brasileiro
que é carapinha?
retinto tição verdadeiro.

        Out- 2021

Apedrejamento

um jovem negro foi apedrejado até a morte
e o cadáver arreganhou os dentes amarelados
na via pública
do sol a pino da tarde
à luz da lua da madrugada
esta pedra tem cor e classe social
e os parasitas brancos
da sociedade 
branca
legislavam em congresso a má sina do gado negro
e os parasitas brancos
da sociedade 
branca
condenavam nos tribunais
o gado negro ao matadouro sem uma gota de dignidade
eu conheço
uma legião de zumbis negros
que sofrem
apedrejamento diariamente
até
que encontrem a mesma sorte
do jovem negro apedrejado até a morte
com a pedra
que a sociedade
branca
dos parasitas brancos
inventou para vitimar jovens negros
já tão vitimados
por todas
as mazelas da sociedade branca
dos parasitas brancos

Out- 2019

sexta-feira, 5 de abril de 2024

Racismo estrutural

nas novelas, via de regra, eu sou a empregada.
nos filmes a prostituta ou o traficante.
nas propagandas de natal a coca-cola.
nas de margarina o café.
nas de carro o pneu ou o passageiro.
nas de fralda a pupila.
nos telejornais a caneta do apresentador.
nas redações dos jornais as teclas do computador.
nas empresas a faxineira.
nos condomínios de luxo o porteiro.
nas universidades o quadro negro, que é verde.
nas orquestras o smoking do maestro.
na oscar freire o mendigo.
nos shoppings centers o segurança.
nos livros didáticos e paradidáticos os escravos.
no congresso os ternos dos nobres parlamentares.
nos tribunais as togas dos excelentíssimos juízes.
nas academias as fardas dos imortais.
nas bibliotecas públicas as lixeiras.
nos bancos as copeiras, será? 
nos hospitais... repartições públicas...
essa é a vergonha do rascismo estrutural no brasil,
treine o seu olhar, se quiser, é claro!

               Jan- 2024

quarta-feira, 3 de abril de 2024

A cor de minha busca

eu escarro e cuspo sangue negro
na cara desdenhada do feitor
que me chibata,
este destino imposto às custas
de tanto sangue,
na cara de escárnio
do patrão dono do fruto 
usurpado dos meus esforços.

porque negro é o escroto que me trouxe
de terras remotas,
a placenta que acolheu
o tambor do meu peito no ventre
de minha mãe negra.

desde a aparência renegada
das minhas origens
à mista cor dos corpos herdeiros
dos horrores das senzalas,
das dores das torturas tantas vezes negadas.

negra é a cor de minha pele,
negra são minhas palavras 
e a minha poesia,
negra é a raça humana desentranhada
de África mãe, negro 
são os caminhos onde forjo 
meus passos em busca 
de minha verdadeira história.

             Jan- 2021

terça-feira, 2 de abril de 2024

Black power

                                 o sutil asfalto no seu fino trato
alaga o sorriso no rosto
                                         do favelado
rio que deságua no mar do sofrimento
e na inércia do conjunto           que não é o todo
                                  porque somos muitos
despenca o negro pirâmide
                                                    a
                                                        bai
                                                               xo
negrura exposta na estrutura social
no geográfico caráter do não viver
                                    que resiste ao impossível
dissipando o tempo na angústia 
do não ser
                                           -gado e pasto-
sociológico abandono
estrutural desenlace
                                        desengano e sociedade
e lega-se mágoa
vende-se a alma ao diabo
a preço de centavos 
                                suados
                         sob o anverso da moeda do escárnio

apartheids segregam flores do mesmo jardim
demagogia racial tranca as portas do acesso
                      cotiza exclusão
mas o poder do negro cresce pra dentro
e transborda poesia
                      para os poros lacrados da humanidade

             Set- 2021

segunda-feira, 1 de abril de 2024

Poeira

era pedra e pedra e virou pó
e compôs a poeira nas galáxias
sobre os mares, nos desertos
o cisco nos olhos
o pigarro nas gargantas
o pó na estante entre os livros
dormiu com os livros
e penetrou nos livros
e aprendeu as palavras
e devorou os livros
na magia do saber que transforma
depois de tanta andança
deu-se o improvável
mas nunca o inesperado
tornou-se pedra, estrela e lua
hoje, através das frestas do barraco,
faz voar a imaginação
faz sonho onde havia vazio
ilumina o livro nas mãos
do menino pobre que aprende ler

                      Set- 2019

domingo, 31 de março de 2024

Por meu sangue ainda passam

por meu sangue ainda passam 
os ventos dos mares necrópoles
e o hálito amargo das ondas
brindam mistérios antepassados
sofridos nas vagas de oceanos hostis
ante os olhos das nações

ainda passam por meu sangue
quintais de antepassadas lidas
as brincadeiras 
dos moleques a furtarem frutas
das goiabeiras antigas
a fome nos trópicos

por meu sangue ainda passam
quilombos vencidos pela guerra
vozes de atrozes banzos
marcando com seus brasões as minhas veias
remetendo a dores ainda vivas
sob as cicatrizes

ainda passam por meu sangue
velhas lavadeiras com seus lamentos
e as roupas imundas do passado
rumo aos rios das angústias
quarar as queixas 
vivendo sempre dias iguais

por meu sangue ainda passam
os olhos vítreos das senzalas
acomodando desesperos nas noites intermináveis
curando expostas chagas com sussurros
a liberdade estupefata
com os horrores do cárcere

por meu sangue ainda passam
ainda passam por meu sangue

      Fev. 2021

sexta-feira, 22 de março de 2024

O barro transborda

o barro da minha cidade está nas bordas.
o negro está nas bordas, está no barro das bordas da minha cidade. 
cifrado no barro o negro está, no longe onde se extravia a vida, onde há vida que se nega a negra cor do meu país.
o asfalto chegou (para alguns lugares, às bordas das bordas não).
carnaval sem adereço, lágrima clara sobre pele escura, o negro chora, não é mais dono do estandarte. a passista hoje tem endereço nobre, a favela sobra.
o barro está nas bordas, nada muda, tudo muda numa metamorfose trágica, no geográfico apogeu do abandono desprezo descaso. o investimento do estado é parco, exceto o cinza de barcas sombrias onipotentes onipresentes com seus radares discriminatórios.
quase sempre o alvo é negro, dos disparos deflagrados. a farda a patente o coturno sobre o pescoço da negritude sufoca diversidade, os soldados são negros, treinados para ignorar. 
o poder pelo dinheiro aniquila com os sonhos das gentes, antes mesmo que pudessem sonhar.
ninguém está sozinho afundando na lama, almeja-se a cauda duma estrela, dum cometa que irá resgatar a todos dos confins.
o barro está nas bordas, estende-se infinito de cidade em cidade até a próxima capital, a conurbação, megalópole do desespero.
quanto de barro há nos edifícios cobertos de luxo? que braços são os verdadeiros donos do progresso?
os pais são os pés e os braços do meu país, os filhos a cara cara da fome, onde todos trabalham e ninguém come. nestes cantos lamentos mudos mudam a cara da cidade de alegre em triste, onde tudo existe à margem, nas margens de regatos podres, de magros ratos e esquálidos destinos. o muro o mudo olhar a ponte em escombro escondem a parcela condenada dos que habitam vielas barracos ruelas morros com cheiro de morte, onde todos improvisam um sol que não existe, um céu nublado toda vida. os cães fazem a festa no lixo amontoado em fins de ruas.
nas bordas da minha cidade existe vida, existe olhares suplicantes que ninguém vê, ninguém quer ver. o natal passado levou beatriz muito cedo, cedo demais para que se entenda, no dia que nasceu o menino deus, o presente de uma tonelada na cabeça do seio familiar, na cabeça de toda a comunidade acostumada ao barro ao berro, à boneca branca da menina negra sob escombros.
nos terreiros apenas os orixás são os mesmos, as mãos nos tambores são outras, as bocas que entoam as litanias são outras, os corpos que recebem os santos são outros.
a história se repete, o barro das cidades do meu país transborda.

Jan- 22

quinta-feira, 21 de março de 2024

Pedra rara

é nas primeiras horas do dia
que fala aos meus sentidos tua essência
amiga da textura das rosas
da etérea força 
do amor

e com a delicadeza das pétalas
vem tocar meu peito
ávido por qualquer carinho
a manhã está plena e eu não me farto

na insuficiência do tempo
nem a noite me rebela
caindo como o rocio na grama
mas me faz dormir 
na tua luz

como estes olhos tão recentes
atravessam minhas pupilas
e dormem na memória do meu sangue?

o cheiro campestre da tua pele
a boca virgem dos meus lábios
os cabelos de prata que te enfeitam
tudo tudo me espera dentro 
do tempo

espera o toque delicado dos meus dedos
como um anjo espera por deus
dentro de um sonho prestes a brotar
como brota da terra o milho

         Agosto- 2022

terça-feira, 19 de março de 2024

História concisa do negro na terra brasilis

no princípio o verbo era no peito
era a senzala, a fome, o tronco
o engenho, a moenda
nas lavouras havia o eito
e não havia salário
depois veio a indústria
a construção, a favela, o torno
a fome, o martelo
o macacão operário
então veio o progresso
e ainda a panela vazia
a escola, o livro, a universidade
e a muito custo então o verso
por fim, já não havia utopia

               Dez- 2023

Mensagem

esperei pelos correios um telegrama
mas o carteiro desconhece meu endereço
a internet suplantou os telégrafos
tudo mais fácil à urgência que é a vida
minha sorte talvez mude
e transforme o meu destino
mas nem por e-mail a mensagem não veio
inútil qualquer espera
não há advento possível à dor 
de amor ausente
sepulto no silêncio meu drama
e teço mais um poema
de tantos esquecidos
na noite repleta de solidão
noite amena

             Mar- 2024

Esse jeito de amar

tanta bela forma de descrever uma mulher
e eu a descrevo carne osso pele pelo que transpira e sangra
o amor transcende a matéria
mas eu só consigo e quero te ver concreta
coisa que se vê e toca e experimenta

               Mar- 2024

quinta-feira, 14 de março de 2024

Tem gente com fome

engajo tremendo sorriso
ao contato da luz amena da manhã
amena e doce manhã
mas logo desfalece
esvai-se todo entusiasmo
tem gente com fome
e é pornográfico um sorriso
talvez eu fosse feliz
não fosse tanta gente com fome
e eu tão pequeno poeta
fosse grande
também não sanaria a fome do mundo
poeta pode apenas o verso
e a angústia do povo não espera
renasce a cada manhã
a barriga colada às costas
e o olhar perdidamente triste
famélico olhar
constrange um riso rasgado
de orelha à orelha
mesmo para o espetáculo
da luz amena de uma doce manhã
devia constranger todos os homens
mas tem gente rindo à toa
no conforto de suas posses
e se tem criança sem pão
paciência
o destino quis que assim fosse
eu conquistei minha manhã ensolarada
à beira desta piscina
saboreando este uísque caro
trabalhei muito para degustar esta manhã
e até se aborrece
se alguém lembra das misérias do mundo
mas ali ninguém lembra
ninguém vai lembrar

                  Jan- 2024

Equilibrista

equilibrando demandas
domo dilúvios das águas anímicas
pela intuição de atávicos
saberes

na dor a gente 
cresce pra dentro
o coração 
duro feito pedra
estrela 
a extraviar-se 
no esplendor de galáxias
e amplidão

seguro ao cais 
da coragem libertária
desvencilho da âncora do medo
emerjo do naufrágio
atado à vida sou o argumento contido 
no enredo

      Mar- 2021

quarta-feira, 13 de março de 2024

A palavra amor

amor é palavra chave
que nos persegue dentro da noite
empregada 
com arte
abre qualquer porta

           Jan- 2024

Estrelas no verso

enquanto os tiranos
atiram corpos 
no mar e o desterro
dilacera o peito até dos fortes
atiro estrelas
que voam 
no espaço do verso
luzindo o poema protesto

e os lamentos 
dos porões fétidos
agora são vozes de muitas vozes
pois irmanando
a ginga que nasce
do encontro da língua
que nasce o verso
com as línguas que o declamam
faz-se a liberdade

e o que se escreve
reverbera 
ao som dos tambores
(que ainda percutem
sob a mão negra da ancestralidade)
na astúcia e coragem
contra os algozes
de um povo
que venceu os males
atrozes

            Jan- 2024

segunda-feira, 11 de março de 2024

Por milagre de Oxalá, por milagre de Olorum

por milagre de Oxalá
por milagre de Olorum
hoje eu escrevo a minha dor
desde tempos remotos eu só sentia
desde tempos remotos eu nem sentia
da prole da mãe negra
mãe que trouxe o barro no ventre
tão acostumada a desmandos
sou a ovelha desgarrada
ovelha que pode tingir o papel de negro
que escapou e escapa na prece
que fizeram aos santos
na encruzilhada no meio do mato
os negros analfabetos
os negros sábios
os negros marcados das senzalas
essa ovelha que ouviu dizer
que ouviu e ouve as vozes dos livros
os lanhos na carne
o sangue coagulado na poeira
os ferros dizimando a dignidade
coisas difíceis ouviu e ouve
ovelha teimosa de olhos e ouvidos bem abertos
ovelha milagre de Oxalá
que escapou e escapa às armadilhas
às armadilhas dos senhores de escravos
senhores que pagam barato por negro capturado
que multiplicam as suas riquezas
ovelha milagre de Olorum
tentando resgatar o rebanho
às vezes em vão que a luta é cruel
que ovelhas desgarradas que virão
por milagre de Oxalá
por milagre de Olorum
ouçam a minha voz
ouçam as vozes dos livros
ouçam do sangue das correntes das lutas
por prece dos negros sábios no meio da mata
por milagre de Oxalá
por milagre de Olorum

               Dez- 2023

domingo, 10 de março de 2024

Não é lícito

ainda que fosse hoje
o tempo das lavouras e o engenho
do trabalho sob o açoite
e da opressão contra um povo
não seria lícito

ainda que fosse hoje
o comércio de gente nas praças
navios com carga humana
e capturas sangrentas 
não seria lícito

ainda que fosse hoje
o sangue coagulado na terra
senzalas da dor e do desespero
e a insígnia na pele
não seria lícito

ainda que fosse hoje
o eito extenuante e forçado
os desmandos do nobre senhor
e as máscaras de ferro
não seria lícito

ainda que fosse hoje
o bafo podre da boca do feitor
bacamartes contra o peito
dignidades roubadas
não seria lícito

o tempo hoje é outro
reconstruímos o desconstruído
somos o saber autêntico
de quem sofreu e sofre injúrias
somos universidade

o tempo hoje é outro
é tempo de livro e conhecimento
os séculos curvaram-se à luta
e somos viva consciência
somos verdade

não é lícito o seu racismo
sob a máscara da boa convivência
e se escancara é indecência
se é estrutura ruirá
porque somos inteligência

        Agos- 2021

Retrato preto e branco

água corre podre sob a pinguela
a paz nas ruas vastas
e nas vitrines
chics das butiques finas
manequins
desbotados exibem
a última moda outono/inverno.

o negro distinto
produz literatura que ninguém lê
o negro faminto sequer sabe escrever.

fulano fundou isso e aquilo
sicrano é partícipe da história
beltrano esteve aqui e além

o morro definha sob
chuva de chumbo grosso
e a criança indigente
refém da apatia nossa nem veste
nem calça,
come fogo pela culatra,
enquanto o poema, fracassa.

         Jul- 2020

sábado, 9 de março de 2024

De/negrir

preceitos arcaicos não nos acertam 
não negociamos liberdades
no nosso quintal
violência enverga bege não pele negra
em cinzas de carnaval

no céu do preconceito
enegrecemos estrelas no auge da luz
e o ágio cobrado por esta audácia
não reverbera 
no existir de quem resiste e não cai na armadilha
do de/negrir o já negro

deter a indecência
do seu legado de palavras tortas
é reinventar a escrita atenta
para a artimanha perversa do seu conceito
com asas negras
e livres escreve-se livros
de respeito

suas regras e normas
não seduzem a autêntica força da nossa sintaxe
e nosso verso cresce honesto e filosófico
com artilharia de orixás em ori
e a poesia se refaz
com a bandeira NEGRA da paz
nem branca
nem tanto faz
 
    Set- 2021

sexta-feira, 8 de março de 2024

Teus olhos

                                       à Eliane

uns olhos cheios de abismos
cactos feridos sob pedras
olvidos e névoa espessa
que me ver já não podem

estrelas no sótão de ilusões
aos esplendores da vida dedicadas
sem que a réstia de luz
ofereça o norte que não encontram
e vagam horizontes 
perdidos no crepúsculo que não há
não pode haver no tempo

no tempo dilatado de outonos
passeavam em desespero
nas mesmas ruas
nas mesmas temidas órbitas
no adejar de silênciosas batalhas
em fragosos campos de pedra
sonhos e distâncias remotas

passaram por mim uns olhos
flores inacessíveis 
na fotossíntase das manhãs
e com viés de sepulcro
como as cores de um arco-íris
não deixaram vetígios

        Jul- 2021

quinta-feira, 7 de março de 2024

O valor do voto

- a inflação come meu salário
e eu não visto não calço não como
reclama o operário

mas o que mais pesa no bolso
é o embolso do erário
que não vai pra escola creche ou hospital

e de volta eu digo:

- o olhar mais atento ao voto
é solução única pra tal escárnio!

            Mar- 2024

Gueto

nos becos escuros das favelas todo gato é pardo e preto
do que adianta não sair do gueto se no cair de cada crepúsculo
é no "confronto" com a polícia o caminho pro sepulcro?

                 Mar- 2024

As baratas não envelhecem

em que esquina pulou do bolso 
o meu dinheiro escasso 
enquanto me distraio a pegar o trem pro trabalho?
os gabinetes da administração pública recendem a carne podre.
por que desta fome de golias, este estômago dilatado ao extremo?
tua cara larga já não cabe mais nos espelhos da tua casa.
teus retratos na parede não correspondem mais ao teu aspecto endinheirado.
tua mobília de jacarandá não suporta mais o peso da tua bolsa.
o fisco me tirou até o último centavo que evaporou sob o seu cuidado.
as baratas estão roendo até os ossos do banquete do erário.
mas as baratas não envelhecem e, 
até os engenheiros de babel sucubiram à ira do tempo.

                       Mar- 2024


Artigo de luxo

forro nunca foi livre
mas escravo do mesmo dono
nas duras engrenagens do progresso
não conta a história
não contará

ventre livre foi prisão
na miséria encarcerou seus filhos
e o leite da mãe negra engordou 
muita cria dos engenhos
gordos bezerros 
da prospera pátria

negro foi artigo de luxo
carne exposta à venda nos mercados 
em praça pública
animal de boa tração gerador
da riqueza alheia

não aceito a utopia
da falsa liberdade concedida
depor-se-á o rei da barriga do homem
cedo ou tarde
alimenta-nos a certeza
que não fomos feitos
para o açoite
ou para o cárcere

não à canetada del-rei
à bondade esperta de qualquer princesa
à hipocrisia do riso branco
negro é artigo de luxo
porque veste
a roupa da batalha
e com ela vai atrás da real
liberdade

         Agos- 2021

quarta-feira, 6 de março de 2024

Sala de aula

ele era o único pretinho da sala
nem ele nem a professora o sabiam
mas os demais pretinhos e inhas à hora da aula
na mais otimista alternativa
ralavam nos lixões nos faróis ou ociosos nas favelas
ou com suas caixas de engraxate lustravam os sapatos 
dos executivos sovinas em plena faria lima

                     Mar- 2024

Um pedido

palmares e outros quilombos
que venceram guerras contra o colonizador
ensinai resistência aos filhos periféricos
desta nacão de contrastes
contai a história de zumbi e demais guerreiros
para que o povo preto orgulhe-se de de onde veio
e o destino seja próspero no nosso meio

                   Mar- 2024

Sociedade enferma

num país corroído pelas bases por regime escravocrata,
onde abolição meia-boca jogou os negros na sarjeta.

nada de novo no front:

cadeias apinhadas de pessoas pretas e pardas.
universidade formando doutores brancos para sociedade enferma.

               Mar- 2024

As grandes chagas

guerras agem contra a vida no mundo
revoluções tentam um pouco de bom senso em nações dispersas
golpes instauram ditaduras em países indefesos
muros caem unindo expectativas

outros erguem-se apartando sonhos já falidos
e como pano de fundo a tragédia da fome apartheids extermínios
e na áfrica um tanto de cada chaga
de cada espectro maléfico que o homem cria

                         Mar- 2024

Um copo de veneno

o agrotóxico está na mesa
a mãe serve o alimento a seus filhos
um copo de veneno com amor
entanto a mãe não sabe
quem pode e sabe paga pelo orgânico
inclusive o deputado
que defende enfático o uso de tais defensivos
e faz lobby e é amigo do produtor
enquanto o pobre
alimenta-se da própria morte
e tudo segue como ordem natural 
das coisas
e foi reeleito o hipócrita
locupleta-se
da miséria olheia

            Mar- 2024

Ofício do verso

ao cabo tudo é dor
pássaros sem a posse 
do espaço estamos
o poema 
que morre aos olhos
e tenta no âmago a essência
pequenas glórias
que o céu almejam no mar da vida

ecoa a palavra 
que não sustenta o verso 
na trágica metáfora da tarde
desatar os fios da lavra
tece o tempo

(o novelo mais se ata)

rompem os elos
explode arte-vida 
em musgo
tudo nos escapa
restam ranhuras n'espanto 

o poeta é um egoísta
tentando o belo por ruínas
no instante fatal

   Mar- 2021

terça-feira, 5 de março de 2024

Um fenômeno de amor

fecho os olhos e você é a água que me mata a sede
vou à rua e você é a praia em que me banho e refresco
o ar que respiro tem teu cheiro natural de flor
a fruta que como tem o sabor dos teus lábios que nunca beijei
o vento leve que toca meu rosto tem a textura de tuas mãos macias
e a água a comida a praia o ar o vento compõem o que sou
um ser inteiramente impregnado da tua presença

                   Mar- 2024

Poder público

a britadeira da prefeitura 
me desperta antes do relógio
no exato momento 
em que as bocas uniriam-se
num beijo apaixonado
como odeio o poder público
e suas obras em ano de eleições
inúteis obras eleitorais
ó incompetente prefeito
leve saneamento a quem 
precisa com urgência
e deixe-me sonhar com a boca
de minha amada
meu voto não é de cabresto
é antes voto de oposição
ao seu desgoverno
maldito alcaide empata foda

             Mar- 2024

A renúncia do poeta

grafar teu nome no atropelo
das obrigações diárias no outono poluído 
da metrópole de pedra
escrever entre ruído e fuligem 
o enredo dum amor 
que não se desgaste feito engrenagem
na grave inércia do mármore exista

o tempo é credor dos corpos
hábitos e costumes
com o amor coexiste na órbita do indizível
é frágil o verbo
rica a poesia que há na vida

então quero existir
noite adentro da intimidade nossa
na fortaleza dum apartamento
tratar de boletos e despesas no café da manhã
averiguar nos jornais algum alento concreto 
contra a violência

vez em quando evadir pro campo

      Mar- 2021

segunda-feira, 4 de março de 2024

Medusa

revolução é a noite indecifrável e muda
neste quarto de paredes de gelo
onde eu imagino a tua imagem mulher
que havia perdido n'alguma manhã de outono

porque é mulher está nos meus pensamentos
cravada como rocha sobre outra rocha
e te encontro entre palavras e livros
fechados no silêncio da madrugada fria

e te vejo sempre assim medusa implacável
que me fez pedra quando eu era todo afeto
disponível a teus braços de neve que ofusca

                        Mar- 2024

Escrevendo o ocaso

faliram-me os olhos
a maior das ilusões do homem
como mister que me fosse o sustento
a vista deu-me o mundo e tirou
friamente

os dentes 
foram triturados pelo tempo
como ironia machadiana
fina e corrosiva

o beijo vou guardar na lembrança 
como o gesto mais terno 
de que fui capaz
com o abraço

palavras fundamentais
para mim
que lhes estudei até as origens
já não lembro o significado
como por exemplo: 
alteridade

meu pau é um mito
o nosso imenso paradoxo
espectro de todas as glórias
e dramas
outra grande ilusão

a gente perde o que nunca teve
apenas imaginou que tivesse
como uma certeza traída
resta-nos a ignorância de tudo

    Mar- 2021

Homem negro

não se ama além da própria utopia
pedaços de um homem, 
                          partes inteiras de mágoa,
o coração rubro de um homem negro.

o estio vence os braços, vence a boca,
vence o pênis
               -imenso de solidão-

enquanto os olhos têm os olhos
                          esquecidos noutros olhos.

eu quero a centelha no feno
                 muito além do fla flu casual
     sem ausência ou apatia
eu quero a ousadia profana de um corpo
                      imperfeito
difusa qual artérias nas grades do peito.

hediondas paredes de pedra
                à minha volta                                 
                   -mais um emparedado destino-
o amor deflagrado 
       que não violenta.
mas não brincarei no carnaval sem passista
da avenida do tempo,
                a vida escorrendo em suores.

       eu quero mais que o amor alheio,
amor que morde e assopra
               -tirano e frio-
eu quero o amor que volta,
    a felicidade de uma boca, 
                 de uma buceta, de uns seios.

                     14.02.2021       

domingo, 3 de março de 2024

Mendigo Pedro

cediço ranço estorva 
a metrópole
respira e traga gás carbônico
posto come o que não come
produto odioso 
da distinção do homem
enjeitado louco do manicômio
já não é mais homem
já não é mais homo
é o inumano retrato da fome
obsceno ser dos esgotos
criatura abjeta das sarjetas
destino esfacelado
banido espectro pele e osso
privado até das gorjetas
é um fato é um feto
nem nasceu por ter nascido
evento trapo que andeja
o oposto mito de Narciso
que de tanto ver
sem ser visto
agoniza todo desgosto
misto de homem e bicho
rejeita a efigie do próprio rosto

        Fev. 2021

Dizeres do Mendigo Pedro

ando a vagar vagar vagar sem rumo certo
nas ruas desta metrópole desgovernada,
no meio de toda esta gente, neste deserto.
com a sutil diferença, salvo a ironia,
que não tenho sequer um barraco na favela.
pequeno, pra mim mesmo,
ou um catre sob o viaduto, que seja.
que o que me pertence apenas são meus trapos velhos,
e o meu corpo cansado, quase nada.
quem tem rumo certo nesta vida desvairada?

de mim sei quase nada, de onde venho,
não quero lembrar,
sei apenas que aqui vim parar,
que sou de qualquer lugar.
que a fé eu perdi dobrando uma esquina, perto;
os sonhos todos,
numa noite gelada de inverno aberto.
vez em quando esqueço minha condição
e sonho mais que posso,
às vezes, muito às vezes até tenho fé, mas logo volto.

mas o que eu sei de verdade
é que não sei o que mais me transtorna,
no correr dos dias, no passar das horas:
se meu ventre que me consome, que me devora,
ou se meu coração que lamenta e chora:
o ventre consome e devora por não ter comida,
o coração lamenta e chora, pela dor desta vida.

                    Junho- 2016

sábado, 2 de março de 2024

De repente

de repente não ousamos nada
esta preguiça é coisa desde o ancestral 
enlouquecemos de cachaça e drogas
somos todos tribos no canto esquecido do mapa

de repente somos inferior
afeitos ao crime e à violência
ainda assim as estatísticas mentem
mas é destino de cada

de repente não crescemos por gosto
nosso irmão doutor é prova incontestável
somos bem-vindos nesta pátria
ainda que banho não nos apeteça

de repente gostamos da fome
te será mais útil o leite de nossa mãe
e universidade não nos é mais útil
nossa escrita é blá blá blá

de repente o racismo é nosso
consciência é humana não negra
somos mesmo é vitimistas
amam tanto nossa preta pele

                                               de repente!...

       Agos- 2021

sexta-feira, 1 de março de 2024

Confissão

amigo
tem sido dura a vida
e pode piorar
nenhuma fresta no céu chumbado
nenhuma palavra amena dos lábios que se quer
nenhum afeto ou chamego
de mulher
nenhum pão que se possa
dividir com os miseráveis
em face da própria
miséria que sou
nenhuma cama confortável
onde se possa
adormecer das dores que atravessam
o peito sem pedir licença
nenhuma poesia
que me limpe a lama dos sapatos
e das vestes
na minha pobre poesia
nenhum sorriso que suplante
esta perene tristeza
que atravessa meus dias
até os mais azuis
sequer uma lágrima que corra a face e me faça 
sentir o gosto de um pranto elaborado 
no silêncio do peito
não tenho a força necessária 
para chorar
tem sido dura 
                               amigo
a vida

                               Jan- 2024

quinta-feira, 29 de fevereiro de 2024

Dossel de sonhos

entorno de revolução
opera a palavra acolhida
colhida página adentro das horas
sentido em signos
grafado 
no lábaro da esperança
dossel de sonhos

plasma-se
porém o impasse em nó
na indústria da treva 
ou sabotagem

esconsos 
no abraço agem apartheids
corrosão nas veias abertas da vontade
chama que resiste  
emula o luar

flor que aspira 
rebela-se
contra a opressão da rocha
e exibe seu mais intenso
azul

entanto cada fenda
traz uma peçonha incrustada 
no sorriso
abismos de pedra

    Mar- 2021

quarta-feira, 28 de fevereiro de 2024

Comarca de absurdos

brancos desvalidos e negros 
açoitados
agonizam misérias 
sobre palafitas
nas encostas íngrimes dos morros
sob a idiferença de todos

barões e senhores 
endinheirados
caviar, filé-mignon e mesa farta
a usura da posse e do lucro
no país esfacelado
e morre-se de bala morre-se de frio
crianças famélicas mínguam
o medo do invisível diante 
dos olhos

uísques e charutos de mando
na boca torta do sistema
lupas de egoísmo 
nos olhos míopes do sistema
escandalosamente
o sistema
comarca de absurdos

ainda o mando sobre o dorso 
oprimido
ainda o mando sobre o dorso d'África
sobre a tinta das peles e o sangue 
derramado nas terras
herdeiras das capitanias

pode o poeta e sua voz 
de frágil timbre
combater com palavras evidências
documentadas em cartórios
papéis timbrados que guardam
a corrupção dos homens
vis de nossa pátria alheia

cada poema chaga
é um chega para os perversos atos
que atam o ontem e o hoje
tempos estranhos esses do poeta
o povo ignorante
amargando cachaça barata
e vícios e nocivos hábitos 
com as algibeiras cheias de pedra
o prato cheio de terra

o poeta sofre
versos amargos sobram
o poema chora em vez de sorrir
e dorme
com seu povo
no seio da pátria amarga

     Agos- 2021

Eu tenho orgulho

eu não sou o presidente 
daquela empresa
não leciono naquela universidade
e não cumpro expediente naquela repartição
pública
mas eu tenho orgulho

jamais defendi tese de doutorado 
e sequer tenho graduação 
em qualquer 
disciplina 
de qualquer universidade
mas eu tenho orgulho

estorvam-me 
o linho da minha roupa 
o couro do meu sapato
a lã da minha blusa
a felpa 
do meu cobertor
o gosto da minha comida

quando recebo salário
geralmente desfruto desemprego
ele é entorno 
de 50% mais baixo
que o de um homem branco
mas eu tenho orgulho

tenho amado bastante
mas o amor tem os seus senões
e tenho recebido as costas
para amar
as deslumbrantes costas 
da pessoa amada
mas eu tenho orgulho

perdi a conta dos ultrajes
conto nos dedos os afetos
mas eu tenho orgulho

eu tenho orgulho
dessa negra pele preta retinta

      Mar- 2021

terça-feira, 27 de fevereiro de 2024

Pra inglês ver

filhos nascem condenados
das barrigas pretas de barro
castigados de lonjuras

quanto de pálpebras tristes há em distâncias
que a política ignora
que a estrutura acolhe no racismo
em contornos de sociedade acostumada aos crimes
do pescoço branco

mais criminoso
é quem já nasce cerceado da liberdade
condenado no ventre
vítima do vento contrário
no seio oprimido do muito sofrer

dá de sofrer aos que só lucram
e tudo se ajusta
o jugo vira a direção e a justiça moda
mas deixa transcorrer a regra
que o frágil fragiliza
e a violêcia
não passa de mero acaso
pra inglês ver

a matemática é mais que exata
não resta dúvida
nesta pátria de prática criminosa
criminaliza toda raíz inocente ancestral
que depois de gerações a fio
implicada
dos que depois rebentam
a chaga

              Set- 2021

domingo, 25 de fevereiro de 2024

Senzalas

de senzala em senzala
rugi nas mentes o som das águas sangrentas
do banquete dos tubarões famintos
o hálito da necrópole dos mares
cristalizados nos olhos violados da escravidão

de senzala em senzala
a força bruta contra as inteligências
pelas maquinações da usura
a resistência nos olhos vazados a ferro
nas peles em lanhos despidas
os jugos correntes e máscaras
a tortura à ternura fuzilada

de senzala em senzala
fome frio medo e a podridão da carne
os vergões dos açoites nos dorsos
o gosto podre dos alimentos nas bocas
as almas tomadas pelos engenhos
a posse dos braços explorados

de senzala em senzala
o estupro o choro contido no desespero
o filho bastardo no ventre violado
o esfumaçar das identidades
os estilhaços dos corpos esgotados
os inféctos odores das moléstias
dos excrementos e dos sonhos esfacelados

de senzala em senzala
as dignidades aos poucos usurpadas
a imagem dantesca de todas as perdas
amontoadas pelos gélidos cantos
a incompreenção nas palavras
os inascessíveis horizontes do Continente

o resultado destes crimes de lesa
são as descendências atoladas
no lamaçal do menosprezo
a dívida jamais ressarcida e negada
cada gota de sangue dos homicídios

       Jul- 2021